O Estado de S. Paulo
Alternativas palatáveis para negacionistas
ambiciosos ou suportáveis para amantes da natureza preservada
As questões transcendentes sobre uma nova
relação entre homem e natureza são muitas, precisam ser resolvidas – mas estão
muito além do razoável, quando é preciso lidar com os problemas do dia a dia.
São esses que mais exigem esforço, especialmente, como é meu caso, quando as
viagens intelectuais na maionese levam para muito longe do mundo real.
Ainda bem que aprendi com Luiz Seabra. Ele tem a sabedoria de poucos quando se trata de pensar grande – mas também pousa a nave com grande competência. Em nossas primeiras conversas, aproveitei a companhia para estender a prosa até fronteiras de mundos nos quais o homem jamais esteve. Muito bom, até ouvir a frase fatal:
“Caldeira, parece claro que vai ser preciso
mudar as relações entre homem e natureza. Mas eu não diria que essa mudança vai
chegar ao ponto de exigir primeiro a abolição da milenar instituição do
mercado. Então, talvez seja o caso de pensar numa solução que funcione ainda no
tempo do mercado...”
Aqui estou, tentando. Posto nessa forma, o
problema passa a ser outro: como internalizar, no funcionamento do mercado, um
trato renovado com a natureza?
As respostas negativas são, de longe, as
dominantes. De um lado, pela definição: negacionismo. Uma atitude intelectual
ao alcance de qualquer pachola: basta fingir que nada está acontecendo para
“resolver” o problema. Não é preciso mais que essa constatação para debater o
assunto, muitas vezes com um discurso que simula grande autoridade e
conhecimento do mundo.
A alternativa igualmente singela é a de
negar, por princípio, qualquer hipótese de solução via mercado. Nesse caso, o
argumento é o de afirmar que agentes do mercado, movendo-se unicamente por
interesse no lucro, não têm qualquer capacidade de proteger a natureza. Essa
posição tem ainda a vantagem de propiciar ao emissor do discurso a
possibilidade de se apresentar como indicador do caminho da abolição do mercado
como alternativa para melhorar a vida da humanidade e recompor o elo perdido
com a natureza e felicidade.
Em qualquer dos dois casos, a natureza real
fica de fora. No primeiro, para ser o que tem sido nos últimos três séculos:
instrumento de saque e depósito de dejetos. No segundo, para ser algo tão
elevado que não pode ser conspurcado pela ambição humana. As duas versões
reduzem “natureza” unicamente ao mundo dos valores. Na primeira, não vale nada;
na segunda vale mais que o dinheiro pode pagar.
O mercado lida com valores, mas não como
princípios últimos. Funciona na base dos preços. Exige deixar de lado as
grandes questões, para cuidar apenas do trivial: há um preço que seja razoável
para pagar, um preço ao alcance do bolso comum? Para além disso, vale o
conselho pétreo de Luiz Seabra.
Seguindo-o, é possível pensar de outra forma:
como lidar com a urgência ambiental, mas com alternativas nas quais se
reconheça que o preço a pagar para conter o aquecimento e equilibrar a
biodiversidade deve ser efetivamente pago no mundo real?
O modo mais razoável que imagino para
responder nessa forma é pensar a relação entre homem e natureza a partir de
custos e benefícios, a serem cobertos por receitas que remuneram tais custos –
embora isso pareça hediondo para principistas, como eu mesmo.
Aplicando a hipótese a florestas e áreas
naturais protegidas: para que elas continuem sendo tão naturais como sempre
foram, existe hoje a necessidade social de impedir que sejam modificadas pela
ação do homem. Vigiar e punir. Controlar severamente as interações com o homem,
pagando homens para fazer isso. Manter tudo incólume gera despesa. Esse custo
deveria ser financiado em função de benefícios como a captura de carbono ou a
manutenção da biodiversidade, na forma de um preço.
Há duas situações (como a fixação de carbono
é baixa em ambas, fica de fora da conta). Parte dessas áreas é de controle
público. Nesse caso, a remuneração eventualmente se restringe aos custos de
manutenção. Mas, onde as áreas naturais estão em propriedade privada, há um
custo extra a ser remunerado: a restrição do uso da propriedade. É um ônus
real, mas não deve ser um limite estrito – senão se mantém a atual indução de
mercado para destruir a área natural e buscar rentabilidade com outro uso. O
financiamento ideal, nesse caso, é um pagamento, via mercado ou impostos, com
receitas vindas de pessoas que exploram alterações no espaço natural.
A emergência atual obriga a pensar em outra
alternativa: restaurar florestas em áreas degradadas. Nesse caso, além dos
custos já mostrados, há necessidade de capital, trabalho e tecnologia, além de
contratos jurídicos estáveis. O objetivo desse arranjo econômico é produzir uma
mercadoria, o carbono fixado. O preço a ser pago é o da tonelada de carbono
fixada a cada ano.
Todas são formas para, regulando fluxos de
pagamento com preços suportáveis, irem transformando natureza saudável em parte
das responsabilidades da economia de mercado. Alternativas capazes de fornecer
recursos, gerar alternativas palatáveis para negacionistas ambiciosos – ou
suportáveis para amantes da natureza preservada.
*Escritor, é membro da Academia Brasileira de
Letras (ABL)
Ok
ResponderExcluirExcelente!
ResponderExcluir