Valor Econômico
Os números do Censo sugerem uma situação em
que a maioria da população não se reconhece nas autodefinições raciais da
ideologia de afirmação identitária
O Censo Demográfico de 2022 revelou que a
maioria dos brasileiros é parda (45,3%) e não branca (43,5%), como supõem os
brancos, nem preta (10,2%), como passaram a supor os pretos com as redefinições
identitárias das últimas décadas.
Que a pequena diferença percentual entre
pardos e brancos (1,8%) não esconda que há quase 4 milhões mais pardos que
brancos. Como há 4,5 pardos para cada preto. Os números do Censo sugerem uma
situação em que a maioria da população não se reconhece nas autodefinições
raciais da ideologia de afirmação identitária.
O que deve acarretar tensões nessa questão. Para os pretos no desafio de reconhecer que a diferenciação por cor da sociedade brasileira é diferente da suposta e que há dela outras vítimas ainda que de injustiças substantivamente diferentes das que tão acentuadamente alcança o preto.
A questão da compreensão e das reivindicações
não é raça nem cor, que na diferenciação de cor indicam que a discriminação
racial no Brasil acarreta diferentes modalidades de violência e de sofrimento
para suas vítimas.
Pretos podem ganhar um poderoso aliado em
suas demandas se reconhecerem como vítima também o outro que há nas diferenças
sociais. O que não quer dizer que todos os pardos são vitimados pelos mesmos
sofrimentos sociais dos pretos. Há pardos e pardos.
É significativo que a população preta tenha
crescido de 7,6% para 10,2%, enquanto a população parda cresceu 12%. Portanto,
estamos em face de oscilações demográficas que alteram o cenário do poder e das
reivindicações sociais. As indevidamente chamadas minorias não são minorias nem
numéricas nem políticas nem sociais.
Há um fator político que sugere a prudência
desse reconhecimento do outro como aliado de reivindicações. O município é o
núcleo do sistema político brasileiro e não as categorias identitárias, nem
mesmo a de classe social. O Censo revelou que em 3.245 municípios (58,3%) a
maioria é parda, em 33 a maioria é indígena e apenas em 9 a maioria é preta.
A concentração regional das diferenças de cor
da população é um dado politicamente importante. Os pardos são mais do que a
média nacional no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste, isto é nas regiões
sertanejas e historicamente indígenas. Nessas regiões os brancos estão abaixo
da média nacional. O Sul é intensamente branco, mesmo quando se trate dos
brancos privados dos privilégios da brancura.
A brancura deixou de ser o refúgio de uma
identidade ideológica, não propriamente racial ou étnica. A verdade é que o
Brasil nunca foi um país de brancos. Mesmo a elite propriamente brasileira
nunca foi branca.
Durante todo o período colonial e mesmo no
imperial a elite foi mameluca, mestiça de branco e índia, isto é parda. Mas os
pardos confinados nos aldeamentos, descidos do sertão, aparecem
depreciativamente definidos como bastardos, isto é, moralmente inferiores,
ínfimos. Os bandeirantes que os caçaram e os fizeram índios administrados,
servos, se tornaram a elite do poder colonial, eram mamelucos, isto é pardos.
As diferenciações e as distinções sociais não
eram primariamente de natureza racial, porque as degradações sociais tinham
categorias próprias. O que hoje chamamos de brancos eram os puros de sangue e
de fé, como nobres pobres que aparecem mencionados entre os que recebiam
esmolas dos monges de São Bento, citados como “moços limpos vindos de
Portugal”.
Sendo majoritariamente pardos, voltamos à
nossa primeira identidade formalmente reconhecida por Pero Vaz de Caminha,
escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral. Numa carta ao rei de Portugal, Dom
Manoel I, de final de abril de 1500, alguns dias depois da descoberta do
Brasil, disse ele: “A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de
bons rostos e bons narizes, bem-feitos”.
A definição de negro não era definição da cor
da pele, mas da sujeição. Negro era sinônimo de escravo, mesmo que não fosse
ele africano. O índio escravizado era definido como “negro da terra”.
Baseado em autodefinições, é possível que
muitos que se identificaram ao recenseador como pardos sejam de fato mestiços
de preto. Mas os verdadeiros pardos têm critérios muito próprios para assim se
definirem, como pude observar: os vários traços fenotípicos que distinguem
pardos de pretos: a pele azeitonada e os zigomas salientes dos pardos.
É significativo que, quando do julgamento da
questão das cotas raciais na Universidade de Brasília, pelo STF, um movimento
social do Norte do país interferiu como “amici curiae” para pedir que a Corte
não confundisse pardo com preto. A regionalidade da cor da pele vem se tornando
mediação dominante na definição do peculiar da cor na definição política de
identidade social.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).
Perfeito.
ResponderExcluirExcelente!
Barafunda.
ResponderExcluirInteressante, mas o colunista atribui as mudanças apenas a "oscilações demográficas", o que é um erro grosseiro, pois também certamente ocorreram expressivas mudanças na maneira como muitas pessoas se autodeclararam nos diferentes censos, na medida em que a negritude (ou algo similar) passou a ser mais aceita e/ou valorizada pela legislação e pela grande mídia, além da própria melhor compreensão da sua origem por parte de muitos brasileiros que antes não consideravam isto importante ou merecedor de reflexão.
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