O Globo
Netanyahu jamais conseguirá apagar o dano
moral, político, diplomático e histórico sofrido na Corte internacional
Ninguém gosta de ser submetido a julgamento.
Países, também não. E o Estado de Israel, comandado
por Benjamin Netanyahu, menos ainda. Mesmo que consiga convencer a Corte
Internacional de Justiça (CIJ) a arquivar a acusação de genocídio apresentada
pela África
do Sul, ou mesmo que consiga evitar a petição por medidas provisórias
urgentes, como a interrupção dos ataques a Gaza, Netanyahu
jamais conseguirá apagar o dano moral, político, diplomático e histórico
sofrido em Haia. A sentença final a ser decidida pelos 15 juízes da Corte pode
demorar dias, semanas, meses, até anos, mas a mera questão central — Israel
cometeu genocídio? — é devastadora em si.
Relegada ao papel de cemitério do Direito Internacional, a Palestina como um todo, e Gaza em especial, pouco espera da Justiça dos homens. Só que a petição apresentada pela África do Sul pode ter desdobramentos inesperados. Como previsto, foi desconsiderada como frivolidade pelo secretário de Estado americano, Antony Blinken. Mas não por Netanyahu, que optou por apresentar sua defesa perante a Corte. Não é de hoje que lideranças israelenses se preocupam com uma eventual percepção mundial de que a opressão sofrida pela Palestina ocupada é uma forma de apartheid. O espectro de isolamento internacional semelhante ao imposto ao regime de minoria branca na África do Sul — que culminou na extinção do apartheid nos anos 1990 — sempre existiu. Et pour cause.
Desde as décadas da descolonização, dos
movimentos de libertação, dos Não Alinhados e da Tricontinental, o partido de
Nelson Mandela e a militância palestina andaram lado a lado.
— Nossa liberdade é incompleta sem a
libertação dos palestinos — lembrou o líder negro em 1997.
Tinham em comum a revolta contra opressores
que se ajudavam mutuamente. O jornalista Tony Karon, nascido na África do Sul,
sionista na juventude e atual produtor na Al Jazeera, lembra seus tempos de
militância anti-apartheid na Cidade do Cabo. Em artigo recente, escreveu:
“Muitos de nós ficamos horrorizados quando, em 1976, Israel recebeu a visita
oficial do primeiro-ministro sul-africano John Vorster, nazista convicto que
trabalhou numa organização paramilitar ligada à Abwehr [serviço de inteligência
militar de Hitler]”. A venda de armas de Israel para a África do Sul era
segredo de polichinelo, assim como a assistência israelense à Força de Defesa
do regime bôer.
A descolonização, como se sabe, não seguiu
propriamente o roteiro sonhado pelo intelectual martinicano Aimé Césaire —
restituir humanidade tanto ao colonizado como ao colonizador, numa mesma
comunidade de pertencimento. Fracassos se acumularam, e correções de curso
continuam a coalhar a caminhada com desgraças. Contudo a cartada da África do
Sul, ao cobrar da Corte de Haia um posicionamento, tem o mérito de conseguir
nos envergonhar pela cumplicidade mundial diante de décadas de desenraizamento
e opressão de um povo. Silenciadas, gerações e gerações de palestinos tiveram
existência apagada, nulificada. Gaza é apenas a aberração mais gritante.
Para Netanyahu, a semana foi indigesta também
no front interno. O conservador Yedioth Ahronoth, maior jornal do país,
divulgou uma notícia sombria: “Ao meio-dia do 7 de Outubro, as Forças de Defesa
de Israel (FDI) ordenaram a todas as unidades de combate em ação usar a
Diretiva Hannibal, sem menção explícita ao nome. A ordem era parar ‘a qualquer
custo’ toda tentativa de retorno a Gaza dos terroristas do Hamas, apesar do
temor de que levavam consigo reféns.(...) Estima-se em cerca de mil os
terroristas e infiltrados mortos entre o assentamento de Olaf e a Faixa de
Gaza. Não está claro quantos reféns foram mortos em decorrência dessa ordem”.
Perto de 70 veículos foram encontrados na mesma área, atingidos por um
helicóptero de combate ou mísseis antitanque das FDI.
“Diretiva Hannibal” é o nome dado a um
procedimento militar oficialmente abandonado pelas FDI em 2016. Visava a
impedir a captura de soldados israelenses por tropas inimigas. Sua versão mais
genérica ensinava: “A tomada de reféns precisa ser impedida por todos os meios,
mesmo ao preço de alvejarmos e causarmos danos a nossas próprias forças”.
Sujeitas, portanto, a interpretação e aplicação elásticas. No mês passado, o
diário liberal Haaretz já havia aventado a hipótese de a Diretiva Hannibal ter
sido usada no fatídico 7 de Outubro, quando 40 terroristas do Hamas foram
alvejados por dois disparos de canhão numa casa em Be’eri, assentamento
israelense. Havia 14 reféns civis na casa. Apenas uma saiu com vida do horror.
Hadas Dagan, cujo marido foi uma das vítimas, não culpa as equipes de socorro
israelenses:
— Eles também deram a vida por nós.
Hoje é o centésimo dia de cativeiro para mais
de 130 reféns ainda em mãos do Hamas. Quanta tragédia entrelaçada!
BRILHANTE!! Um texto muito informativo e sensível! Muito mais sensato que recente editorial imbecil de O Globo que criticava a posição brasileira de apoiar a ação da África do Sul contra os massacres cometidos por Israel na Faixa de Gaza. Parabéns à autora e ao blog por divulgar seu trabalho!
ResponderExcluirA colunista sabe das coisas.
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