sábado, 17 de fevereiro de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo - Tropelias do bolsonarismo

CartaCapital

Golpistas visam fazer do Estado um ingrediente da culinária de rachadinhas

As investigações da Polícia Federal denunciaram o golpismo bolsonarista e receberam increpações de “perseguição” desferidas pelos acólitos do ex-presidente. Seria deplorável se as instituições do Estado estivessem mobilizadas para perseguir cidadãos, sejam eles ex-presidentes ou deserdados da vida, condenados a morar nas ruas.

Nas repúblicas modernas figuram entre as cláusulas pétreas aquelas relativas à representação legitimada pelo voto, à impessoalidade na administração pública, à constituição de um sistema de poderes e garantias fundados na lei. São essas as regras que comandam as investigações da Polícia Federal sob controle da Procuradoria-Geral da República e do Supremo Tribunal Federal

O sistema de poderes e garantias ancorado na lei é o núcleo central do Estado contemporâneo. É isso que o obriga a punir, no exercício do poder legitimado pelo voto e pela lei, as tentativas de opressão arbitrária de um indivíduo sobre o outro. Não há como pensar a sobrevivência da sociedade dos indivíduos-cidadãos sem imaginar a presença do poder repressivo do Estado. O descumprimento do dever de punir pelo ente público termina por solapar a solidariedade que cimenta a vida civilizada, lançando a sociedade no desamparo e na violência sem quartel.

Os códigos da cidadania moderna foram concebidos como uma reação da maioria mais fraca contra o individualismo anarquista e reacionário dos que se consideram com mais direitos e poderes. Esses, no Brasil, invariavelmente imaginam uma sociedade sem a presença de um Estado democrático e forte, capaz de intimidar aqueles que, ricos ou pobres, pretendem impor-se por meio da intimidação.

A escolha diante da qual Hobbes coloca os homens não poderia ser mais clara: ou eles desejam desfrutar dos frutos do exercício pacífico de sua liberdade racional e devem, então, submeter-se às decisões de um poder reconhecido por todos; ou preferem desfrutar plenamente de sua liberdade natural e ilimitada, e então devem aceitar viver na insegurança e na miséria.

No Leviatã, Hobbes é um defensor do regime da lei. As incursões golpistas do bolsonarismo pretendem usurpar as instituições republicanas − falíveis, mas insubstituíveis − e levar o Estado para a cozinha de sua casa, onde preparam a fétida e gosmenta culinária de rachadinhas, rachadonas e, sobretudo, rachaduras nos pilares que sustentam as instituições republicanas.

Para avançar na compreensão do fenômeno bolsonarista é preciso ir além da figura de Bolsonaro e investigar as raízes sociais do bolsonarismo. Para tanto seria conveniente recorrer a Hannah Arendt. A autora do livro As Origens do Totalitarismo discorreu de forma impecável a respeito da sociedade de massa e o nazismo. Arendt abordou as transformações sociais e políticas na era do capitalismo tardio e da sociedade de massa. A economia dos monopólios substituiu a empresa individual pela coletivização da propriedade privada, ao mesmo tempo que promovia a “individualização do trabalho”, engendrada pelas novas modalidades tecnológicas e organizacionais da grande empresa. A operação ­impessoal das forças econômicas produziu, em simultâneo, o declínio do homem público e a ascensão do homem massa, cuja principal característica não é (somente) a brutalidade e a rudeza, mas o seu isolamento e sua falta de relações sociais normais.

Trata-se da abolição do sentimento de pertinência, da desconstrução dos laços familiares, afetivos e de companheirismo. “As massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando se pertencia a uma classe.” A escória, na visão de ­Arendt, não tem a ver com a situação econômica e educacional dos indivíduos, “pois até os indivíduos altamente cultos se sentem particularmente atraídos pelos movimentos da ralé”. O massacre capitalista das tradições liberais fomentou os desatinos que hoje contaminam o mundo da informação.

A digressão de Hannah Arendt exibe as propriedades do bolsonarismo. Em sua incapacidade de argumentar ou contra-argumentar, a ralé bolsonarista recolhe a sua insignificância na adoração do Mito. A gritaria da ralé: Mito, Mito, expelida das gargantas ressentidas e autoritárias, funciona como ameaça à liberdade dos demais, os divergentes. Também cumprem essa maldição as designações dos adversários políticos como comunistas, acusação que encarna e reproduz o caráter nazifascista das massas mobilizadas por Bolsonaro e sua clique. 

*Publicado na edição n° 1298 de CartaCapital, em 21 de fevereiro de 2024.

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