O Estado de S. Paulo
Em tempos de mudança produtiva e sociológica, nem sempre as grandes ideologias de ontem guiam as melhores políticas para o amanhã
Uma empresa apareceu em Caçapava. Promete construir uma grande termoelétrica a gás, gerar empregos, trazer progresso. Ambientalistas reagiram. Organizaram protestos, com os argumentos usuais: poluição e riscos ambientais. Fosse há dez anos, o conjunto encetaria julgamentos conhecidos: uma luta contra a economia da Nação. Ocorre que os tempos são de mudanças rápidas e profundas nas estruturas do mercado e da produção econômica. Levam para interpretações além daquelas baseadas nos enquadramentos ideológicos tradicionais, como o julgamento apresentado acima. Com isso, cai o chão lógico e nascem paradoxos, como aqueles do título.
É um reino desagradável – mas eventualmente
revelador. Que tal começar a entrar nele com uma argumentação liberal sobre
ambientalismo? Por exemplo, com uma análise de custos, feita segundo o padrão
da nova economia, a de carbono neutro. Nessa economia, o preço básico é o do
carbono; por isso a conta muda. A emissão de gases de efeito estufa é computada
como gravame, a ser coberto com pagamento de imposto; as energias renováveis
são merecedoras de um crédito neste valor.
Antes das críticas, é preciso dizer que esse
é o método de cálculo tarifário adotado em grandes economias, como as do Canadá
e da Grã-Bretanha. Nelas, o emissor fóssil subsidia o produtor renovável.
Entendido o ponto, vale a pena ver a aplicação da metodologia feita por Shayan
Fatheazam para a energia elétrica residencial de Brasília, em 2020.
No cenário mais realista, chegou a um custo
de R$ 221,74 por megawatt/hora (MW/h) – essa medida é como o litro para
líquidos; será adotada em todos os números citados daqui por diante, permitindo
comparações intuitivas – para o gás e R$ 87,71 para a energia solar. Uma seria
2,5 vezes mais cara que a outra.
Isso foi há quatro anos. Eventos mais
recentes permitem comparações diretas, de preços praticados na realidade do
mercado de energia – algo que dispensa apelos a metodologias sofisticadas. Em
setembro de 2022, a agência reguladora de energia elétrica mandou pôr em
funcionamento usinas termoelétricas. Preço mais alto pago ao produtor? R$
2.997,89 por MW/h. Este preço pode ser comparado àquele cobrado ao consumidor
(e não pago ao produtor) em janeiro deste ano no mercado livre de energia em
São Paulo: R$ 309,03. Um é 9,7 vezes maior que outro.
Mercado é implacável. Os sinais que emite
foram transformados em argumentos, para mostrar como os preços pontuais e
isolados, como os mostrados acima, vão criando estruturas permanentes. Isso fez
a Replace Consultoria: 1) os preços de energia elétrica no mercado brasileiro
se desconectaram das oscilações do preço do petróleo. Decrescem com constância,
enquanto os últimos são voláteis. 2) Isso ocorre porque a oferta de energia
renovável tem crescido a um ritmo superior ao da economia e com preços cada vez
mais competitivos. 3) Esse fenômeno está permitindo manter o nível dos
reservatórios das hidrelétricas num patamar alto, o que torna ainda mais
previsível o comportamento da oferta e a estabilidade dos preços futuras. 4)
Tais fatores ajudam a descolar o preço da energia brasileira daqueles do
mercado mundial. A energia elétrica altamente renovável do Brasil fica barata e
atrai empresas de fora para produzir com mais competitividade.
Esse movimento positivo está acontecendo num
cenário institucional que é o contrário daquele vigente no Canadá ou no Reino
Unido. Aqui, o papel do Estado na economia é outro.
O estatuto legal das termoelétricas a gás é o
de um negócio com expansão protegida pela lei, ainda que com preços mais altos.
E tal situação está legalmente imposta para o futuro. Um peculiar instrumento
legal criou as chamadas térmicas jabuti: a Nação está obrigada a fazer leilões
de preços e providenciar receitas para expandir termos a gás. Vai como pode. Em
setembro passado houve leilão, com preço garantido de R$ 444 por MW/h; não
apareceram candidatos suficientes – fenômeno que o preço no mercado livre ajuda
a explicar.
Em bom português: gás só fica no mercado com
subsídios de elefante. No Brasil, ao contrário do mundo, as instituições
prometem prêmios imensos aos fósseis. A lei manda piorar a situação. E o
pagamento é perverso. Tão perverso que fica mais bem entendido com argumentos
socialistas defendendo o mercado. Quem paga a energia cara e atrasada é o
pobre. Como? Na conta de luz. As receitas dela são rateadas entre produtores
para repor seus custos – com a energia cara recebendo mais.
Quem pode foge do esquema. Grandes
consumidores (indústrias como metalurgia ou cimento) já geravam energia própria
há muito tempo. Na cola deles vieram outras indústrias. Quanto mais gente
escapa, mais os pequenos consumidores, especialmente os pobres, vão tendo de
pagar o subsídio do setor fóssil.
Nesse cenário, objetivos sociais como preços
menores e mais justos, melhor distribuição de renda ou equalização na sociedade
poderiam ser atingidos mais depressa – pelo incentivo ao mercado livre e
energia renovável. Mas, para isso, eventualmente seja necessário que
socialistas acreditem que o mercado pode ser um instrumento de justiça social –
congraçando-se com ambientalistas liberais. Enfim: em tempos de mudança
produtiva e sociológica, nem sempre as grandes ideologias de ontem guiam as
melhores políticas para o amanhã.
*Escritor, é membro da ABL
Brilhante!
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