Folha de S. Paulo
Assunto do dia deixou de ser os fatos graves
que motivaram a investigação e passou a ser o que fizeram com esses fatos
Naquela infame reunião ministerial de 22 de
abril de 2020, cujo vídeo circulou o país na época da denúncia de Sergio Moro sobre
a interferência presidencial na Polícia Federal, Jair
Bolsonaro falou de um sistema
particular de informação, em oposição aos oficiais, que não
funcionavam a contento. Poderia isso ser uma referência a um uso ilícito da
Agência Brasileira de Inteligência (Abin),
uma "Abin paralela" que, por meio do delegado Alexandre Ramagem
passava ao presidente e seu núcleo duro informações sigilosas sobre operações
policiais e adversários políticos?
A PF já tem algumas provas, como troca de mensagens entre assessora de Carlos Bolsonaro e auxiliar de Ramagem na qual ela pede informações sobre inquéritos policiais. Por esse motivo, celulares e computadores na casa de Carlos Bolsonaro foram apreendidos. A coisa já é grave o bastante por si só.
Ocorre que uma parte da imprensa —não toda—
inicialmente divulgou uma notícia ainda mais grave: de que um dos computadores
apreendidos na casa de Carlos Bolsonaro pertencia à Abin. Computador do serviço
de inteligência federal na casa de um vereador do Rio? Mais comprometedor
impossível. Ocorre, contudo, que essa primeira divulgação, feita às pressas,
estava equivocada. O computador da
Abin que foi apreendido estava na casa de um ex-assessor de Alexandre Ramagem;
assessor que é casado com uma funcionária de carreira da Abin, que pode
inclusive ser a usuária da máquina.
Ou seja, em vez de "computador da Abin é
encontrado na casa de Carlos Bolsonaro", o correto era "computador da
Abin é encontrado em casa de funcionária da Abin". Ele pode ter sido usado
de forma indevida? Sem dúvida, e será investigado por isso mesmo; mas a
informação correta é bem menos bombástica. O foco nessa notícia falsa e sua
posterior correção, aliás, ofuscou a seriedade das mensagens trocadas entre a
assessora de Carlos e a auxiliar de Ramagem.
O governo Lula também fez sua parte em tirar
o foco da acusação real contra o clã Bolsonaro. Diz um post em suas redes
sociais: "Quando os agentes comunitários baterem à sua porta, não tenha
medo, apenas receba-os." Uma imagem de
mão batendo numa porta ilustrava o post —a referência,
universalmente entendida, era à Polícia Federal batendo à porta dos Bolsonaros
(que não estavam em casa na hora, pois tinham saído para pescar).
O ministro Paulo Pimenta defendeu o post: em
tempos de redes, é preciso embarcar no trem dos temas do dia, e não ser
atropelado por ele. Só assim o conteúdo da campanha repercute. O conteúdo da
campanha, é claro, passou batido para a maioria, que viu apenas o teor
político.
O assunto do dia, assim, rapidamente deixou
de ser os fatos graves que motivaram a investigação e passou a ser o que
fizeram com esses fatos: aumentar, distorcer ou celebrar. A diferença é que,
para o governo, apesar de condenável, isso pode fazer bem; deixa sua base
feliz, engaja, fortalece o nós vs. eles. Ministros de Estado torcendo pela
prisão do adversário político e celebrando que ele seja investigado não é mais
chocante; é o esperado.
Para a imprensa, tenho minhas dúvidas. Só de
parecer partidária a uma parcela da população, a imprensa erode a confiança da
população, que precisa urgentemente ser restaurada. E cada erro, por mais
inocente que seja, apenas confirmará a desconfiança. Bolsonaro chegou ao poder
ameaçando jornalistas e atacando a imprensa. A pior reação possível a esses
ataques é confirmá-los adotando lado na cobertura jornalística.
A imprensa precisa ser imparcial,mas o lado menos errado todo mundo sabe qual é.
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