segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Brasil deve regular Cannabis medicinal com sensatez

O Globo

Não pode haver um ‘liberou geral’, mas questão de saúde pública não deveria ficar a cargo da Justiça

No ano que passou, 430 mil pacientes usaram a Cannabis medicinal para tratar casos de doenças como epilepsia, dores crônicas ou transtornos neuropsiquiátricos. Houve alta de 130% em relação a 2022. A maior parte dos produtos é importada. Somente no primeiro trimestre, o Ministério da Saúde gastou R$ 768 mil para atender a ordens judiciais e fornecê-los aos pacientes, quase o quíntuplo do gasto de 2021. Até outubro, a Anvisa já emitira 114.782 autorizações de importação, 73,4% a mais que no mesmo período de 2022. A maior despesa tem cabido aos estados: seis unidades da Federação gastaram até outubro R$ 39,1 milhões para atender às ordens da Justiça (R$ 25,6 milhões só em São Paulo).

A corrida ao Judiciário acontece porque a atual legislação permite a importação, mas não o cultivo da Cannabis para fins medicinais. O custo é alto — alguns produtos importados podem chegar a R$ 4 mil — a ponto de impedir muitas famílias de usar o tratamento. As estratégias não garantem sucesso. Em geral, os médicos precisam detalhar os motivos para uso do produto e atestar que já tentaram outros tratamentos. Muitos pacientes procuram a Justiça também em busca de autorização para cultivar a planta em casa. Mas isso ainda é proibido no Brasil.

As dificuldades, aliadas à demanda crescente, têm levado alguns estados a aprovar leis para fornecer os produtos no SUS. São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal já dispõem de legislação sobre o assunto. Sem dúvida é um avanço, mas a questão não se encerra aí. Às vezes, existe a lei, mas não a regulamentação. Na prática, isso acaba privando os pacientes. Não é uma questão simples. Faltam diagnósticos sobre as doenças para as quais o tratamento é recomendado e padronização dos produtos. Muitos não têm indicação clínica específica e não foram submetidos a testes rigorosos, daí serem tratados pela Anvisa como “produtos de Cannabis”, e não como remédios.

É verdade que, em muitos casos, ainda faltam evidências científicas que comprovem a eficácia do tratamento com esses produtos à base de Cannabis. Mas não se pode ignorar que eles já são usados por milhares de brasileiros. Dezenas de associações reúnem pacientes com o objetivo de obtê-los. O plantio controlado da Cannabis, que baratearia a produção e tornaria o tratamento mais acessível, ainda depende de ordens judiciais frágeis, sujeitas aos humores das diversas instâncias e desvãos do Judiciário brasileiro.

A Justiça não é a instituição adequada para regular uma questão de saúde. Ainda que o simples debate cause desconforto em grupos conservadores, a questão precisa ser encarada. Ignorar demandas legítimas da sociedade por motivação ideológica, ignorância ou preconceito não costuma ser o melhor caminho para resolvê-las, pois elas não desaparecerão. É hora, portanto, de tratar o tema com seriedade e sem preconceito. Sem regulamentação ou com normas frágeis, impera a desorientação e a insegurança nos tratamentos. Evidentemente, não é o caso de um “liberou geral”, mas de uma regulação cautelosa e sensata. Fechar os olhos é a pior solução.

Com fim do sonho Ancelotti, a CBF deveria definir logo técnico da seleção

O Globo

Preparação para a Copa de 2026 precisa começar se Brasil quiser manter viva a chance do hexa

Para a seleção brasileira de futebol, o Ano-Novo começa num clima de incerteza. Considerando as confusões engendradas pelos cartolas, nem a própria CBF arrisca dizer o que será de 2024. Muito menos quem comandará nossos talentosos jogadores rumo à Copa de 2026, que pela primeira vez será disputada em três sedes (Estados Unidos, Canadá e México).

Em meio a um jejum de títulos que dura mais de duas décadas — a última taça foi erguida em 2002, por Cafu, Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho e companhia —, a torcida brasileira ficou empolgada quando a CBF informou ter firmado um acordo verbal com o italiano Carlo Ancelotti, técnico do estrelado Real Madrid, para que ele assumisse a seleção a partir da Copa América, em 2024. Na semana passada, porém, Ancelotti informou ter renovado contrato com o clube espanhol até junho de 2026.

A frustração não surpreende. Sempre que questionado sobre o assunto, Ancelotti driblava os repórteres dizendo que eram apenas rumores. O fiador de sua vinda era o ex-presidente da CBF Ednaldo Rodrigues, afastado do cargo por decisão do Tribunal de Justiça do Rio. Os magistrados consideraram nulo o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre CBF e Ministério Público que permitiu sua eleição. Rodrigues sempre disse que o acordo estava encaminhado. Sem contar com ele no comando, Ancelotti tomou a decisão previsível e ficou onde estava.

Certo mesmo é que a seleção tem hoje apenas um técnico interino, Fernando Diniz. Celebrado nos meios esportivos, Diniz faz um trabalho notável no Fluminense, que conquistou a Taça Libertadores da América e perdeu a final do Mundial de Clubes para o Manchester City. Mas não tem colhido bons resultados na seleção. Nas eliminatórias da Copa do Mundo, vem de um empate com a Venezuela e de derrotas seguidas para Uruguai, Colômbia e Argentina. Na classificação geral, o Brasil amarga um inusitado sexto lugar. Nada que ameace o passaporte para 2026, mas não se pode dar chance ao azar.

Ainda que no final tenha sido frustrada, a procura pelo vitorioso Ancelotti teve o mérito de abrir o leque para estrangeiros no comando da seleção, que não deveria ser monopólio dos brasileiros. Aqui ou no exterior, não faltam profissionais gabaritados para a missão de liderar a única seleção pentacampeã. O Mundial se aproxima, e a preparação precisa começar logo. Seria bom que a CBF, mesmo em período de turbulência, deixasse de lado apostas incertas e definisse logo quem será o técnico. Improviso, despreparo e hesitação só tornarão mais difícil o sonho do hexa.

Partidos custosos

Folha de S. Paulo

Número de siglas cai, o que é bom, mas intensifica-se o avanço sobre o erário

Passam longe de definidas as candidaturas para as eleições municipais que ocorrerão neste incipiente 2024, mas uma coisa é certa: se depender do Congresso Nacional, a farra com o recurso público nas campanhas está garantida.

Deputados e senadores embutiram no Orçamento do ano que começa a previsão de nada menos que R$ 5 bilhões para o fundo eleitoral, um dinheiro que sai do bolso do contribuinte na forma de impostos e, numa simples canetada, cai na conta dos partidos políticos.

A pândega ainda poderá ser vetada pelo presidente Lula (PT), mas nada indica que o fará, considerando-se não só a instabilidade de sua base no Parlamento mas também o apoio ecumênico à gastança. A votação do fundo eleitoral contou com o beneplácito de todas as siglas, do PT ao PL —passando, obviamente, pelas do centrão.

Verdade que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), até se manifestou contra a iniciativa. "As pessoas não compreenderão por que, em 2020, em uma mesma eleição municipal, foram R$ 2 bilhões", afirmou. Se corrigida pela inflação, a cifra estaria agora em torno de R$ 2,5 bilhões.

Mas foi em vão. Os parlamentares nem se dão ao trabalho de explicar o aumento exorbitante.

O aspecto positivo das eleições recentes têm sido a tendência de redução do número de partidos, graças à adoção de uma cláusula de desempenho que barra o acesso a recursos públicos de siglas que não atingem votações mínimas.

Esse expediente contribuiu, por exemplo, para que a quantidade de legendas representadas na Câmara, depois de atingir um recorde de 30, hoje seja de 16 —aí incluídas as federações. O processo precisa continuar, de modo a reduzir os custos da formação de coalizões.

A distorção que persiste, entretanto, é a corrida aos fundos públicos, que confere poder excessivo às burocracias partidárias.

São os líderes, afinal, que decidirão sobre a distribuição dos recursos —e todo político sabe que o financiamento de campanha é decisivo para sua chance de sucesso.

Adicione-se o recorde de R$ 53 bilhões em emendas parlamentares a serem gastos no primeiro semestre e pode-se imaginar o tamanho da distorção que essas cifras provocarão nas disputas municipais.

Pior: seja no caso do fundo eleitoral, seja no das emendas, o destino da dinheirama se define com pouco sentido democrático e ainda menos racionalidade administrativa, em benefício não do eleitor nem das políticas públicas, e sim dos deputados e senadores que comandam a máquina.

Ao se opor ao aumento do fundo eleitoral, o presidente do Senado afirmou que a medida ensejaria discussões sobre a volta das doações por empresas. Esse é, de fato, um debate a ser considerado, desde que contemple limites nominais e regras de transparência.

Verão impróprio

Folha de S. Paulo

Balneabilidade das praias expõe descaso com saneamento; novo marco é esperança

praia do Leblon não ostenta só a vista do morro Dois Irmãos, uma das paisagens mais admiradas do Rio de Janeiro. Com águas do mar de qualidade ruim nos três pontos de medição, ela oferece ainda uma síntese dos atrasos que marcam o saneamento básico no país.

O dado consta do levantamento realizado há oito anos por esta Folha, com dados de governos locais, e publicado a cada verão. Ao todo, são 1.350 pontos de monitoramento em todo o litoral brasileiro.

Das 58 praias avaliadas na chamada Cidade Maravilhosa, apenas 4 obtiveram classificação anual boa.

Outras 17 caíram na categoria das regulares, e as demais 35 (2 ficaram sem medição), para surpresa de poucos, ruins ou péssimas.

A sempre prometida despoluição da baía de Guanabara vai atrasar dois anos. Agora está marcada para 2028. Uma miragem que sempre se distancia (como a limpeza do rio Tietê na capital paulista).

A condição praiana vexatória está à vista de todos, como nas restantes dez capitais estaduais situadas no litoral. Nos 337 locais de medição de balneabilidade dessas cidades, apenas 47 (14%) indicaram qualidade boa.

Considerando todas as praias monitoradas no Brasil, o indicador é um pouco melhor: 32% aceitáveis. Os outros dois terços se dividem entre regulares, ruins e péssimas.

Não há espanto, como deveria haver, porque a população se acostumou com a incúria do poder público no setor de coleta e tratamento de esgotos. Percebe-se algo de errado quando eleitos e eleitores ignoram indicador tão óbvio de eficiência governamental.

Nesse quesito, estamos todos reprovados. Em pleno século 21, só 55,8% da população conta com rede de esgotamento sanitário, segundo o Instituto Trata Brasil. E não mais de 51,2% dos dejetos gerados recebem o tratamento adequado.

O panorama melhora, mas de modo sobremaneira lento. Em três décadas (1989-2017), a parcela de municípios com rede de coleta de esgotos foi de 47,3% a 60,3%. Parece difícil a meta de universalizar o saneamento no ano 2033.

As esperanças residem no novo marco do setor, que amplia as possibilidades de participação privada e atração de investimentos. O passado ensina que só a gestão estatal do saneamento foi incapaz de cumprir a missão civilizatória.

É hora de encerrar inquéritos contra golpistas

O Estado de S. Paulo

Com quase cinco anos, inquérito do STF sobre ‘fake news’ precisa ter fim, bem como demais investigações sobre golpistas; circunstância atual não justifica mais essa atuação excepcional

Em março deste ano, completará cinco anos o Inquérito (Inq) 4.781/DF aberto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para apurar fake news e ameaças veiculadas na internet contra a Corte e seus ministros. Desde então, outras investigações criminais foram instauradas no âmbito da Corte constitucional, como o Inq 4.874/DF que, desde julho de 2021, investiga a atuação de milícias digitais contra o Estado Democrático de Direito.

Ainda que possuam objetos de investigação diferentes, esses inquéritos têm fortes semelhanças entre si. Sigilosos e sob a mesma relatoria do ministro Alexandre de Moraes, todos eles foram de grande utilidade na defesa das instituições democráticas. Em momentos dramáticos, em que a Procuradoria-Geral da República (PGR) dedicou-se à omissão – Augusto Aras não via nada de anormal no País –, essas investigações permitiram que o STF atuasse pronta e diligentemente na proteção da democracia e da Constituição, ante os insistentes ataques contra as eleições e a separação de Poderes.

Junto a seus inegáveis méritos, esses inquéritos também geraram pontos menos louváveis, com interpretações extravagantes sobre as competências da Corte e os limites dos próprios procedimentos investigativos. Por exemplo, no primeiro semestre do ano passado, eles foram usados para remover da internet conteúdo sobre projeto de lei em tramitação no Congresso (o PL das Fake News) e para investigar falsificação de cartão de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro. Nas duas situações, houve evidente uso irregular dos inquéritos do Supremo, com o descumprimento de regras básicas da legislação brasileira.

Elaborar um diagnóstico preciso a respeito desse quadro de luzes e sombras envolvendo a atuação do STF é tarefa ainda a ser realizada. Até mesmo porque os inquéritos são todavia sigilosos. Não se conhece toda a extensão dos ataques, tampouco o alcance das medidas tomadas pela Corte. De toda forma, há dois pontos indiscutíveis: as circunstâncias do País são outras – aquelas ameaças ao regime democrático já não existem mais – e os inquéritos criminais têm de ter prazo para acabar – não podem permanecer indefinidamente no tempo.

Isso tudo conduz a uma cristalina e pacífica conclusão: é tempo de os inquéritos criminais no STF relativos a ataques antidemocráticos serem encerrados, de acordo com o que determina a lei. Havendo indícios de autoria e materialidade delitiva, que se proceda ao indiciamento dos investigados, com o encaminhamento dos casos ao Ministério Público. Nos casos em que não houver os indícios mínimos, que se proceda ao arquivamento.

O Supremo cumpre seu papel em defesa da Constituição não apenas quando abre um inquérito para apurar atos antidemocráticos, mas também quando encerra essa investigação, dando o devido encaminhamento. Desde março de 2019, este jornal sempre reconheceu a existência de fundamento jurídico que justificasse a competência do STF nessas investigações. No entanto, não existe fundamento jurídico para tornar esses inquéritos perpétuos, menos ainda para, valendo-se deles, concentrar de forma permanente na Corte a competência de todos os casos relativos a crimes contra a democracia.

Além da questão jurídica – inquéritos devem respeitar os trâmites e limites legais –, o encerramento dessas investigações tem também uma evidente dimensão social e política, que o STF não pode ignorar. Não faz bem ao País – nem ao Supremo – um permanente e extravagante protagonismo da Corte constitucional. Se houve, nos últimos anos, circunstâncias excepcionais – que felizmente o STF soube detectar a tempo –, é preciso reconhecer quando elas já não se fazem presentes. Para piorar, esses inquéritos promovem um protagonismo concentrado num único ministro, Alexandre de Moraes, o que distorce a percepção sobre o Judiciário, além das evidentes fragilidades para a imagem da Corte.

Medida processualmente correta, encerrar os inquéritos é um gesto que fortalece a autoridade do STF e distensiona o País. As águas devem voltar ao seu leito normal.

Um avanço pela metade

O Estado de S. Paulo

A exclusão de agricultura e pecuária reduziu a abrangência do mercado regulado de carbono no Brasil, mas não diminuiu a importância da medida

A criação do mercado de carbono, aprovada pela Câmara, foi um avanço pela metade ao referendar a exclusão de agricultura e pecuária, como havia determinado o Senado. Mesmo assim, foi um dos principais saldos positivos do Legislativo em 2023 por destravar um projeto fundamental para que o País cumpra as metas de redução da emissão de gases causadores do efeito estufa assumidas no Acordo de Paris, em 2015.

Sem a concessão à agropecuária, certamente a discussão, que se arrastava lentamente, não teria sido concluída, com a aprovação do PL 412 por 229 a 103 votos na Câmara. Afinal, com 324 dos 513 deputados federais e 50 dos 81 senadores, a Frente Parlamentar Agropecuária é a mais numerosa do Congresso.

Portanto, foi a solução possível. E não foi pouca coisa.

O setor agropecuário continuará participando do mercado voluntário de carbono, que consiste, por exemplo, na compra e venda de créditos de carbono atrelados à redução de desmatamento ou a reflorestamento, mas sem a necessidade de seguir as obrigações impostas na legislação. O argumento dos produtores é de que não há como medir ou controlar segmentos importantes da atividade.

O argumento não é despropositado, a despeito das críticas de ambientalistas. De fato, uma pesquisa do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) já apontou como externalidade negativa da pecuária a participação do gado em mais de 40% das emissões de gases do efeito estufa (GEE). No mundo, as estimativas são de que o rebanho bovino, por causa da grande quantidade de animais, emita em torno de 9% do total desses gases. A particularidade do Brasil é que aqui agricultura e pecuária estão entre as principais atividades econômicas.

O acordo que levou à aprovação, em outubro do ano passado, por unanimidade, do projeto na Comissão de Meio Ambiente do Senado, sem a necessidade de submetê-lo ao plenário da Casa, foi o meio encontrado para fazer avançar no País a agenda ambiental. Na Câmara, o deputado Aliel Machado (PV) tentou reinserir o setor agro entre os agentes do mercado regulado, mas acabou convencido de que o melhor caminho era optar pela evolução possível.

Com a criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases do Efeito Estufa o Brasil ingressará – com atraso, é verdade – num mercado que reúne, de acordo com dados do Banco Mundial, países como Estados Unidos, China, Japão, México e Canadá e que rendeu, em 2022, R$ 56 bilhões de receita. De acordo com o banco, o Brasil tem potencial para gerar receitas de R$ 128 bilhões em dez anos. Mas a principal vantagem será o incentivo à adoção de modelos mais sustentáveis de negócios, uma aposta certa, com ou sem o agronegócio.

O Brasil tem o privilégio de contar com parcela significativa de geração de energia renovável (hidrelétrica, eólica, solar). De acordo com dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) 47,4% da energia produzida é limpa, enquanto a média mundial está em torno de 15%. A instituição de um mercado que servirá para conter o aumento de emissões, por meio de compensações com a aquisição de créditos entre os setores e com o governo, tem potencial para empurrar o País à vanguarda ambiental, apesar de todas as concessões.

O mercado regulado é apenas um dos instrumentos da campanha que move o mundo na busca pela redução dos efeitos climáticos nocivos dos gases jogados na atmosfera – efeitos cada vez mais assustadoramente presentes, como as ondas de calor e o derretimento das calotas polares, fenômenos que colocam em risco a própria existência no planeta.

Fixar um preço para o carbono dá o sinal econômico para que os emissores transformem suas atividades para reduzir a poluição. Ou paguem por isso. Estarão sujeitos à compra ou ao pagamento de pesadas multas aqueles que emitirem acima de 25 mil toneladas de gás carbônico por ano, em torno de 5 mil empresas brasileiras. Mas apenas no fim da década a regulação será efetiva. E aí virá a parte mais importante e também mais difícil de concretizar no Brasil: a fiscalização.

Conteúdo local, de novo

O Estado de S. Paulo

Governo aumenta ao acaso índice de nacionalização em equipamentos do setor de petróleo

Em reunião extraordinária em dezembro, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) decidiu reativar uma estratégia das três gestões anteriores do PT e elevou os porcentuais de conteúdo local para fornecimento de equipamentos para exploração e produção de petróleo. A exigência passou de 18% para 30% na fase de exploração, quando estão sendo pesquisadas as reservas, e de 25% para 30% no desenvolvimento da produção, etapa seguinte à descoberta.

Numa demonstração de que o revigoramento do conteúdo local é uma decisão política prioritária do governo, Lula da Silva participou pessoalmente da reunião, acompanhado dos 16 ministros que passaram a compor o CNPE (até o ano passado, eram dez). Assim, o presidente reeditou uma medida que no passado, cercada de muitas críticas, exagerou na dose e não conseguiu entregar os efeitos esperados.

Em seu primeiro mandato, Lula fixou índices entre 33,5% e 42,25%, respectivamente para exploração e produção, exigência que rapidamente foi ampliada para porcentuais entre 80% e 85%. Significa dizer que quase todo o material utilizado para explorar e extrair petróleo nos campos marítimos (offshore) deveria ter fabricação nacional.

Em teoria, uma opção de política industrial – verticalizada, é verdade, por abranger apenas fornecedores de um único setor. Na prática, uma medida fora da realidade por vários motivos, a começar pela complexidade da atividade petrolífera, que exige um nível de tecnologia e capacitação para a qual a indústria nacional não estava preparada.

Quando o País ingressou em outro patamar exploratório, a partir da década de 2010, pouco depois da descoberta do pré-sal, a situação ficou ainda mais complicada, mas o governo ignorou e seguiu com o que imaginava que seria o seu trampolim para mergulhar na competição internacional. Era excesso de confiança ou desconhecimento esperar que, num estalar de dedos, a indústria brasileira escalasse essa produtividade. O saldo real foi uma frustração de expectativas, em termos de qualidade das entregas, prazos e preços.

Com o pré-sal, os trabalhos exploratórios no mar, antes em profundidades em torno de 3 mil metros, desceram a mais de 6 mil metros, o que exigiu aperfeiçoamento tecnológico da Petrobras. Os investimentos da empresa, que em 2006 já ultrapassavam US$ 11 bilhões, pularam para US$ 40 bilhões. Era o momento de o governo, já sob a Presidência de Dilma Rousseff, rever essa política tão deslocada da realidade. Bastava retroceder um pouco para tentar avançar mais adiante. Não aconteceu, e a Petrobras ficou refém do conteúdo local.

Exceções foram necessárias para cobrir as lacunas. E foram tantas que a capacidade de fiscalização da regra, já deficiente, ficou absolutamente comprometida. Agora, o governo retoma a mesma política, sem sequer discutir com os agentes envolvidos e sem que se tenha certeza de que a indústria terá capacidade para ampliar sua competitividade em um mercado altamente globalizado. É uma decisão com ares de autoritarismo e açodamento, típica de quem não aprende com os erros.

2024, um ano de desafios

Correio Braziliense

Pautas importantes já estão previstas, como a segunda etapa da reforma tributária, que pretende alterar as alíquotas do Imposto de Renda

É inevitável que, após o descanso das festas e os tradicionais balanços feitos nessa época, o primeiro dia do ano seja o momento de vislumbrar o que se reserva para 2024. A constatação é que os próximos 12 meses serão de desafios sérios e intensos, tanto no Brasil quanto no mundo. Nos assuntos domésticos, três questões deverão mobilizar os esforços e as atenções. O principal: é ano de eleições municipais. Além da preocupação natural que a troca de comando das 5.568 prefeituras brasileiras traz, a polarização que a sociedade brasileira mergulhou nos últimos anos ainda segue extremamente acirrada. A transposição dessa tensão para o plano regional pode levar a uma pulverização de conflitos, com a agressividade exacerbada pelas rivalidades locais, trazendo consequências graves.

Além disso, a relação entre o governo federal e o Congresso deverá continuar de modo ambíguo, com estranhamentos de ambos os lados. O atrito mais recente — o envio de uma medida provisória para acabar com a desoneração da folha de pagamentos, a pedido do ministro da Fazenda, Fernando Haddad — deixou claro como será o ano. O texto foi mal recebido por deputados e senadores, que devem fazer jogo duro na negociação com o Executivo. O problema é que pautas importantes estão previstas, como a segunda etapa da reforma tributária, que pretende alterar as alíquotas do Imposto de Renda — tema de interesse de toda a população.

Por fim, a saúde deverá se impor como um tópico de atenção. O país deve enfrentar, nos próximos meses, um agravamento nos números da dengue. Em 2023, o Brasil bateu o recorde de mortes pela doença, com 1.079 óbitos confirmados pelo Ministério da Saúde, e poderá ter, em 2024, até 5 milhões de casos de dengue, segundo a secretária nacional de Vigilância em Saúde, Ethel Maciel. A incorporação de uma vacina contra a dengue no calendário, para iniciar a aplicação a partir de fevereiro, traz certo alento, assim como o repasse de R$ 256 milhões para secretarias de saúde municipais e estaduais para o combate à doença, mas são ações ainda incipientes diante do tamanho do desafio.

Em termos globais, as guerras em andamento ainda vão causar apreensão e tensão, principalmente porque parecem longe de um desfecho. A invasão da Ucrânia pela Rússia, que prometia ser uma ação rápida de Moscou, está entrando em seu terceiro ano, com o temor de uma escalada que arraste os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para o conflito e o uso de armas nucleares, crescendo a cada dia. Enquanto isso, o confronto entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza, continua desafiando aqueles que buscam uma saída diplomática. Um cessar-fogo parece distante e, enquanto isso, a população civil sofre as graves consequências da guerra.

Além disso, o mundo deverá continuar lidando com transtornos ambientais cada vez mais severos, causados pela mudança climática. Enchentes provocadas por tempestades torrenciais deverão forçar centenas de milhares de pessoas a sair de suas casas. As ondas de calor provavelmente vão se intensificar, e a produção de alimentos enfrentará dificuldades, o que poderá causar uma elevação global nos preços das comidas. Os mais pobres — como sempre — serão os mais penalizados.

Por fim, em novembro, os Estados Unidos vão às urnas para escolher o seu líder. Tudo caminha para uma disputa entre o atual presidente, o democrata Joe Biden, e o ex-presidente, Donald Trump. O republicano ainda enfrenta acusações de ter facilitado a invasão do Capitólio, em Washington, em janeiro de 2021, o que pode acabar levando a uma retirada de sua candidatura pela Suprema Corte, e a uma batalha jurídica de resultado ainda incerto.

Resta, portanto, saber como o Brasil e o mundo vão se portar diante de todos os desafios que 2024 apresenta. Que não falte sabedoria a todos os envolvidos.

 

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