quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

José Serra - Gasto público: cortes e eficiência

O Estado de S. Paulo

Adoção no Brasil de um processo sistemático e transparente de revisão de gasto conversaria muito bem com o novo arcabouço fiscal e as regras da LRF

Desde a crise do endividamento brasileiro, nos anos 80 do século passado, a necessidade de ajuste das contas públicas aparece como uma recorrência no debate econômico. A expressão “corte de gastos” talvez seja uma das mais lidas no noticiário destes 40 anos.

É lógico que os cortes, por vezes, são necessários para que se encontre uma posição fiscal percebida como sustentável pelos agentes econômicos. O problema principal é que nosso país é excessivamente desigual e desprovido de infraestrutura, o que torna as demandas sociais sobre a máquina pública múltiplas e inescapáveis, sob a perspectiva de um país civilizado e solidário. De outro lado, há segmentos importantes de nossa economia que vivem da interação com o Estado, tanto como fornecedores de bens e serviços como beneficiários de recursos públicos. Este contexto de pressões, legítimas e ilegítimas, tende a levar as autoridades a optar por cortes lineares, especialmente em investimentos públicos, justamente para fugir às pressões setoriais e de interesses específicos.

É premente avançar na análise e compreender que o “corte linear” do Orçamento tem conexão direta com a baixa capacidade institucional na avaliação da eficiência do gasto. E esta questão não é novidade para o mundo. As estratégias de Spending Reviews consistem na avaliação da qualidade do gasto e da alocação de recursos públicos e têm crescente reconhecimento internacional. Interessante observar que, até 2011, 16 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) haviam realizado revisões de gastos. Em 2018, esse número subiu para 27.

A crise financeira de 2008 agudizou essa tendência, multiplicando as novas experiências em matéria de governança pública. Houve claro direcionamento à institucionalização de sistemas de revisões periódicas dos gastos públicos, baseados em metodologias sofisticadas de gestão. Em pesquisa da OCDE de 2012, metade dos países-membros da organização informaram que estavam implementando o Spending Review para promover profundas mudanças no setor público a fim de gerar economias orçamentárias, ou para reduzir o gasto público no nível agregado, ou para gerar espaço fiscal para novas prioridades.

O Spending Review é basicamente um processo institucionalizado, transparente e coordenado de revisão de gastos, projetos e programas governamentais. Como produto de um processo de avaliação do gasto, os indicadores de performance servem para orientar os gestores governamentais responsáveis pela condução das políticas públicas. No caso do Spending Review, o principal produto é a conexão do processo de avaliação com o processo orçamentário. As revisões do gasto existem para apresentar uma lista de medidas para reduzir o gasto público, com transparência absoluta dos números e critérios envolvidos.

A base racional do processo orçamentário nos países que adotam esse sistema é a eficiência econômica, que se desdobra em dois tipos: técnica e alocativa. A primeira, no sentido de buscar reformas que assegurem melhores serviços públicos com o mesmo custo ou o mesmo serviço com um custo menor. A segunda, no sentido de alocar o espaço fiscal em setores estratégicos que geram produtividade e desenvolvimento, como, por exemplo, infraestrutura.

Nos últimos dias a área econômica do governo vem levantando o tema, o que é muito louvável e abre um caminho distinto do velho e surrado jeito brasileiro de fazer gestão orçamentária por corte linear de recursos. A ideia que tem transparecido é embutir na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) um dispositivo que possa dar curso à revisão das ações públicas medindo sua eficiência.

Não acredito que uma decisão de tanta importância para o futuro do País possa ser tomada apenas como apêndice da LDO. Creio que o País precisa de solidez institucional e de perenidade nos ritos orçamentários e de gestão da “coisa pública”.

A instituição do Spending Review no Brasil deve começar pela aprovação de uma lei complementar prevendo a obrigatoriedade das revisões periódicas do gasto público. O Senado já aprovou, por unanimidade, o Projeto de Lei Complementar n.º 428/2017, de minha autoria, para instituir o Plano de Revisão Periódica do Gasto Público. A proposta está na Comissão de Administração e Serviço Público (Casp) da Câmara dos Deputados, como PLP 504/2018. Basta ao governo fazer o movimento de apoiar a tramitação da proposta para que o Brasil tenha o seu Spending Review.

Sem dúvida, a adoção no Brasil de um processo sistemático e transparente de revisão de gasto, como adotado nos países da OCDE, conversaria muito bem com o novo arcabouço fiscal e as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). De mais a mais, as regras fiscais, por si sós, não são suficientes para conter o viés deficitário dos orçamentos e para assegurar uma melhor alocação dos recursos públicos, especialmente num palco político fragmentado como o nosso. O momento que vivemos não é para remendos, mas para a construção de instituições fortes com capacidade de interação entre os diversos momentos e decisões relacionados aos recursos públicos.

*Economista

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