O Globo
Bolsonaro deixou o recado para os
manifestantes nas entrelinhas
O populismo de direita, em todo o mundo, tem
atraído as instituições democráticas para uma armadilha. Quem mostrou como
funciona a armadilha foi o jornalista Ezra Klein em seu podcast no jornal The
New York Times.
Enquanto o líder populista ataca instituições como imprensa e Judiciário, acusando-as de ser parciais, adota um discurso ambíguo, que flerta com a ruptura institucional, sem jamais ser explícito. Quando as instituições reagem e adotam uma postura ativa contra essas movimentações antidemocráticas, o líder populista vê confirmadas, perante seu público, as acusações de que elas são parciais e o perseguem — afinal, ele nunca foi (explicitamente) antidemocrático.
Klein não chega a dizer, mas as consequências
de cair na armadilha são perturbadoras. A denúncia contínua das reações
“excessivas” da imprensa, da Justiça, do Ministério Público e da polícia vai
confirmando na base de apoio populista a convicção de que o líder é perseguido
e de que o programa populista jamais será aceito dentro da ordem democrática
liberal. No médio prazo, esse sentimento de que a posição populista não tem
espaço vai consolidando na base o entendimento de que será preciso uma nova
ordem política para acomodar a “vontade do povo”. É nesse momento que a ruptura
com a ordem democrática está madura para acontecer.
Klein se referia à estratégia de Trump, mas o
diagnóstico vale integralmente para Bolsonaro. Peguemos como exemplo o 8 de
Janeiro. Bolsonaro nunca exortou diretamente os manifestantes a participar do 8
de Janeiro ou dos eventos que o prepararam.
Depois das eleições, manteve um silêncio de
40 dias enquanto os bloqueios de rodovias se radicalizavam. Oficialmente, o
candidato derrotado estava triste e perplexo e se calou. A ala radical do
bolsonarismo entendeu esse silêncio, porém, como assentimento para os bloqueios
que se multiplicavam protestando contra o resultado das eleições e incitando as
Forças Armadas a intervir.
Quando os bloqueios de rodovias encontraram
seus limites, e a pressão para Bolsonaro condená-los ficou insustentável, o
então presidente deu uma declaração à imprensa em que, sem reconhecer o
resultado das eleições, condenou os bloqueios que cerceiam “o direito de ir e
vir” ressaltando, porém, que “manifestações pacíficas são bem-vindas” e que “os
atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça
de como se deu o processo eleitoral”.
A declaração foi pura ambiguidade. Ele não
reconheceu o resultado das eleições e destacou que os protestos eram movidos
por um sentimento de injustiça. Porém não disse explicitamente que as eleições
haviam sido fraudadas e não incitou diretamente seus apoiadores a seguir
protestando. Mas seus apoiadores radicais entenderam que deveriam suspender os
bloqueios e adotar outra forma de protesto — que terminou assumindo a forma dos
acampamentos nos quartéis, convocados para o dia seguinte à declaração.
Uma semana depois, Bolsonaro foi ao encontro
de apoiadores e produziu mais ambiguidade. Dirigindo-se a quem o apoiava, disse
que “quem decide o meu futuro” e “quem decide para onde vão as Forças Armadas”
são vocês. Lembrou que era “o chefe supremo das Forças Armadas” e que elas
“estavam unidas”, deviam “respeito à Constituição” e eram “os últimos
obstáculos para o socialismo”. Mais uma vez, não exortou diretamente os
manifestantes a pressionar as Forças Armadas a intervir para reverter o
resultado das eleições, mas deixou o recado nas entrelinhas.
Quando olhamos em retrospectiva, é possível
contar a história da crise depois das eleições de duas maneiras. Numa leitura,
Bolsonaro não reconhece o resultado das urnas, se cala diante de bloqueios de
rodovias cada vez mais violentos, estimula manifestações em frente aos quartéis
pedindo intervenção militar e prepara o caminho para a invasão golpista das
sedes dos três Poderes.
Mas é igualmente possível fazer outra
leitura. Nela, Bolsonaro fica perplexo com o resultado e mantém um silêncio
obsequioso. Em momento algum estimula bloqueios de rodovias e chega mesmo a
condená-los. Fica feliz com as manifestações em frente aos quartéis, mas sempre
defende que fiquem dentro das quatro linhas da Constituição. Quando o 8 de
Janeiro acontece, condena a violência, mas avalia que aquilo jamais poderia ser
considerado um golpe de Estado.
O desafio das instituições democráticas é
reagir à armadilha com inteligência e cautela, sabendo que o líder joga com a
ambiguidade: mandará mensagens radicais aos extremistas e parecerá moderado
para a maioria. Se a reação institucional errar a mão, alimentará o discurso de
perseguição e viés político — e, involuntariamente, preparará a ruptura
institucional com a democracia liberal, numa espécie de profecia
autorrealizável.
PERFEITO!
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