O Globo
Tempos natalinos e carnavalescos são tempos,
reitero, de gastar em vez de economizar e do desfilar exibicionista
Quando eu era jovem e metido a teórico da vida social, escrevi no livro “Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro”, em 1979, que havia três modos de ritualizar. O primeiro, reforçando os elos sociais existentes; o segundo, neutralizando vínculos estabelecidos; e o terceiro — certamente o mais divertido e contraditório —, invertendo rotinas e fazendo tudo ao contrário. Cantar, em vez de discursar; desfilar dançando, em vez de trotar firme para o emprego; beber, pular e ficar “sem fazer nada”, em plena liberdade, em vez de trabalhar; e, por fim, mas não por último, instituindo o Rei Momo como desgovernante, esquecendo esses nossos administradores estadomaníacos, dedicados a desmanchar o feito e fazer desmanchando, com a conhecida ineficiência e o gozo dos privilégios de seus cargos.
No primeiro caso, vivemos solenidades; no
segundo, lutos, despedidas e rejeições; no terceiro, revoluções e rebeliões
que, no caso brasileiro, se concretizam em carnavais e nessa festa ou ritual de
passagem do ano velho para o ano novo. Trânsito carnavalesco e musicado que
acasala a fluidez do tempo que passa invisível e incessante com a música que,
num sentido profundo, o imita, ajudando a esquecer frustrações.
Esse fazer pelo avesso — vestir uma fantasia,
comer coletivamente uma mesma comida numa comunhão de corpos e almas — inventa
esses tempos que acabamos de viver. Tempos especiais quando abandonamos o que
fazemos rotineira e “naturalmente”, para oferecer presentes e comidas
especialmente preparadas, que devem ser obrigatoriamente degustadas. Esses
pratos especiais imperativos e irrecusáveis — tortas, assados, nozes, passas
que viram “comidas” especiais — são comidas que nos comem!
Tal como o bolo de aniversário do Marquinho
(que docemente representa sua pessoa) tem que ser comido e — claro está! — come
e, dessa maneira, congrega seus convidados.
Essa abertura para o outro e o gentil
canibalismo de ser comido pela comida que se come são centrais na ceia do
Ano-Novo.
Ela é vital na reinvenção do tempo. No caso
brasileiro, é evidente o papel da comida em encontros ritualizados em que a
mesquinhez política e a sovinice do economizar cedem lugar ao “dar” presentes —
“lembranças” e comidas ao lado do abrir a porta da casa, indo além dos parentes
que comungam conosco sendo comidos — repito — pela mesma comida. A
comensalidade vira pelo avesso diferenças, como já havia demonstrado William
Robertson Smith em seu clássico estudo da comensalidade entre os semitas.
Tempos natalinos e carnavalescos são tempos,
reitero, de gastar em vez de economizar e do desfilar exibicionista no lugar de
trabalhar sem louvor e recompensa equitativa. Neles, o arroz com feijão comido
em família de olho na dieta é cerimonialmente substituído por pratos afinados
com o “tempo”.
A bacalhoada suculenta da Mara, o
irresistível (e complicado) peru de Natal do Mário de Andrade, os pavês e
rabanadas obrigatoriamente comidos pelos convidados que transformam a “mesa” da
família numa espécie de “távola redonda” vestida com a melhor toalha, sobre a
qual ficam expostos os “pratos” que nos canibalizam porque são obrigatoriamente
comidos e, no calor da comensalidade, nos devoram. São eles que nos comem,
fazendo com que o “comer pra viver” vire o pantagruélico “viver pra comer”.
A inversão legaliza passar do egoísmo ao
altruísmo de uma “educada” hospitalidade e de tudo o mais que “devemos” aos
convidados. Alguns deles, por sinal, nossos opositores no estúpido pantanal da
“política”.
No ritualizar, o abandono das rotinas —
daquilo que fazemos “sem pensar” ou “naturalmente” — é central. Por meio dessa
inversão, reiteramos afeto e encapsulamos o tempo. Mudar rotinas, passando do
trabalho à festa, ajuda a sentir o tempo que, como a água, não pode ser
cortado. Mas pode ser, como acabamos de experimentar, aprisionado nos
calendários.
Curioso, todavia, assinalar que capturamos o
invisível tempo e passamos de um ano a outro, mas não conseguimos mudar o velho
Brasil concreto e vexaminoso na sua estadopatia geradora da pobreza que
sustenta o populismo e a corrupção.
Feliz ano-novo!
Quando era jovem, o colunista confessa ter sido "metido a teórico da vida social". Eu suponho que, como velho, ele continue! Não é uma crítica, é apenas minha opinião diante da sua coluna de hoje.
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