sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Marcos Augusto Gonçalves - Lula e a ordem 'pos-ocidental'

 

Folha de S. Paulo

Ao reforçar tese do genocídio, Brasil abandona mediação e se engaja na diplomacia do mundo 'pós-ocidental'

Os equívocos da declaração do presidente Lula sobre o Holocausto e os ataques a Gaza já foram apontados por analistas equilibrados, além de explorados à exaustão por oportunistas, haters, simpatizantes da extrema direita e apoiadores da política criminosa de Binyamin Netanyahu em sua reação desproporcional ao atentado do Hamas.

A questão talvez mais relevante, do ponto de vista da política externa, já havia sido colocada por Maria Hermínia Tavares em sua coluna na Folha (17/1) por ocasião do apoio do governo brasileiro à tese de genocídio levada pela África do Sul ao Tribunal de Haia. Como sugeriu a professora, estamos assistindo a uma redefinição da política externa brasileira, que se mostra mais aderente à perspectiva da ordem "pós-ocidental", ou seja, a um realinhamento em que o chamado Sul Global se contrapõe aos Estados Unidos e seus aliados, em especial os europeus.

Como escreveu o chanceler Mauro Vieira em artigo (20/1) publicado por esta Folha, em resposta às apreensões em torno do apoio à causa sul-africana, "a crítica de que a posição brasileira afetaria suas credenciais como suposto mediador nesta e em outras questões globais parte de pressuposto equivocado de que o Brasil é candidato a ser uma espécie de mediador universal. Essa pretensão não existe e não é realista". O governo precisaria, segundo o ministro, ter "coragem e altivez" para se posicionar.

A formulação, que veio em defesa da tese de genocídio em Gaza, tem agora sua perspectiva reforçada pela declaração de Lula, ou seja, o morticínio promovido por Netanyahu pode ser comparado ao genocídio executado pelos nazistas. O Brasil, por intermédio de seu mandatário, faz, assim, uma demonstração da alegada "coragem e altivez" para sustentar uma acusação no grau mais alto da escala dos crimes contra a humanidade.

A visão do governo brasileiro coincide com a dos adversários históricos de Israel na região e no arco da diplomacia pós-ocidental. As experiências fracassadas em tentativas de mediação, inicialmente no caso do conflito na Ucrânia e posteriormente na guerra Israel-Hamas, com o estúpido veto dos EUA à resolução proposta no Conselho de Segurança, parecem impulsionar o Brasil para uma orientação menos mediadora e mais posicionada.

Quanto a Netanyahu, que goza de expressivo repúdio entre a população de Israel, trata-se de uma liderança nefasta, que escala o conflito, promove um massacre e manipula retoricamente o antissemitismo e o trauma do Holocausto para tentar justificar o injustificável.

O supremacismo no poder em Israel move-se de fato para um terreno perigoso, no qual a acusação de genocídio vai parecendo cada vez mais crível aos olhos de amplos setores da opinião pública global. O termo, observa-se, passa por uma espécie de ressignificação, como aconteceu com o conceito histórico de fascismo, ligado a uma configuração política específica do século 20, que se descolou um pouco do passado e migrou para as realidades do mundo contemporâneo.

Ao viralizar nas redes, o vídeo no qual o professor judeu americano Norman Finkelstein responde a uma interpelação sobre o uso da expressão Holocausto no debate sobre Israel e palestinos parece corroborar essa situação. A veemente intervenção, lembre-se, faz parte de um documentário lançado há 15 anos, intitulado "American Radical: The Trials of Norman Finkelstein".

O modo oportunista e feroz com que Netanyahu respondeu ao comentário de Lula teve um efeito político que terminou, apesar dos pesares, por favorecer o líder brasileiro. Afinal, o criminoso neste caso não é Lula, mas o primeiro-ministro de Israel.

 

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