quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Nicolau da Rocha Cavalcanti* - A hora da verdade do art.559-M

O Estado de S. Paulo

A tipificação do ‘tentar depor’ foi o modo de assegurar que o Estado tenha meios de defender a democracia antes do golpe

Eis a questão. O anterior presidente da República praticou ou não o crime do art. 359-M do Código Penal: “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”?

Cada um pode ter uma resposta para essa pergunta. No entanto, no Estado Democrático de Direito, com vigência do princípio da presunção da inocência, não basta uma opinião, por mais fundamentada que seja, para condenar uma pessoa. É necessário que se tenha uma ação penal, dentro do devido processo legal e com amplo direito de defesa, para que alguém seja declarado culpado por um crime.

Até o momento, o que existe é um inquérito sigiloso, no qual tem havido divulgação seletiva de alguns elementos probatórios. Ou seja, a sociedade ainda não conhece integralmente o que a Justiça tem em mãos. Sabe-se apenas o que o juiz do inquérito, o ministro Alexandre de Moraes, quis revelar.

Essa divulgação seletiva é muito útil para gerar determinadas impressões na sociedade, mas é muito prejudicial para um processo judicial adequado, apto a pacificar os conflitos sociais. É como se a própria Justiça estimulasse juízos parciais pela população, com condenações imediatistas, que eliminam, na prática, a presunção de inocência. Nas palavras de Vittorio Manes, professor da Università di Bologna, o acusado torna-se um “culpado aguardando julgamento”.

Esse modo de proceder tem relação direta com um problema sério e, infelizmente, muito frequente na Justiça brasileira: a análise superficial dos fatos. É uma situação paradoxal, pois o processo judicial, com suas etapas e recursos, está orientado justamente a assegurar uma verificação cuidadosa dos fatos. Para condenar alguém, não basta ter uma opinião sobre o que teria ocorrido. É preciso um procedimento epistemologicamente seguro para aplicar corretamente o Direito.

A Operação Lava Jato deve servir de aprendizado. O abundante material levantado produziu, em parcela relevante da sociedade, profunda convicção sobre a culpa de algumas pessoas. Ao mesmo tempo, além da questão da legalidade, os métodos utilizados – epistemologicamente frágeis – produziram, em parcela relevante da sociedade, profunda dúvida sobre a acurácia de suas descobertas. Por mais controvérsias que haja em torno da Lava Jato, tem-se um consenso: ali, a Justiça fracassou.

No caso da Operação Tempus Veritatis, há uma dificuldade adicional. O crime do art. 359-M é novo. O que significa “tentar depor” o governo legitimamente constituído? O que constitui uma “grave ameaça”?

Divulgado pelo Supremo Tribunal Federal, o vídeo de uma reunião de julho de 2022, com a presença do então presidente da República e ministros de Estado, gerou forte debate. O que ali se presencia é a execução da tentativa de um golpe de Estado ou seriam “apenas” atos preparatórios desse crime?

Responder juridicamente a essa questão exige uma adequada compreensão do art. 359-M, bem como uma adequada verificação dos fatos. A Lei n.º 14.197/2021 criminalizou a tentativa de golpe de Estado, e não apenas o golpe de Estado fracassado. A tipificação do “tentar depor” foi precisamente o modo encontrado pelo legislador de assegurar que o Estado tenha meios de defender a democracia antes do golpe. Afirmar que todas as ações prévias ao golpe de Estado propriamente dito (a deposição do governo) seriam meros atos preparatórios é minar a eficácia protetiva do art. 359M, além de representar um olhar simplista sobre o que é um golpe – sempre um processo complexo de ações, e não um único ato numa hora determinada. Tem-se aqui mais um motivo para a não divulgação seletiva de elementos probatórios: é preciso compreender o todo.

O legislador foi prudente. Para não instituir um tipo penal muito amplo, violando o princípio da legalidade, determinou que, para haver crime, a tentativa de deposição deve se dar “por meio de violência ou grave ameaça”. Entendo que um presidente da República, reunido com seus ministros de Estado, atuando para que o resultado da eleição não fosse respeitado constitui, sim, uma grave ameaça. Isso é muito diferente do que alguém escrever, num grupo de WhatsApp, “não podemos deixar o Lula assumir”.

O Código Penal prevê não apenas os crimes e as respectivas penas. Na sua Parte Geral, estabelece como esses crimes devem ser aplicados – e essa aplicação normativa é o que distingue, entre outras coisas, a sentença judicial da mera opinião. Por hipótese, em muitos casos do 8 de Janeiro talvez não haja o preenchimento da tipicidade subjetiva, em especial acerca da compreensão de “governo legitimamente constituído”. Como se sabe, “o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo” (art. 20 do Código Penal). De toda forma, a situação é outra, por exemplo, quando se refere a alguém que, para assumir o cargo, jurou cumprir a Constituição e, mais tarde, sancionou a própria Lei n.º 14.197/2021.

Não é preciso inventar nada. O Congresso Nacional fez a sua parte. Agora, cabe ao Judiciário assegurar o sentido sistêmico e funcional do art. 359-M. Sem manobras e sem ingenuidades.

*Advogado

 

Um comentário:

  1. Texto magnífico, realmente excepcional pela clareza e qualidade!! Parabéns ao autor, e ao blog que divulga seu trabalho!

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