O Globo
Há muito o que discutir e criticar nas
decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias
Toffoli que desmontam os acordos de leniência fechados pela
J&F e pela
Odebrecht com o Ministério
Público Federal depois de confessarem uma série de crimes para
sustentar seus esquemas de corrupção.
Além de ter deliberado sobre um assunto que não lhe compete, pois sua atribuição é Lava-Jato, e a J&F é ré noutro processo, Toffoli ainda suspendeu o pagamento de multas bilionárias cujo destino seriam os cofres da União, abrindo a porteira para uma cascata de contestações e recursos que poderão custar ao governo federal até R$ 25 bilhões no longo prazo.
O “detalhe” de a mulher de Toffoli ser
advogada da mesma J&F numa disputa empresarial igualmente bilionária é tão
espantoso quanto o fato de nem ele nem seus colegas de tribunal verem nenhum
problema nisso.
Num país sério, seria no mínimo constrangedor
um ministro do Supremo considerar “imprestáveis” provas entre as quais estão
mensagens em que ele mesmo é chamado por um dos réus, Marcelo Odebrecht, de
“amigo do amigo do meu pai”.
Tudo isso beira o surreal, mas, convenhamos,
já faz tempo que a política e o Judiciário brasileiro nos brindam com situações
cada vez mais distópicas.
O pior talvez não seja nem o escândalo
imediato, mas o que ele diz sobre a situação em que nos encontramos. Os
movimentos de Toffoli são produto de um país que gasta boa parte de seu tempo e
de sua energia empenhado num acerto de contas com o passado que não interessa a
quase ninguém, exceto a um nicho pequeno (e poderoso) da sociedade.
Os desafios adiante são enormes. Neste exato
momento, o Executivo se digladia com a Câmara
dos Deputados pelo comando de um naco relevante do Orçamento, numa
disputa que poderá ter efeitos sobre as eleições municipais de outubro e sobre
a própria governabilidade.
Enquanto isso, busca receitas para
cobrir o
rombo de pelo menos R$ 230,5 bilhões nas contas públicas e ainda se
livrar da sombra de uma desaceleração econômica puxada, entre outros fatores,
pela já anunciada contração do agronegócio neste ano.
O bônus demográfico — aquela janela mágica em
que a fatia produtiva da população é maior que a de crianças e idosos — está
no final. Ainda assim, metade dos jovens das famílias mais pobres do país
não estuda nem trabalha.
A bolsa
de R$ 200 por mês que o governo distribuirá para tentar segurar os
alunos de baixa renda na escola poderá ajudar a aliviar a situação, mas,
obviamente, não será capaz de eliminar a evasão. A reforma do ensino médio está
parada. O país tem mais templos religiosos que escolas.
O avanço
do crime organizado sobre as médias e grandes cidades exige políticas
de segurança pública cada vez mais complexas, mas não há nem mesmo um debate
mais consequente sobre como enfrentar o problema.
Quase 50% das moradias no Brasil têm
saneamento deficiente, e a temporada de chuvas vai passando sem que tenha sido
produzida nenhuma iniciativa relevante para
diminuir o impacto dos desastres naturais em tempos de mudanças
climáticas.
A promessa de um governo concentrado na
transição energética e na modernização da economia continua, mas, com honrosas
exceções, as grandes apostas são as mesmas de décadas passadas, com nova
roupagem.
A política industrial agora carrega o prefixo
“neo”, mas continua propondo pesados subsídios governamentais e exigência de
conteúdo local, sem metas de aumento de competitividade ou de produtividade que
faltaram lá atrás para impulsionar eventuais avanços.
As âncoras do novo Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC)
permanecem as do primeiro PAC: gastos
militares, construção de estaleiros e refinarias que se converteram em
grandes drenos de recurso, sem retorno para a sociedade.
Para completar, a mais alta Corte está
capturada pela obsessão de desfazer os ganhos obtidos pela sociedade no combate
à corrupção, apenas para satisfazer às necessidades pecuniárias e políticas de
quem deveria ter aprendido com os próprios erros.
Corrigir abusos ou injustiças cometidos pela
Lava-Jato é um objetivo legítimo e necessário, mas os prejuízos bilionários e a
desmoralização que as decisões de Toffoli trarão ao país demonstram que essa
bandeira foi transformada num espantalho para nos distrair enquanto passa a
verdadeira boiada.
Nesse contexto, as decisões de Toffoli são a
metonímia perfeita de um país que precisa avançar em direção ao futuro, mas
vive de olhos fixos no retrovisor.
Tá.
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