segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Irapuã Santana - Projeção e maniqueísmo

O Globo

Será que a pessoa em quem votamos eventualmente não errará? Será que ela errar faz automaticamente com que estejamos errados?

A declaração do presidente Lula na Etiópia a respeito do que vem acontecendo na Faixa de Gaza abriu espaço para mais uma grande briga política no Brasil.

Existem muitas denúncias sobre como o primeiro-ministro de Israel vem agindo, inclusive na própria comunidade judaica. É, pois, razoável falar em crimes de guerra cometidos pelo governo israelense.

Se parasse por aí, Lula não estaria sozinho, considerando que outros líderes mundiais também vêm repudiando o ocorrido. No entanto ele foi além e declarou:

— O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu. Quando Hitler resolveu matar os judeus.

Nesse momento, ele se isolou.

Guga Chacra fez uma observação interessante sobre o caso ao afirmar que Lula “não escolheu o genocídio armênio, ele não escolheu o genocídio de Ruanda. Tivemos massacres na guerra da Bósnia, na guerra de Kosovo, teve a invasão dos Estados Unidos ao Iraque, a guerra da Síria, a guerra da Rússia, a invasão da Rússia à Ucrânia. Ele coloca como se fosse algo único. Não é algo único, de forma alguma”.

Nesse momento, entram as torcidas organizadas para repercutir o que foi dito e, em vez de um debate, o que vemos é um festival de atrocidades.

A hashtag #LulaTáCerto subiu logo. E, como não poderia deixar de ser, ao equiparar um fato histórico realmente nunca visto no mundo com outro que ocorre sempre em tempos de guerra, o tom subiu muito, ainda mais se tratando de um tema tão sensível quanto o Holocausto.

Não sendo especialista em Oriente Médio, guerras ou relações internacionais, o que me chama a atenção, para além de todas as questões postas, é a reação nas redes sociais e políticas no nosso país.

Mais uma vez assistimos ao radicalismo subindo, num lugar em que só se pode escolher tudo ou nada. Não existe meio-termo. Não existe complexidade. Sobra tão somente o maniqueísmo puro e simples. Era sobre esse ponto que gostaria de fazer uma reflexão.

Será que a pessoa em quem votamos eventualmente não errará? Será que ela errar faz automaticamente com que estejamos errados? Por que tentamos, a todo custo, justificar tudo o que os políticos que eventualmente escolhemos para estar no poder fazem em sua vida pública?

Parece que nos projetamos sobre nossas escolhas e, dessa maneira, uma crítica a essas pessoas automaticamente se torna uma crítica a nós mesmos. Daí o sinal de alerta toca, e precisamos nos defender. Afinal, não podemos estar errados. Aparentemente, a base que serve para o viés de confirmação se eleva, no sentido de que o cérebro humano sempre tende a confirmar suas próprias crenças. Quando alguém encontra um cenário contrário ao que se espera, isso atinge a própria constituição de si mesmo, e o resultado é tão profundo quanto aquele pensamento está internalizado.

Portanto as discussões não são sobre política ou a treta da semana, mas sim sobre as próprias identidades. A partir da ameaça que sentem em seu íntimo, elas deixam de lado a racionalidade e agem com violência, impossibilitando o debate.

 

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