Folha de S. Paulo
Ao reforçar tese do genocídio, Brasil abandona mediação e se engaja na diplomacia do mundo 'pós-ocidental'
Os equívocos da declaração do presidente
Lula sobre o Holocausto e os ataques a Gaza já foram apontados
por analistas equilibrados, além de explorados à exaustão por oportunistas,
haters, simpatizantes da extrema direita e apoiadores da política criminosa
de Binyamin
Netanyahu em sua reação desproporcional ao atentado do Hamas.
A questão talvez mais relevante, do ponto de vista da política externa, já havia sido colocada por Maria Hermínia Tavares em sua coluna na Folha (17/1) por ocasião do apoio do governo brasileiro à tese de genocídio levada pela África do Sul ao Tribunal de Haia. Como sugeriu a professora, estamos assistindo a uma redefinição da política externa brasileira, que se mostra mais aderente à perspectiva da ordem "pós-ocidental", ou seja, a um realinhamento em que o chamado Sul Global se contrapõe aos Estados Unidos e seus aliados, em especial os europeus.
Como escreveu o chanceler Mauro Vieira em artigo
(20/1) publicado por esta Folha, em resposta às apreensões
em torno do apoio à causa sul-africana, "a crítica de que a posição
brasileira afetaria suas credenciais como suposto mediador nesta e em outras
questões globais parte de pressuposto equivocado de que o Brasil é candidato a
ser uma espécie de mediador universal. Essa pretensão não existe e não é
realista". O governo precisaria, segundo o ministro, ter "coragem e
altivez" para se posicionar.
A formulação, que veio em defesa da tese de
genocídio em Gaza, tem agora sua perspectiva reforçada pela declaração de Lula, ou
seja, o morticínio promovido por Netanyahu pode ser comparado ao genocídio
executado pelos nazistas. O Brasil, por intermédio de seu mandatário, faz,
assim, uma demonstração da alegada "coragem e altivez" para sustentar
uma acusação no grau mais alto da escala dos crimes contra a humanidade.
A visão do governo brasileiro coincide com a
dos adversários históricos de Israel na região e no arco da diplomacia
pós-ocidental. As experiências fracassadas em tentativas de mediação,
inicialmente no caso do conflito
na Ucrânia e posteriormente na guerra Israel-Hamas, com o
estúpido veto dos EUA
à resolução proposta no Conselho de Segurança, parecem
impulsionar o Brasil para uma orientação menos mediadora e mais posicionada.
Quanto a Netanyahu, que goza de expressivo
repúdio entre a população de Israel, trata-se de uma liderança nefasta, que
escala o conflito, promove um massacre e manipula retoricamente o
antissemitismo e o trauma do Holocausto para tentar justificar o injustificável.
O supremacismo no poder em Israel move-se de
fato para um terreno perigoso, no qual a acusação de genocídio vai parecendo
cada vez mais crível aos olhos de amplos setores da opinião pública global. O
termo, observa-se, passa por uma espécie de ressignificação, como aconteceu com
o conceito histórico de fascismo, ligado a uma configuração política específica
do século 20, que se descolou um pouco do passado e migrou para as realidades
do mundo contemporâneo.
Ao viralizar nas redes, o vídeo no qual o
professor judeu americano Norman Finkelstein responde a uma interpelação sobre
o uso da expressão Holocausto no debate sobre Israel e palestinos parece
corroborar essa situação. A veemente intervenção, lembre-se, faz parte de um
documentário lançado há 15 anos, intitulado "American Radical: The Trials
of Norman Finkelstein".
O modo oportunista e feroz com que Netanyahu
respondeu ao comentário de Lula teve um efeito político que terminou, apesar
dos pesares, por favorecer o líder brasileiro. Afinal, o criminoso neste caso
não é Lula, mas o primeiro-ministro de Israel.
BIBITLER
ResponderExcluirPERFEITO!
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