Folha de S. Paulo
No Brasil, extrema direita se vale das regras democráticas para avançar sua agenda reacionária
O entusiasmo da multidão que Jair
Bolsonaro levou à avenida Paulista, no domingo, 25/2, não foi
suficiente para esconder que ali se saudava um derrotado: nas urnas e no
intento de permanecer no poder por meio de um golpe. Este só não se consumou
porque as instituições democráticas e as lideranças que as animam, no Estado e
na sociedade, barraram-lhe os passos.
Não foi por outra razão que, vencido, o ex-presidente abandonou a retórica incendiária –sua marca desde sempre– pela moderação, loas à democracia e apelos autointeressados de pacificação e anistia para os conspiradores –de gravata ou farda– e para os descerebrados que invadiram a praça dos Três Poderes.
Suas juras de lealdade ao sistema
representativo valem tanto quanto a negação de que tramou contra ela antes,
durante e depois da disputa presidencial. Mas, como a extrema direita não é
fenômeno episódico –está aí para ficar na nossa vida política–, cabe perguntar
até que ponto ela pode constituir ameaça existencial à ordem democrática.
A resposta não está no campo da teoria ou dos
princípios, mas na solidez das instituições públicas e sociais em que se arrima
o edifício democrático.
Velho conhecido dos latino-americanos, o
populismo –agora da direita radical–, desde a segunda década do século, ganhou
espaço político nos países onde o sistema representativo liberal existia de há
muito, onde era mais jovem e naqueles que pareciam caminhar em sua direção,
depois da Guerra Fria.
Neste último caso, a livre competição
eleitoral, o controle recíproco dos Poderes e as liberdades públicas vêm sendo
limitados, em maior ou menor grau, por setores que, alçados ao governo, se
dedicam a solapá-lo. É o que ocorre na Rússia pós-soviética e nos países que
outrora figuravam no mapa do socialismo real. E ainda, por outros caminhos,
na Venezuela e
na Nicarágua,
onde o populismo autoritário foi gerado na esquerda.
Nas democracias mais antigas, o rumo das
coisas pode ser outro. Bem ou mal, a extrema direita, incorporada ao livre jogo
eleitoral, parece adaptar-se às regras do regime de liberdades. O caso da
Itália, onde o populismo transitou várias vezes entre governo e oposição, é
talvez o mais ilustrativo.
Não se exclui que, também no Brasil, a
extrema direita, derrotada, se adapte às regras democráticas e delas se valha
para avançar sua agenda, que será insanavelmente reacionária.
P.S. - A discussão dos dilemas de nossa democracia perdeu uma voz ímpar, com a morte do sociólogo Luiz Werneck Vianna. Foi pensador original, intelectual público, democrata raiz, interlocutor instigante e amigo querido.
*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Pois é.
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