quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Lewandowski deve integrar o combate ao crime

O Globo

Novo ministro tem oportunidade de fazer o governo federal enfim assumir sua responsabilidade em área crítica

O jurista Ricardo Lewandowski, de 75 anos, assume o Ministério da Justiça e Segurança Pública com talvez a missão mais espinhosa do governo Luiz Inácio Lula da Silva: domar a violência que fustiga o país, aterroriza os brasileiros e ameaça a imagem do presidente.

Embora os números registrem queda de 4% nos assassinatos no ano passado, nas ruas predomina a sensação de insegurança, atestada por pesquisas de opinião e pelo senso comum. Oito em cada dez brasileiros acreditam que a violência se agravou, segundo pesquisa Quaest de novembro. As ações do governo para debelar a crise não têm sido bem recebidas pela população. A gestão de Lula na segurança é considerada ruim ou péssima por 50% e regular por 29%, mostrou o Datafolha em dezembro.

É verdade que os índices de criminalidade têm recuado, mas continuam em patamares altíssimos. Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (Unodc), o Brasil registrou, em 2021, 22,4 homicídios intencionais por 100 mil habitantes, quase o quádruplo da média global.

Nem é preciso recorrer a números para entender o que acontece. O cotidiano sobressaltado por guerras entre quadrilhas, tiroteios a qualquer hora e em qualquer lugar, balas perdidas, roubos, furtos, golpes praticados por bandidos de dentro dos presídios — a situação é muito grave. O alarme soa em todos os cantos do país. Infelizmente, o Planalto não dá ouvidos.

Administrações petistas sempre resistiram a assumir a pauta de segurança. Não só por motivos ideológicos, mas também por conveniência. Temendo desgaste, empurram o combate à violência aos governadores, sob a alegação de que é tarefa constitucional dos estados. Ora, a missão deve ser de todos e, a exemplo de áreas essenciais como saúde ou educação, cabe à União coordenar as políticas públicas. Está claro que, sozinhos, os estados não têm condições de combater facções criminosas que atuam no Brasil todo e controlam rotas do tráfico internacional.

O governo federal não pode continuar mantendo essa postura. O Estado já não controla parte relevante do território, tomado por organizações criminosas. A Amazônia hoje concentra algumas das cidades mais violentas do país. No Rio, traficantes cobraram da prefeitura “pedágio” para permitir uma obra pública. Na Rocinha, uma das maiores favelas do país, chefões já lucram mais com a extorsão aos moradores do que com o tráfico. A Constituição Cidadã de 1988 ainda não chegou àquele trecho da cidade. A lei ali é outra.

Inúmeros exemplos internacionais mostram que reverter situações críticas é possível. Para isso, o governo precisa assumir seu dever, pondo em prática uma política nacional de segurança pública articulada com os estados. A chegada de Lewandowski traz uma oportunidade de atuação mais firme do governo federal numa área onde ela é crucial. Foi bom sinal a escolha do secretário de Segurança, o ex-procurador-geral de Justiça de São Paulo Mario Luiz Sarrubbo, conhecido pelo combate ao crime organizado. Formar uma equipe técnica é importante, mas não basta se não houver plano de ação. Ele deveria começar pela integração das polícias, que hoje atuam isoladamente e raramente compartilham informações e estratégias. Lewandowski afirmou que a segurança pública será sua prioridade. Seria fundamental que fosse também a de Lula.

Ao paralisar acordo Mercosul-UE, Macron atinge todos os países

O Globo

Não faz sentido jogar fora duas décadas de negociações apenas para atender a demandas dos agricultores

Pressionado pelo lobby agrícola, o presidente da FrançaEmmanuel Macron, pediu interrupção nas negociações do acordo de livre-comércio entre União Europeia (UE) e Mercosul. Nos últimos dias, agricultores têm imposto bloqueios em estradas francesas e promovido protestos na tentativa de paralisar o país. O movimento já mobilizou produtores rurais na Holanda e na Alemanha e começou ontem a se espalhar por Bélgica, Itália e Espanha. Os manifestantes estão de olho na reunião da Comissão Europeia marcada para hoje. O alvo, além do acordo com o Mercosul, são as importações de produtos baratos da Ucrânia e exigências ambientais que impõem maiores custos de produção.

É na França, maior produtor agrícola da UE, que se concentra a resistência à abertura comercial. O que distingue os franceses do campo é a força política de atividades vistas como parte da identidade nacional. Discursos sobre “segurança alimentar” e preocupações ambientais disfarçam o protecionismo. Ao ceder aos agricultores, Macron comete três erros: 1) impede a expansão de negócios europeus no Mercosul; 2) perde a chance de aumentar a influência da UE num mundo em que se acirra a disputa entre Estados Unidos e China; 3) perde acesso a produtos baratos, sobretudo do Brasil e da Argentina.

Macron chegou à Presidência em 2017 disposto a acelerar reformas. Nos últimos tempos, perdeu o ímpeto reformista e tem sucumbido a grupos de interesse. A mão de obra francesa no setor agrícola caiu de 6% da força de trabalho em 1991 para 3% — menos que na Espanha ou Portugal, países favoráveis ao acordo com o Mercosul.

O interesse dos agricultores da UE é compreensível. A Política Agrícola Comum (PAC) europeia foi criada na década de 1960, numa negociação em que os alemães aceitaram dar incentivo a agricultores em troca de acesso a mercados para bens industrializados. Hoje, ela suga um terço do orçamento da UE. Entre 2023 e 2027, os agricultores europeus receberão US$ 330 bilhões em subsídios. Pequenos produtores são contemplados com apenas um quinto disso. Cerca de 20% das propriedades, muitas delas pertencentes a grandes grupos familiares ou à Igreja, ficam com 80%.

Depois de 20 anos de negociação, os termos do acordo entre UE e Mercosul foram fechados em 2019, e a assinatura final dependia de detalhes. A devastação da Amazônia no governo Jair Bolsonaro ofereceu aos protecionistas o pretexto ideal para paralisar as negociações. Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, as conversas foram retomadas. Os europeus insistem na tecla ambiental. Macron argumenta que os produtores europeus estão sujeitos a exigências que inexistem para os do Mercosul. Lula, em contrapartida, decidiu rediscutir a abertura do mercado de compras governamentais.

Tudo parecia, porém, caminhar para um entendimento. Até o recuo de Macron. Agora a negociação volta a parar. Não faz sentido, depois de mais de 20 anos de conversas, o colapso de um acordo tão abrangente apenas para atender aos interesses dos agricultores.

Bancos centrais de Brasil e EUA não fugiram do figurino

Valor Econômico

Fed não sinaliza quando iniciará redução de juros e BCB mantém ritmo de cortes

O Federal Reserve (Fed) fez em sua reunião de ontem o que era esperado: manteve os juros entre 5,25% e 5,5% e deu mais sinais de que seu próximo movimento, sem prazo, será de corte nas taxas. Esse momento ainda não chegou, pois o Fed espera “ganhar maior confiança de que a inflação se move sustentavelmente para 2%”, segundo o comunicado oficial. Mas isso pode estar mais perto do que antes. Em nova frase no comunicado, o banco acredita que “os riscos para alcançar as metas de emprego e inflação estão indo em direção a um melhor equilíbrio”. Ou seja, a ameaça de nova alta dos juros está mais distante. O Banco Central do Brasil (BCB) fez mais um corte de 0,5 ponto percentual e vai manter esse ritmo pelo menos nas duas próximas reuniões.

O Fed, segundo seu presidente, Jerome Powell, mantém-se à espera da continuação da série de números positivos sobre o comportamento da inflação para iniciar o corte de juros. Powell reiterou o dilema do banco entre fazer uma redução precipitada das taxas e ter de consertar o erro depois, voltando a aumentar os juros, e a espera exagerada para afrouxar a política monetária, com custos significativos sobre a atividade econômica e o emprego.

O estado da economia americana não é incompatível com novas altas esporádicas da inflação e tampouco dá ao Fed segurança de que continuará caindo até 2%. Pelo comunicado, “a atividade econômica está se expandindo em um ritmo sólido”, enquanto o aumento de vagas de trabalho moderou seu crescimento - “segue forte e o desemprego continua baixo”. O resultado dessa performance é que a inflação cedeu, “mas continua elevada”.

Powell deixou claro que todos os membros do Comitê de Política Monetária acreditam que os juros devem cair e que isso acontecerá “em algum momento ao longo do ano”. As medidas de inflação têm sido muito favoráveis. O núcleo dos gastos pessoais de consumo (PCE) em médias móveis de três e seis meses, dessazonalizadas e anualizadas, já se encontra em 2%. Mas para o Fed nada garante que continue assim. O índice em 12 meses findos em janeiro foi de 2,9%, ainda bem acima da meta. Powell deixou claro um dos maiores temores do banco: o de que a inflação se estabilize acima da meta.

A paciência do Fed tem apoio nos números. O ritmo da economia é forte: cresceu 4,9% no terceiro trimestre de 2023, 3,3% no quarto e 3,1% no ano, ainda bem acima do crescimento potencial estimado pelo banco, de 1,8%. O crescimento robusto, mesmo após a mais rápida elevação dos juros em quatro décadas, levou o Fed a abandonar seu discurso de que seria necessário que a economia crescesse abaixo do potencial por algum tempo para que a oferta e a demanda de trabalho se equilibrassem.

Há progressos importantes no mercado de trabalho, mas ainda não decisivos. Powell disse que a oferta de vagas é maior do que o número de pessoas dispostas a preenchê-las - há 1,44 vaga aberta por trabalhador à procura de emprego, a maior proporção desde setembro. O desemprego está abaixo de 4% por dois anos consecutivos, algo que, segundo Powell, não acontece há meio século.

O Fed tem flexibilidade para se adaptar a mudanças rápidas no cenário. Powell disse que não hesitará em cortar os juros caso o mercado de trabalho dê sinais evidentes de fraqueza. E indicou que a atitude seria a mesma caso a inflação acabe desabando e se situando abaixo dos 2%. Nenhum desses dois cenários se apresentou ainda. Os reajustes salariais atingiram 3,5% em 12 meses, o que para a consultoria Oxford Economics, já se colocaria numa faixa compatível com a inflação em 2%, levando-se em conta um aumento de produtividade de 1,5%.

Com a possibilidade de uma recessão desaparecendo da maior parte dos cenários dos investidores, o Fed deixa de ter um incentivo óbvio para iniciar o corte das taxas. Com a economia ainda forte, manter os juros altos por mais tempo será necessário até que a inflação ceda mais. Powell sugeriu que isso provavelmente não ocorrerá até março, data da próxima reunião do banco, embora admita que as perspectivas da economia sigam incertas e inseguras. Pela disposição do Fed indicada na reunião de ontem, o início dos cortes, salvo mudanças inesperadas, ocorrerá depois de março. A possibilidade de um corte de juros no próximo encontro do Fed, medida pelo mercado futuro de juros, caiu de 60% para 48% após a entrevista de Powell.

O BCB também não fugiu do figurino previsto. Os números do IPCA-15 de janeiro mostraram maior disseminação na alta dos preços e alguma alta na inflação subjacente de serviços e núcleos. Isso, como era esperado, não impediu o BC de sinalizar a manutenção do ritmo de cortes, porque com a inflação esperada para o ano, de 3,5%, a taxa de juros real ainda é muito contracionista, com bom espaço para reduções adicionais. A aceleração dos cortes, por seu lado, ficou distante. Há alguma desancoragem das expectativas, com projeção de 3,5% para a inflação do ano, que persiste por 27 semanas, segundo o boletim Focus. Enquanto não houver uma aproximação maior da meta de 3%, o ritmo atual será mantido.

Desinteligência

Folha de S. Paulo

Disputa entre PF e Abin expõe controle deficiente sobre mecanismos de informação

"A gente nunca está seguro. O companheiro que eu indiquei para ser o diretor-geral da Abin foi meu diretor-geral da PF entre 2007 e 2010. É uma pessoa em que tenho muita confiança e por isso chamei, já que eu não conhecia ninguém da Abin."

A frase, dita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a rádios na terça (30), reflete o espanto que a crise instalada entre a Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência provoca.

A operação da PF que apontou indícios da criação de uma "Abin paralela", ao que se supõe destinada a fornecer dados de adversários ao governo de Jair Bolsonaro (PL), abriu uma caixa de Pandora.

Noves fora a voltagem política da investigação, que incluiu batida na casa de Carlos Bolsonaro, filho do ex-presidente, expõem-se entranhas de um corpo obscuro do Estado —sua área de espionagem.

Todo país lida com isso, e questões de transparência e competência volta e meia vêm à tona —seja na bisbilhotagem americana de líderes aliados nos anos 2010 ou no fracasso de Israel em antecipar o mega-atentado do Hamas em 2023.

Por aqui, o chamado Sistema Brasileiro de Inteligência, centrado na Abin, reúne 48 órgãos em 16 ministérios. A supervisão do trabalho é de uma comissão mista no Congresso da qual mal se ouve falar. Ao Tribunal de Contas da União, cabe o papel de checar as faturas.

É algo bem mais frouxo do que o que ocorre nos EUA, onde a Agência Central de Inteligência abriga uma inspetoria independente que presta contas a diversos órgãos, a começar por poderosas comissões do Congresso, que usualmente garantem o sigilo de dados sensíveis.

No cerne da operação da PF está um software espião adquirido em Israel. Se é evidente que a agência não deve propagandear capacidades, o véu de segredo permite usos pouco republicanos delas —exatamente o que está sob apuração.

Do ponto de vista da Abin, como o agora demitido diretor-adjunto Alessandro Moretti disse no passado, há a percepção de uma perseguição política por parte da PF, órgão cujo empoderamento no primeiro mandato de Lula no Planalto fez emergir conflitos de competência e disputas por poder.

O fato de Moretti ser um delegado federal ligado ao ex-diretor da agência Alexandre Ramagem, deputado pelo PL-RJ e protegido de Bolsonaro, é sintomático das linhas cruzadas dessa politização.

Já a Polícia Federal se ampara em autorizações do hiperativo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, mais uma vez atraindo críticas a seus métodos.

O resultado, até aqui, foi a queda de Moretti e a troca de seis diretores da Abin, mas nada garante que Lula poderá dizer que se sente mais seguro a partir de agora.

A natureza do ditador

Folha de S. Paulo

Maduro descumpre acordo para eleição; EUA não tinham opção fora retomar sanções

Sanções econômicas constituem ferramenta importante em embates geopolíticos. Em casos de regimes autoritários, como evidenciam Rússia e Irã, elas atrapalham os negócios de autocratas, mas em geral se revelam insuficientes para impedir violações da liberdade política e dos direitos humanos.

É o que também se verifica na Venezuela. Em outubro de 2023, o ditador Nicolás Maduro assinou um acordo com a oposição pelo qual se comprometia a realizar eleições presidenciais competitivas e abertas a monitoramento internacional no segundo semestre deste ano.

Como parte desse pacote, os EUA aceitaram afrouxar as sanções econômicas que impõem a Caracas.
As chances de Maduro de fato promover um pleito limpo nunca foram muito expressivas, mas até dezembro o pacto parecia válido, e a ditadura chegou a libertar alguns presos políticos. No entanto, como se temia, o movimento de abertura não passou de encenação.

No final de janeiro, a Suprema Corte da Venezuela, praticamente um anexo do palácio de Miraflores, decidiu tornar inelegível por 15 anos a principal candidata da oposição, María Corina Machado.

Com isso, Washington retomou as restrições. Determinou que empresas americanas que haviam sido autorizadas a fazer negócios com a estatal venezuelana de mineração liquidassem suas posições.

É válida a atitude do governo Joe Biden de tentar levar a Venezuela, no âmbito de negociações multilaterais, a uma abertura democrática. Pode-se questionar a eficácia do método, porém trata-se da arma disponível. Medidas mais gravosas configurariam um "casus belli".

A Casa Branca não tinha alternativa que não retomar as sanções. Não fazê-lo significaria desmoralizar de vez esse instrumento.

O problema é que Maduro e seu entorno já avançaram demais na autocratização do regime. Se promoverem uma eleição limpa, a derrota é provável. Cerca de 7 milhões de venezuelanos (20% do total) deixaram o país na última década. É mais do que razoável supor que haja insatisfação generalizada com os rumos desastrosos da política e da economia.

Se perderem, poderiam responder pelos crimes cometidos, seja numa Venezuela democrática seja sob o Tribunal Penal Internacional. A tendência, portanto, é que resistam até o fim, a despeito do sofrimento imposto à população.

Infelizmente, é mais fácil criar uma ditadura do que desmontá-la.

Inteligência sem controle

O Estado de S. Paulo

Se nem o presidente da República está tranquilo com a atuação da Abin, nenhum cidadão tem razão para dormir em paz sabendo que seus direitos e garantias fundamentais podem ser violados

Como órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), instituído pela Lei 9.883/1999, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tem uma atribuição específica e relevante para o País: fornecer ao presidente da República e aos ministros de Estado informações e análises estratégicas que possam instruir o primeiro escalão do governo federal no processo decisório.

À luz do interesse nacional, portanto, a Abin é um órgão fundamental na estrutura do Poder Executivo. O trabalho de seus servidores, se bem feito, garante que as decisões tomadas pelo presidente e seus auxiliares diretos – decisões que afetam não só a vida de 210 milhões de brasileiros, mas também a posição do Brasil em questões geopolíticas – estejam consubstanciadas pela verdade dos fatos e resultem de uma abrangente reflexão que leve em conta os pormenores de cada situação que demande a intervenção do Palácio do Planalto.

Como a imprensa tem revelado, essa Abin republicana parece ter deixado de existir. Hoje, não é seguro afirmar que a Abin seja um órgão que se preste exclusivamente ao estrito cumprimento de sua finalidade legal, agindo “com irrestrita observância dos direitos e garantias individuais, fidelidade às instituições e aos princípios éticos que regem os interesses e a segurança do Estado”, como determina o artigo 3.º, parágrafo único, da referida lei.

A Polícia Federal (PF) investiga a grave suspeita de que, durante o governo de Jair Bolsonaro, a Abin tenha sido transformada, como dissemos, num arremedo de SNI para servir aos interesses da família do ex-presidente, e não do País. No governo de Lula da Silva, por sua vez, não se tem presente a relação de confiança que há de haver entre os agentes que produzem informações sensíveis para a tomada de decisão e as autoridades que devem recebê-las, a começar pelo chefe de Estado e de governo.

No dia 30 passado, Lula demitiu o diretor-adjunto da Abin, Alessandro Moretti, o segundo na hierarquia do órgão. Sobre Moretti paira a suspeita de manter ligações com o ex-diretor da agência e deputado bolsonarista Alexandre Ramagem (PL-RJ), a fim de repassar-lhe informações sigilosas colhidas pela Abin sobre temas de interesse do clã Bolsonaro. Em meio a essa onda de paranoia e desconfiança, há quem defenda até a demissão do atual diretor da agência, Luiz Fernando Corrêa. Afinal, foi dele a decisão de nomear Moretti como seu diretor-adjunto.

Seja qual for o novo organograma da Abin, o fato é que, transcorrido mais de um ano do governo Lula, permanece o evidente descontrole do País sobre seu aparato de inteligência, como se seus membros pudessem agir como bem entendessem e devessem obedecer a ordens flagrantemente ilegais. É uma obviedade, mas vale ressaltar: num país democrático, agente de inteligência não é espião a serviço do governante de turno. Essa subversão até pode render bons roteiros de cinema. Na vida real, é uma afronta à democracia e à ordem constitucional, além de um risco para os cidadãos. Ora, se nem o presidente da República está tranquilo com a atuação da Abin – ou Lula não teria ordenado a demissão de seu diretor-adjunto –, nenhum cidadão tem razão para dormir em paz sabendo que seus direitos e garantias fundamentais podem ser violados.

O descontrole se manifesta em situações comezinhas. Na operação que cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços de Ramagem, a PF recolheu um notebook e um celular da Abin em posse do atual deputado, malgrado o fato de ele não fazer parte do órgão de inteligência desde março de 2022. Questionada pelo Estadão, a Abin afirmou que “não deu falta dos equipamentos”, pasme o leitor, e que nem sequer deveria tentar reavê-los após a demissão de Alexandre Ramagem, pois “a responsabilidade de devolver o material era do então diretor”. Ou seja, o órgão central do Sisbin admite não ter cuidado com ativos que podem carregar informações sensíveis que deveriam ser secretas. É uma perigosa esculhambação.

O valor do diálogo político

O Estado de S. Paulo

Deveria ser a regra, mas é preciso celebrar quando adversários como Lula e Tarcísio deixam de lado as diferenças para viabilizar um bem para a sociedade, caso da ligação Santos-Guarujá

O presidente Lula da Silva e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, chegaram a um acordo para a construção de um túnel que ligará as cidades de Santos e Guarujá. Pela negociação, selada nesta semana em Brasília, União e Estado vão dividir os custos e, sobretudo, os louros do empreendimento. O termo de cooperação para o início das obras deve ser assinado em uma cerimônia no litoral paulista para celebrar os 132 anos do Porto de Santos.

O acordo é verdadeiramente histórico. A ligação entre as duas cidades é aguardada há praticamente um século pelos moradores da região. Quase 80 mil pessoas fazem a travessia do canal diariamente por balsas, com filas de espera que variam conforme o fluxo de veículos e as condições climáticas. Cerca de 10 mil caminhões precisam fazer o percurso por rodovia, em um trecho de 45 km.

O túnel terá 1,8 km de extensão e reduzirá consideravelmente o tempo de ligação entre as duas margens da Baixada Santista, região por onde passam nada menos que 30% das exportações e importações brasileiras. É quase inacreditável, portanto, que se tenha levado tanto tempo para resolver um dos maiores gargalos logísticos do País.

É fato que havia dúvidas a respeito da melhor forma de conectar os dois municípios, por túnel ou ponte, mas disputas políticas pela paternidade da obra explicam a maior parte da letargia decisória. Por isso mesmo, é preciso celebrar quando duas das principais lideranças políticas do País conseguem deixar de lado suas diferenças políticas em nome de um bem comum.

Lula da Silva, inicialmente, planejava financiar o túnel com recursos da União, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), sem participação do Estado. Tarcísio de Freitas, por sua vez, preferia executar a obra por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP) e ameaçava travar a emissão de licenças se a União seguisse com o plano original.

Tudo se encaminhava para uma batalha que duraria anos e resultaria em mais uma oportunidade perdida. Foi o que ocorreu durante os mandatos de Jair Bolsonaro na Presidência e de João Doria no governo do Estado, ferrenhos adversários que protagonizaram uma disputa política de consequências deletérias para ambos, mas, sobretudo, para a população paulista.

Lula da Silva, a bem da verdade, é mais habilidoso que Bolsonaro. Sem maioria no Congresso, o petista investe na polarização sem deixar de reconhecer a necessidade de negociações entre, segundo suas palavras, “aqueles que não gostamos e os que não gostam de nós”.

Tarcísio, no entanto, oscila entre o pragmatismo que se exige do governador de São Paulo e a fidelidade a um padrinho político que sempre rejeitou peremptoriamente o diálogo com adversários e boicotou ações compartilhadas entre entes federativos à revelia da própria Constituição.

Este jornal não se furta de criticar o governador quando ele insiste em seguir o receituário populista do bolsonarismo, em especial na área de segurança pública. A Operação Escudo, as ações na Cracolândia e sua resistência ao uso de câmeras em fardas policiais desprezam todas as evidências e só podem ser explicadas pela lealdade a Bolsonaro e sua virulenta claque.

No episódio do túnel entre Santos e Guarujá, no entanto, Tarcísio mostrou que sabe agir como estadista. Foi a Brasília, reuniu-se com Lula e os ministros da Casa Civil, Rui Costa, e de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, seu colega de partido, o Republicanos.

Tarcísio, ao ignorar os celerados bolsonaristas que se abespinham toda vez que aparece na foto com Lula, revela-se à altura do cargo e deferente ao espírito constitucional, que incentiva a colaboração entre União, Estados e municípios. Manter um diálogo institucional com o presidente e demais autoridades do Executivo já foi visto como algo natural e deveria ser resgatado.

Não foi a primeira vez que Tarcísio demonstrou ter essa compreensão. Basta lembrar a simbólica caminhada que uniu representantes dos Três Poderes e os governadores na Esplanada dos Ministérios após o episódio do 8 de Janeiro, bem como as ações emergenciais depois das fortes chuvas que atingiram o Litoral Norte no ano passado.

O Brasil será um país bem melhor quando gestos civilizados como esses deixarem de ser notícias excepcionais.

Democracia da carochinha

O Estado de S. Paulo

Judiciário controlado por Maduro confirma punição à principal opositora do ditador venezuelano

O Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela confirmou no último dia 26 a inelegibilidade por 15 anos de María Corina Machado, a ex-deputada consagrada nas primárias da oposição para enfrentar o ditador Nicolás Maduro na eleição presidencial de 2024. Eram favas contadas.

O compromisso do regime chavista com os Estados Unidos de realizar um pleito livre e justo – em troca da retomada de seus embarques de petróleo e gás ao mercado americano – surgiu sem o fio de bigode de uma das partes em outubro passado. Acreditar nos termos aceitos por Caracas, isto é, esperar que a Venezuela chavista pudesse se tornar minimamente democrática de uma hora para outra, era crer num conto da carochinha. Para preservar-se no poder, Maduro jamais dispensaria os mecanismos autoritários à sua mão.

A decisão da mais alta corte venezuelana foi mais uma trava levantada contra a mobilização da oposição em torno de uma candidatura capaz de destronar Maduro, há quase 14 anos no poder. Henrique Capriles, outro nome forte entre os eleitores avessos ao regime, tornou-se também inelegível. No início de novembro, quando se contavam apenas 13 dias desde a assinatura do acordo com os EUA em Barbados, o mesmo tribunal suspendeu os efeitos das primárias da oposição. O Ministério Público, em paralelo, desencadeou uma perseguição aos integrantes da comissão organizadora daquele pleito. Mais iniciativas certamente virão.

É assim que as coisas funcionam na Venezuela, onde Maduro controla sem nenhum pudor o Judiciário, o Legislativo e o Ministério Público e não titubeia em valer-se dos aparatos de coerção das Forças Armadas, da Guarda Nacional Bolivariana e das milícias chavistas contra quem quer que seja. Nesse caldo de cultura autoritária, o mesmo Ministério Público ordenou, na semana passada, a prisão de 32 pessoas sob a acusação de conspirar contra o regime. Não precisou, obviamente, apresentar qualquer evidência de caráter não fictício às instituições pelegas. Menos ainda à sociedade.

A reação negativa de Washington estava nos cálculos de Caracas. Até que demorou, diante dos seguidos atropelos de Maduro ao Acordo de Barbados nos últimos dois meses. Mas veio nesta semana, na forma de sanções imediatas à importação de ouro e da retomada das travas ao ingresso de petróleo venezuelano a partir de abril. A inelegibilidade de María Corina e de Capriles jogou por terra a tese da Casa Branca de que, sob os auspícios do comércio petroleiro, a Venezuela pudesse abrandar seu regime. Ledo engano. O acordo está desfeito.

A sequência de ações do regime contra a oposição confirma a vocação autoritária de Maduro e o valor nulo de sua palavra – a mesma que foi empenhada no compromisso da Venezuela de não invadir a região de Essequibo, da Guiana, firmado em Brasília. O Brasil de Lula da Silva poderia exercer pressão sobre o companheiro Maduro. Mas não o faz e, diante da mais recente demonstração de arbitrariedade de seu companheiro, mantém-se em obsequioso silêncio – provavelmente porque ainda acredita na fábula de que a Venezuela seja uma democracia.

Menos conflitos entre os Poderes

Correio Braziliense

A harmonia dos Três Poderes está estremecida, tornando o que está ruim muito pior para os brasileiros, em todos os setores.

Os desafios sociais e econômicos do Brasil são tão grandes quanto o seu território. Mas o país segue dividido pela pluralidade das ideologias políticas, que dificulta a convergência de posições e ações em favor de uma sociedade mais equânime, com mais educação, saúde, oportunidades de trabalho, menos violência, e sem fome e miséria. A harmonia dos Três Poderes está estremecida, tornando o que está ruim muito pior para os brasileiros, em todos os setores. A esperança de dias melhores fica mais pálida diante dos embates e entraves que dificultam avanços na perspectiva de construção de um país melhor.

O primeiro ano do terceiro mandato de Lula foi dedicado à arrumação da casa, sobretudo no campo social. Foram retomados projetos, como Minha Casa, Minha Vida, Bolsa Família, Farmácia Popular, Merenda escolar, relançamento da campanha de vacinação, retomada da demarcação e proteção dos povos originários e tradicionais, entre outras ações e encerrou o ano com a aprovação da Reforma Tributária, há três décadas em tramitação no Congresso. No total, foram 28 realizações, nos campos social, ambiental e econômico.

O Legislativo tem papel fundamental neste processo de transformação do país, a fim de assegurar aos brasileiros qualidade de vida digna, independentemente das convicções ideológicas pessoais. Assim, é indispensável o comprometimento dos parlamentares com a melhoria da educação, da saúde, da segurança pública, da defesa do patrimônio ambiental, do respeito aos direitos individuais e coletivos, dos povos originários e tradicionais, como estabelece a Constituição de 1988. O Congresso não pode se tornar uma cabine de asfixia dos valores civilizatórios. Pelo contrário, deve ser aliado das aspirações da sociedade, que deseja viver em um Brasil com mais civilidade, menos violência e que ofereça serviços públicos de qualidade em todos os níveis e a todos os cidadãos.

As divergências entre os Poderes reforçam a polarização que é radicalmente intransigente desde as eleições de 2018. Hoje, é notório o conflito entre eles. O ápice do acirramento ocorreu em 8 de janeiro do ano passado, quando adeptos da extrema-direita insurgiram-se contra o regime democrático e vandalizaram as sedes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, ávidos por uma intervenção militar que ressuscitasse a ditadura militar. A união momentânea dos Três Poderes impediu o golpe.

Uma harmonia que se diluiu nas semanas seguintes, quando o Supremo Tribunal Federal começou a julgar e a punir os vândalos. O acirramento cresceu com a identificação de financiadores e, hoje, se aproxima dos líderes do frustrado atentado contra a democracia. Inadmissível que legisladores produzam leis favoráveis à impunidade de aliados, construindo projetos que colidem com a Constituição, que assegura direitos e deveres iguais para todos.

O Judiciário como guardião da Constituição e da democracia, e em harmonia com o Legislativo e com o Executivo, entre suas muitas atribuições, tem um papel comum aos tribunais constitucionais, de “dar limite ao poder político majoritário”, afirmou o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, durante o Colóquio Franco-Brasileiro de Direito Constitucional, ocorrido no Congresso, em outubro passado. Não se trata de tolher a independência de outro poder, mas garantir, de modo colaborativo, o respeito aos mandamentos constitucionais, evitando instabilidades que possam acarretar insegurança e danos às conquistas da sociedade.

Hoje, o Correio Braziliense relança o caderno Direito e Justiça, um espaço que abriga artigos de juristas, advogados, autoridades do Judiciário, dando aos leitores informações e visões diferentes sobre os mais diversos temas, abraçados neste campo.

As divergências entre os Poderes da República não são peculiaridades singulares do Brasil. Elas ocorrem em todas as nações, e devem ser superadas pelo diálogo, instrumento indispensável à construção de consensos, que traduzam os anseios majoritários da sociedade e em favor do bem comum. São esses entendimentos que a sociedade brasileira espera dos que ocupam os espaços de decisão, a fim de conduzir o Brasil a trilhar um caminho de harmonia, paz, progresso e desenvolvimento.

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