O Estado de S. Paulo
O ranking da Transparência Internacional é apenas um dado. Mas não deveria ser esquecido rapidamente
Creio que foi Guy Debord, no seu livro A
Sociedade do Espetáculo, que enfatizou pela primeira vez como a percepção dos
governos era mais importante que o que realmente faziam. Esta semana, o Brasil
sofreu um pequeno baque. No ranking da Transparência Internacional sobre
percepção de corrupção, caiu para 104.º lugar entre 180 países. Não estamos bem
na fotografia.
Nos últimos tempos, tenho enfatizado a
necessidade de se preocupar com a imagem das instituições, sobretudo para
evitar súbitas e inesperadas revoltas populares como aconteceu em 2013.
São coisas distintas corrupção e sua percepção pela sociedade. Nesse particular, o chamado orçamento secreto, que vigorou no governo Bolsonaro, foi mais longe, para além de apenas passos suspeitos: a Polícia Federal teve de investigar compra de material robótico para escolas que não tinham internet, superfaturamento de tratores e um escandaloso caso numa cidade do Maranhão onde, para aumentar os repasses de emendas parlamentares, todos os habitantes teriam quebrado o dedo em um ano.
Mesmo sem avaliar o mérito das decisões de
alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, elas deixam no ar um vazio que
deveria ser preenchido com abundantes explicações. Por duas vezes denúncias
contra Arthur Lira, presidente da Câmara, foram aceitas e, depois, rejeitadas
pelo Supremo. Um duplo recuo. O ministro Dias Toffoli anulou uma multa de R$ 10
bilhões da J&F, mais tarde defendida nos EUA pelo ex-ministro da Corte
Ricardo Lewandowski. Tudo isso merecia grande argumentação e, ainda assim, deixa
no ar uma desconfiança que pode aumentar a percepção negativa, mesmo que o
conteúdo das decisões não o seja.
A decisão do Supremo de permitir que os
juízes julguem casos defendidos por parentes é medida que dificilmente escapa
do paredão das dúvidas.
No Executivo, ministros indicados pelo
Centrão, como o das Comunicações, aparecem em várias notícias. Recentemente, um
ministro foi acusado de gastar fortunas em gasolina, com dinheiro da Câmara.
Culpou o posto.
Despotismo cruzado, colocação de mulheres de
políticos em tribunais de contas, uma série de práticas que produzem algumas
notas rápidas, também contribuem para que o Brasil caia no ranking.
Talvez a batalha mais importante nesse
particular esteja se dando no Congresso. Os parlamentares detêm R$ 47 bilhões
do Orçamento. No momento, lutam para que não haja um corte de cerca de R$ 5
bilhões em emendas de comissão, uma espécie de recompensa pelo fim do orçamento
secreto. Só de emendas chamadas PIX, dinheiro enviado para prefeituras, sem
especificação do emprego, eles vão consumir R$ 8 bilhões. Como controlar o uso
deste dinheiro enviado de forma tão, digamos, generosa?
E, como se não bastasse tudo isso, o
Congresso aprovou uma verba de quase R$ 5 bilhões para financiar as eleições
municipais. Devem ser uma das mais caras do mundo. Mesmo no tempo em que eram
financiadas por empresas, o custo das eleições no Brasil rivalizava com o das
norte-americanas.
Já se viu no passado que grandes campanhas
repressivas contra a corrupção não resolvem. A desgraça da Lava Jato é um fator
importante para analisar saídas.
Da mesma forma, grandes lições de moral
entram por um ouvido e saem pelo outro. O caminho mais sensato é analisar esses
dados, compreender que são negativos para atrair investimentos e avaliar os
mecanismos de transparência e controle.
Sempre haverá teses de que nada disso
importa, de que a percepção da corrupção é um problema da classe média e de que
isso é apenas uma nota no pé de página da História.
Apesar da calma política que o País vive nas
ruas, é possível dizer que esta percepção das instituições não é exclusiva das
classes médias: há uma grande base popular que compartilha a desconfiança com
as elites.
O ranking da Transparência Internacional é
apenas um dado. Mas não deveria ser esquecido rapidamente, como tantas coisas
que passam no Brasil. Elas indicam um acúmulo que não é sensato ignorar. Na
história recente do País, esta larga percepção é instrumentalizada por falsos
salvadores. Recentemente, foi a extrema direita que a capitalizou e acabou
respaldando um orçamento secreto.
Desde a redemocratização, com a guerra contra
os marajás,o slogan da ética na política, muitas tentativas falharam.
Talvez seja um passo adiante o fato de a
percepção persistir, mas ter desaparecido a crença em soluções mágicas vindas
da política. A mudança é mais lenta e, possivelmente, muito mais ampla do que
simples troca de governos.
Naturalmente que a política não pode nem deve
ser eliminada dessa equação. Mas, tendo a transparência como instrumento, em
todos os níveis do poder, é a sociedade que deve buscar caminhos, baseada no
simples fato de que paga impostos e tem direito a serviços de qualidade, algo
que a corrupção definitivamente impede.
Por incrível que pareça, algumas pequenas
cidades do Brasil já chegaram a trilhar esse caminho. Estamos num ano eleitoral
e o exemplo de participação local pode acabar inspirando movimentos mais
amplos.
É sempre bom lembrar que a qualidade da
política piora quanto mais as pessoas comuns dão as costas para ela.
Verdade.
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