sábado, 17 de fevereiro de 2024

Eduardo Affonso -Veados e caranguejos

O Globo

O Brasil é uma grande Andrelândia, aprisionado em modelo binário (e eventualmente paradoxal)

Andrelândia é uma cidadezinha do Sul de Minas, daquelas que poderiam perfeitamente ser o cenário de uma bucólica novela das 7 (no tempo em que novelas das 7 eram bucólicas). O casario colonial se espalha, como as contas de um rosário, em torno da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Porto da Eterna Salvação (é assim que o hino municipal descreve a enorme praça ovalada, mais parecendo uma nau) no centro histórico daquela que um dia foi a Vila Bela do Turvo.

A meio caminho entre Ibitipoca e São Thomé das Letras, Andrelândia não ostenta a natureza intocada de uma nem os toques sobrenaturais da outra. Mas tem algo que a faz única: um bipartidarismo próprio, que — para o bem e, principalmente, para o mal — sobreviveu aos mais de 150 partidos políticos da nossa História.

Nas cédulas e nas urnas eletrônicas, as siglas podiam ser UDN, PR, PL, PSDPTBPCdoBMDB, Arena, PSDB, Novo, PT; na cabeça do eleitor, o voto seria nos veados ou nos caranguejos.

Esta é outra peculiaridade, e remonta ao século XIX, quando um grupo se insurgiu contra a hegemonia do Partido Liberal e fundou o Partido Republicano do Turvo. Os eleitores do primeiro, tradicionalistas, perderam terreno. Andaram para trás, viraram caranguejos. Os do segundo, dando saltos adiante, se autodenominaram veados — e desde então Andrelândia deve ser o único lugar em que esse termo tem uma acepção ideológica.

Emulando as mesquinharias da política nacional (em que Bolsa Família vira Auxílio Brasil para depois voltar ao nome original — que já era um rebranding dos vários programas de transferência de renda de outro governo), as obras dos veados eram abandonadas nas administrações dos caranguejos, e vice-versa. Como a resultante das forças dos que saltavam para a frente e dos que andavam para trás é nula, a cidade estagnou.

O Brasil é uma grande Andrelândia, aprisionado no modelo binário (e eventualmente paradoxal) em que se muda o rótulo, mas os ingredientes permanecem os mesmos. Lá, os veados — outrora reformadores — se acomodaram no PMDB; e foram os tucanos que acolheram os conservadores caranguejos. Mais ou menos como, noutra escala, os “progressistas” defendem estatização, protecionismo, censura — enquanto “reacionários” propõem liberalismo econômico (e um golpe de Estado, de vez em quando).

O mais ilustre dos andrelandenses, o historiador José Murilo de Carvalho (ocupante por quase 20 anos da cadeira 5 da Academia Brasileira de Letras) escreveu que os quatro pecados capitais do Brasil eram a escravidão, o latifúndio, o patrimonialismo e o patriarcalismo. Poderia ter incluído um quinto: o maniqueísmo. Esse que faz com que, em 2024, ainda sejamos divididos entre fascistas e comunistas — categorias do início do século XX, ressuscitadas como espantalhos.

Nesta semana, o apresentador Luciano Huck foi xingado no Xuíter por compartilhar um artigo pró-democracia. Como se sabe, só quem é esquerdista desde criancinha pode — mesmo apoiando ditaduras e terroristas — se considerar um humanista, um democrata.

É o mal de pertencer a uma fauna limitada a cervídeos e crustáceos, que insiste em negar a diversidade, a nuance, a complexidade, a possibilidade de convergência.

Quem souber como superar o estágio de veados x caranguejos em Andrelândia talvez tenha a chave para destravar o Brasil.

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