sábado, 20 de janeiro de 2024

Pablo Ortellado - A armadilha populista

O Globo

Bolsonaro deixou o recado para os manifestantes nas entrelinhas

O populismo de direita, em todo o mundo, tem atraído as instituições democráticas para uma armadilha. Quem mostrou como funciona a armadilha foi o jornalista Ezra Klein em seu podcast no jornal The New York Times.

Enquanto o líder populista ataca instituições como imprensa e Judiciário, acusando-as de ser parciais, adota um discurso ambíguo, que flerta com a ruptura institucional, sem jamais ser explícito. Quando as instituições reagem e adotam uma postura ativa contra essas movimentações antidemocráticas, o líder populista vê confirmadas, perante seu público, as acusações de que elas são parciais e o perseguem — afinal, ele nunca foi (explicitamente) antidemocrático.

Klein não chega a dizer, mas as consequências de cair na armadilha são perturbadoras. A denúncia contínua das reações “excessivas” da imprensa, da Justiça, do Ministério Público e da polícia vai confirmando na base de apoio populista a convicção de que o líder é perseguido e de que o programa populista jamais será aceito dentro da ordem democrática liberal. No médio prazo, esse sentimento de que a posição populista não tem espaço vai consolidando na base o entendimento de que será preciso uma nova ordem política para acomodar a “vontade do povo”. É nesse momento que a ruptura com a ordem democrática está madura para acontecer.

Klein se referia à estratégia de Trump, mas o diagnóstico vale integralmente para Bolsonaro. Peguemos como exemplo o 8 de Janeiro. Bolsonaro nunca exortou diretamente os manifestantes a participar do 8 de Janeiro ou dos eventos que o prepararam.

Depois das eleições, manteve um silêncio de 40 dias enquanto os bloqueios de rodovias se radicalizavam. Oficialmente, o candidato derrotado estava triste e perplexo e se calou. A ala radical do bolsonarismo entendeu esse silêncio, porém, como assentimento para os bloqueios que se multiplicavam protestando contra o resultado das eleições e incitando as Forças Armadas a intervir.

Quando os bloqueios de rodovias encontraram seus limites, e a pressão para Bolsonaro condená-los ficou insustentável, o então presidente deu uma declaração à imprensa em que, sem reconhecer o resultado das eleições, condenou os bloqueios que cerceiam “o direito de ir e vir” ressaltando, porém, que “manifestações pacíficas são bem-vindas” e que “os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral”.

A declaração foi pura ambiguidade. Ele não reconheceu o resultado das eleições e destacou que os protestos eram movidos por um sentimento de injustiça. Porém não disse explicitamente que as eleições haviam sido fraudadas e não incitou diretamente seus apoiadores a seguir protestando. Mas seus apoiadores radicais entenderam que deveriam suspender os bloqueios e adotar outra forma de protesto — que terminou assumindo a forma dos acampamentos nos quartéis, convocados para o dia seguinte à declaração.

Uma semana depois, Bolsonaro foi ao encontro de apoiadores e produziu mais ambiguidade. Dirigindo-se a quem o apoiava, disse que “quem decide o meu futuro” e “quem decide para onde vão as Forças Armadas” são vocês. Lembrou que era “o chefe supremo das Forças Armadas” e que elas “estavam unidas”, deviam “respeito à Constituição” e eram “os últimos obstáculos para o socialismo”. Mais uma vez, não exortou diretamente os manifestantes a pressionar as Forças Armadas a intervir para reverter o resultado das eleições, mas deixou o recado nas entrelinhas.

Quando olhamos em retrospectiva, é possível contar a história da crise depois das eleições de duas maneiras. Numa leitura, Bolsonaro não reconhece o resultado das urnas, se cala diante de bloqueios de rodovias cada vez mais violentos, estimula manifestações em frente aos quartéis pedindo intervenção militar e prepara o caminho para a invasão golpista das sedes dos três Poderes.

Mas é igualmente possível fazer outra leitura. Nela, Bolsonaro fica perplexo com o resultado e mantém um silêncio obsequioso. Em momento algum estimula bloqueios de rodovias e chega mesmo a condená-los. Fica feliz com as manifestações em frente aos quartéis, mas sempre defende que fiquem dentro das quatro linhas da Constituição. Quando o 8 de Janeiro acontece, condena a violência, mas avalia que aquilo jamais poderia ser considerado um golpe de Estado.

O desafio das instituições democráticas é reagir à armadilha com inteligência e cautela, sabendo que o líder joga com a ambiguidade: mandará mensagens radicais aos extremistas e parecerá moderado para a maioria. Se a reação institucional errar a mão, alimentará o discurso de perseguição e viés político — e, involuntariamente, preparará a ruptura institucional com a democracia liberal, numa espécie de profecia autorrealizável.

 

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