domingo, 21 de janeiro de 2024

Jorge Caldeira* - Natureza restaurada: o mercado ajuda?

O Estado de S. Paulo

Alternativas palatáveis para negacionistas ambiciosos ou suportáveis para amantes da natureza preservada

As questões transcendentes sobre uma nova relação entre homem e natureza são muitas, precisam ser resolvidas – mas estão muito além do razoável, quando é preciso lidar com os problemas do dia a dia. São esses que mais exigem esforço, especialmente, como é meu caso, quando as viagens intelectuais na maionese levam para muito longe do mundo real.

Ainda bem que aprendi com Luiz Seabra. Ele tem a sabedoria de poucos quando se trata de pensar grande – mas também pousa a nave com grande competência. Em nossas primeiras conversas, aproveitei a companhia para estender a prosa até fronteiras de mundos nos quais o homem jamais esteve. Muito bom, até ouvir a frase fatal:

“Caldeira, parece claro que vai ser preciso mudar as relações entre homem e natureza. Mas eu não diria que essa mudança vai chegar ao ponto de exigir primeiro a abolição da milenar instituição do mercado. Então, talvez seja o caso de pensar numa solução que funcione ainda no tempo do mercado...”

Aqui estou, tentando. Posto nessa forma, o problema passa a ser outro: como internalizar, no funcionamento do mercado, um trato renovado com a natureza?

As respostas negativas são, de longe, as dominantes. De um lado, pela definição: negacionismo. Uma atitude intelectual ao alcance de qualquer pachola: basta fingir que nada está acontecendo para “resolver” o problema. Não é preciso mais que essa constatação para debater o assunto, muitas vezes com um discurso que simula grande autoridade e conhecimento do mundo.

A alternativa igualmente singela é a de negar, por princípio, qualquer hipótese de solução via mercado. Nesse caso, o argumento é o de afirmar que agentes do mercado, movendo-se unicamente por interesse no lucro, não têm qualquer capacidade de proteger a natureza. Essa posição tem ainda a vantagem de propiciar ao emissor do discurso a possibilidade de se apresentar como indicador do caminho da abolição do mercado como alternativa para melhorar a vida da humanidade e recompor o elo perdido com a natureza e felicidade.

Em qualquer dos dois casos, a natureza real fica de fora. No primeiro, para ser o que tem sido nos últimos três séculos: instrumento de saque e depósito de dejetos. No segundo, para ser algo tão elevado que não pode ser conspurcado pela ambição humana. As duas versões reduzem “natureza” unicamente ao mundo dos valores. Na primeira, não vale nada; na segunda vale mais que o dinheiro pode pagar.

O mercado lida com valores, mas não como princípios últimos. Funciona na base dos preços. Exige deixar de lado as grandes questões, para cuidar apenas do trivial: há um preço que seja razoável para pagar, um preço ao alcance do bolso comum? Para além disso, vale o conselho pétreo de Luiz Seabra.

Seguindo-o, é possível pensar de outra forma: como lidar com a urgência ambiental, mas com alternativas nas quais se reconheça que o preço a pagar para conter o aquecimento e equilibrar a biodiversidade deve ser efetivamente pago no mundo real?

O modo mais razoável que imagino para responder nessa forma é pensar a relação entre homem e natureza a partir de custos e benefícios, a serem cobertos por receitas que remuneram tais custos – embora isso pareça hediondo para principistas, como eu mesmo.

Aplicando a hipótese a florestas e áreas naturais protegidas: para que elas continuem sendo tão naturais como sempre foram, existe hoje a necessidade social de impedir que sejam modificadas pela ação do homem. Vigiar e punir. Controlar severamente as interações com o homem, pagando homens para fazer isso. Manter tudo incólume gera despesa. Esse custo deveria ser financiado em função de benefícios como a captura de carbono ou a manutenção da biodiversidade, na forma de um preço.

Há duas situações (como a fixação de carbono é baixa em ambas, fica de fora da conta). Parte dessas áreas é de controle público. Nesse caso, a remuneração eventualmente se restringe aos custos de manutenção. Mas, onde as áreas naturais estão em propriedade privada, há um custo extra a ser remunerado: a restrição do uso da propriedade. É um ônus real, mas não deve ser um limite estrito – senão se mantém a atual indução de mercado para destruir a área natural e buscar rentabilidade com outro uso. O financiamento ideal, nesse caso, é um pagamento, via mercado ou impostos, com receitas vindas de pessoas que exploram alterações no espaço natural.

A emergência atual obriga a pensar em outra alternativa: restaurar florestas em áreas degradadas. Nesse caso, além dos custos já mostrados, há necessidade de capital, trabalho e tecnologia, além de contratos jurídicos estáveis. O objetivo desse arranjo econômico é produzir uma mercadoria, o carbono fixado. O preço a ser pago é o da tonelada de carbono fixada a cada ano.

Todas são formas para, regulando fluxos de pagamento com preços suportáveis, irem transformando natureza saudável em parte das responsabilidades da economia de mercado. Alternativas capazes de fornecer recursos, gerar alternativas palatáveis para negacionistas ambiciosos – ou suportáveis para amantes da natureza preservada.

*Escritor, é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL)

 

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