O Globo
Todo mundo que fez algum acordo de leniência
no tempo em que se combatia a corrupção está animado
Foi bonita a festa de abertura do ano
judiciário, na última quinta-feira. O presidente do Supremo Tribunal
Federal, Luís
Roberto Barroso, arregaçou as mangas e retirou as grades que bloqueavam a
entrada do prédio da Corte. Significado importante: está afastada ameaça de
golpe.
Mas, procurando na imprensa e nas redes
sociais, verifica-se que a notícia amplamente dominante é outra. Trata-se
decisão do ministro Dias Toffoli de suspender o pagamento da multa de R$ 3,8
bilhões com que a ex-Odebrecht, hoje Novonor, se comprometeu no acordo de
leniência de 2016. Toffoli anunciou sua decisão no mesmo dia 1º de fevereiro e
ganhou primeira página em todos os noticiários. No ano passado, ele suspendera
a multa da J&F, de R$ 10 bilhões.
A Odebrecht estava na Lava-Jato. A J&F, não. Era outro processo. Logo, todo mundo que fez algum acordo de leniência, no tempo em que se combatia a corrupção, está animado. Tem gente se preparando para pedir de volta o dinheiro já devolvido à Justiça em razão de confissões variadas de corrupção.
Não se trata, portanto, de caso isolado.
Trata-se do desmonte total do sistema de combate à corrupção. Não se abrem
casos novos, e se dá um jeito de cancelar os antigos.
Também não se trata de caso isolado o
pagamento de vencimentos milionários a juízes e magistrados. O teto salarial do
funcionalismo é o vencimento dos ministros do STF,
R$ 44 mil a partir deste mês. Teto furado. Procurem nos 92 tribunais do país, e
se encontram pagamentos de mais de R$ 1 milhão a juízes e desembargadores.
Vencimentos acima de R$ 100 mil são frequentes.
Como conseguem? Auxílios diversos, férias
vencidas, vantagens pagas retroativamente — sempre conforme decisão dos
próprios juízes.
Em janeiro último, o Tribunal de Contas do
Estado do Rio informou que o conselheiro Domingos Brazão tinha direito a 365
dias de férias por não ter usufruído o benefício entre os anos de 2017 e 2022.
Só por aí, já seria o caso de estranhar: se são seis anos sem tirar férias,
deveriam ter sobrado seis meses de férias. Mas eles têm dois meses por ano.
Logo 12 meses de férias, mais o terço, que podem ser recebidos em dinheiro.
Algo perto do R$ 850 mil, sem correção.
Dir-se-ia: trabalhou seis anos sem tirar
férias, merece.
Ocorre que o conselheiro estava afastado de
suas funções enquanto era alvo de investigações por suspeita de fraude e
corrupção. Não trabalhou, pois. Mas recebeu seus vencimentos, na totalidade e
em dia. É isso que o senhor e a senhora estão pensando: ficou seis anos
recebendo sem trabalhar, recebendo, e agora ganhou direito a férias atrasadas.
É a simples aplicação de regras praticadas
das mais variadas maneiras. Outro pequeno exemplo: o Tribunal de Contas da
União suspendeu o pagamento retroativo do adicional por tempo de serviço,
benefício que havia sido extinto em 2006 e volta agora. Pois, em dezembro
passado, Toffoli derrubou a decisão do TCU,
estendendo o benefício a juízes federais. Custo: R$ 1 bilhão. Os juízes mais
antigos poderão receber até R$ 2 milhões.
Não fica só no dinheiro. A mulher de Dias
Toffoli, a advogada Roberta Maria Rangel, é contratada pela J&F, a mesma
empresa beneficiada por seu marido. Sim, ela não trabalha no caso em questão,
mas isso elimina a suspeição?
De todo modo, está dentro da norma fixada
pelo próprio STF. No ano passado, a Corte, por 7 a 4, flexibilizou as regras de
impedimento e permitiu que magistrados julguem casos em que as partes sejam
clientes de escritórios de cônjuges e parentes. São seis ministros nessa
condição.
E as mordomias público-privadas. Mais um
pequeno exemplo: a Associação Cearense de Magistrados promoveu uma baita festa
de Natal. Com patrocínio e apoio de empresas privadas que têm processos no
Tribunal de Justiça do estado. O presidente da associação, José Hercy Ponte de
Alencar, não viu nada errado. E defendeu a categoria, porque “os magistrados
estão no seu limite, dando seu suor, sangue e trabalho para a população”.
Não é em todo o Judiciário, mas em alguma
parte há um processo de desmoralização.
Misericórdia!
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