segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Michel Temer* - O semipresidencialismo

O Estado de S. Paulo

Ao longo do tempo vários fatores se desenharam para fortalecer a presença governativa do Parlamento

Fato, valor e norma. Era a lição do professor Miguel Reale quando ressaltava que certos fatos vão sendo tão valorizados que, em dado momento, são normatizados. Seja: viram leis. É o caso, penso, do semipresidencialismo.

Falava-se pouco desse sistema de governo. Que é semi porque não é o presidencialismo puro, nem o parlamentarismo. É amálgama dos dois sistemas. Com efeito, trata-se de fórmula em que o presidente da República também “reina e governa”, já que recebe atribuições que não significam apenas presença governativa nas relações exteriores, mas tarefas como a chefia das Forças Armadas, a designação do primeiro-ministro e até a possibilidade de sanção ou veto a projetos de lei juntamente com o primeiro-ministro. Mas a função governativa interna, a administração executiva do País, passa para o Poder Legislativo.

Vantagens: a) o presidente continua titular de parcela da tarefa executiva, muito ao gosto do eleitorado brasileiro; b) tem fim o impeachment do presidente da República, o que, sabidamente, gera crises institucionais; c) só existirá governo quando formar-se maioria parlamentar. Seja: se o gabinete (Ministério) perder a maioria parlamentar, outra se forma e novo governo se instala, sem o trauma do impedimento como ocorre no presidencialismo; d) os parlamentares terão responsabilidade pela execução de governo e não apenas pela legislação; e) resolve a questão do grande número de partidos políticos, já que haverá um bloco de situação, que poderá ser integrado por grande número de siglas partidárias, e um bloco de oposição com outro tanto número de siglas partidárias; conceitualmente, serão dois partidos, um situação, outro oposição; f) torna, portanto, mais segura a governabilidade uma vez que no presidencialismo o presidente da República também depende de maioria parlamentar que é extremamente instável; o partido apoia o governo, mas as bancadas se dividem na votação; g) ao buscar a reeleição, o parlamentar, se da situação, dirá “governei bem”, se da oposição, “opusme adequadamente ao governo”. Eleva, portanto, o nível da discussão política no País.

Por que aludi à teoria do fato, valor e norma? Porque ao longo do tempo vários fatores se desenharam para fortalecer a presença governativa do Parlamento. Se antes era considerado espécie de “apêndice” do Executivo, o fato é que, no meu governo, trouxe o Congresso para governar comigo. Não foi outra a razão que me permitiu realizar reformas institucionais antes impensáveis, com a redução dos juros e da inflação.

A preocupação com um presidencialismo esfarrapado (só nestes 35 anos da nova Constituição, tivemos dois impedimentos e mais de 300 pedidos de impeachment) fez com que a Câmara dos Deputados viesse a discutir o semipresidencialismo na legislatura passada, sendo relator o ex-deputado Samuel Moreira. Encerrada a legislatura, o presidente Arthur Lira desarquivou o projeto que poderá, ainda, tramitar. Mas não é só. Juristas do porte dos ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso apoiam a ideia e, por isso, com muita naturalidade surgiram trabalhos acadêmicos em teses dos já doutores João Victor Prasser e Tiago Paes de Andrade Banhos, aprovados em bancas examinadoras. Também nos congressos do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) com a Universidade de Lisboa esse tema foi amplamente discutido. Foi uma das suas principais matérias, a que se deu relevância extraordinária. Mais ainda: o Congresso Nacional assumiu protagonismo cada vez maior. De fora parte ser o responsável pela aprovação do Orçamento, o certo é que se estabeleceram as emendas impositivas que, por determinação legal, hão de ser pagas. Ainda mais: nos últimos tempos, boa parte da destinação das verbas orçamentárias passou a ser controlada pelo Parlamento. Percebe-se, cada vez mais, a ação imperativa (e quase executiva) do Parlamento nacional. Daí por que esses fatos vão ganhando tal relevância que não é improvável que se transformem em normas.

Há, na verdade, outras preocupações, quase objeções. A primeira: a separação de Poderes é cláusula “pétrea” e isso impediria a constitucionalidade do sistema de governo. Ocorre que não há ofensa a essa determinação constitucional. O poder continua tripartido, apenas com conteúdo diverso. Segunda: sendo o nosso sistema bicameral, como se daria a participação do Senado Federal?

Participaria, evidentemente, da aprovação do primeiro ministro. Vota a Câmara dos Deputados e, se aprovado, vai a exame do Senado Federal. O processo de formação das leis continuaria a ser o mesmo. Passam, os projetos, pela avaliação das duas Casas.

Finalmente, a fórmula é a sempre discutida: a) o Congresso Nacional aprova e promulga emenda à Constituição; b) fixa prazo para debate eleitoral; c) depois, é submetida a referendo popular; d) só entrará em vigor nas eleições nacionais de 2030.

Os fatos, tão enaltecidos e valorizados, podem levar à nova normatividade representativa de uma grande reforma política no País.

*Advogado, foi presidente da República


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