sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Acusação de golpe é a mais grave numa democracia

O Globo

Investigação da conspiração para manter Bolsonaro no poder deve prosseguir com o máximo rigor — e com serenidade

Uma investigação da Polícia Federal (PF), conduzida com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF), apresentou evidências convincentes de que Jair Bolsonaro, quando presidente, alguns de seus ministros, assessores próximos, funcionários do governo e militares tramaram contra a soberania do voto popular, preparando um golpe de Estado. São áudios, vídeos, mensagens de texto e documentos que dão muita consistência às acusações. Não existe acusação mais grave numa democracia. Por isso a investigação deve prosseguir com o maior rigor — mas também com a máxima serenidade.

A Operação Tempus Veritatis, deflagrada ontem pela PF com autorização do ministro Alexandre de Moraes, do STF, investiga um grupo acusado de tramar um golpe de Estado para manter Bolsonaro no poder desde quando era antevista a possível derrota para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2022. Segundo a PF, caso a derrota se concretizasse, um plano previa a prisão de Moraes, do decano do STF, Gilmar Mendes, e de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado.

A PF diz que mensagens apreendidas na investigação mostram que Bolsonaro recebeu a minuta do decreto da prisão e a editou para retirar da lista de presos Gilmar e Pacheco — é a primeira vez que se menciona uma ação direta do então presidente nas tramas golpistas. Também sustenta que Bolsonaro convocou os comandantes das Forças Armadas ao Palácio da Alvorada para “pressioná-los a aderir ao golpe de Estado”. Suspeito de ter desempenhado papel central na trama em novembro de 2022, Filipe Martins, ex-assessor para Assuntos Internacionais da Presidência, foi um dos alvos da operação, e sua prisão preventiva foi decretada.

Outro suspeito cuja prisão foi decretada é o coronel da reserva do Exército Marcelo Câmara, ex-assessor especial da Presidência apontado como responsável pelo “núcleo de inteligência paralela” dos golpistas. Entre as atividades atribuídas ao grupo estava o monitoramento dos passos do próprio Moraes. Em determinado momento, diz a PF, o planejamento para a prisão de Moraes tinha local e data marcados: São Paulo, 18 de dezembro de 2022.

A PF diz ter evidências que comprovam o que chama de “dinâmica golpista” antes mesmo do primeiro turno das eleições. A ideia dos conspiradores era contestar qualquer resultado desfavorável a Bolsonaro por meio das acusações sem fundamento contra o sistema eleitoral que circulavam havia meses. A conspiração envolveu até o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, que chegou a usar verbas do partido para financiar os ataques à urna eletrônica e pediu a anulação do resultado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ontem a polícia encontrou na sede do PL documentos para decretação de estado de sítio. Costa Neto, alvo de mandado de busca e apreensão, acabou preso por portar arma sem permissão legal.

Um vídeo apreendido no computador do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro que firmou acordo de delação premiada depois de preso em maio passado, é uma das provas mais robustas apresentadas no inquérito. Ele registra uma reunião em julho de 2022 com a presença de Anderson Torres (então ministro da Justiça), Augusto Heleno (chefe do Gabinete de Segurança Institucional) e Walter Braga Netto (ministro da Casa Civil).

De acordo com a descrição do vídeo feita pela PF, Bolsonaro, nervoso com a possibilidade de derrota nas urnas, exige que os ministros tomem providências contra o TSE. Na gravação, Torres promete reforçar os ataques ao sistema eleitoral, e Heleno opina que se “tiver que virar a mesa, é antes das eleições”. Torres, Heleno, Braga Netto e o general Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa, estão entre os alvos de mandados de busca e apreensão. Pelo envolvimento na trama golpista, Bolsonaro foi proibido de deixar o país e de se comunicar com os demais investigados.

Os indícios revelam que Braga Netto, vice na chapa derrotada de Bolsonaro, concentrou esforços para pressionar e atacar militares em posição de comando contrários à ideia de golpe. Segundo a PF, as investidas partiram de múltiplos canais. Em conversas por mensagem rastreadas pelos investigadores, Braga Netto dá orientação para que o então comandante da Força Aérea, o tenente-brigadeiro Baptista Júnior, contrário ao golpe, seja atacado. E para que o almirante de esquadra Almir Garnier Santos, favorável ao golpe, seja elogiado. Braga Netto manda “oferecer a cabeça” do general Freire Gomes, então comandante do Exército, e se refere a ele com um palavrão quando confrontado com a informação de que ele não aderira ao golpe. Apesar dos esforços golpistas, é sempre fundamental lembrar que, ao fim, prevaleceram o bom senso e a postura legalista no Alto-Comando do Exército. O país se livrou da intentona e houve transferência de poder ao vencedor das eleições.

Os desafios do inquérito não têm paralelo na História recente do Brasil. Ele confirma o que muitos denunciaram ao longo do mandato de Bolsonaro — a imprensa sempre vigilante. Diante de acusações tão graves, os eventuais indiciados deverão ter amplo direito de defesa, de modo a dirimir quaisquer dúvidas sobre o caráter republicano das investigações. Muitos tentarão posar de vítimas de arbítrio, usando o processo em benefício político próprio. Para evitar essa postura e desmenti-los, PF, Procuradoria-Geral da República e STF precisam manter atuação serena e responsável. Antes de qualquer julgamento, todos merecem a presunção de inocência, da mesma forma que os acusados de crimes no 8 de Janeiro.

A democracia é conquista inegociável, e tramar contra o resultado das urnas é atentado inadmissível. Por isso as investigações devem seguir com afinco e, comprovada a culpa nos tribunais, a punição aos condenados deve ser severa. É o mínimo a que o Brasil tem direito para preservar a democracia que tanto nos custou.

Com fortes indícios, investigação deve ser firme e sem atropelos

Valor Econômico

Desvios na garantia dos direitos legais dos investigados reforçariam a nociva polarização política que divide o país e serviriam aos inimigos da democracia

A Operação Tempus Veritatis da Polícia Federal, com 33 mandatos de busca e apreensão, quatro mandados de prisão e 45 medidas cautelares, buscou responder às principais perguntas sobre as manifestações golpistas de 8 de janeiro: quem foram seus mentores, organizadores e beneficiários? As respostas serão dadas pela Justiça, mas as investigações parecem se aproximar dos responsáveis, que, segundo a PF, seriam o então presidente Jair Bolsonaro e um círculo íntimo de generais e altas patentes militares. A blitz da PF partiu da delação premiada do ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, e do vasto material encontrado em seus celulares. O ex-presidente foi intimado a entregar seu passaporte em 24 horas e proibido de ausentar-se do país.

Grande parte da decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que autorizou a ação da PF, tem como um dos eixos principais a preparação de decreto a ser assinado por Bolsonaro, que estabeleceria medidas de exceção que consubstanciariam um golpe de Estado. Novas eleições seriam convocadas - já que as que resultaram na vitória de Luiz Inácio Lula da Silva teriam sido fraudadas, na narrativa golpista - após a prisão dos ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Mesmo antes da eleição, Bolsonaro teria convocado uma reunião em 5 de julho com militares da ativa e integrantes civis do governo para detalhar esse decreto do golpe.

Há agora indícios mais circunstanciados da preparação de um golpe pelo núcleo de governo, desde a confecção de decretos que o deslanchariam até a divisão de trabalho em núcleos que cuidariam de sua preparação estratégica e material. A alegação de círculos bolsonaristas de que tudo não passou de atitudes inconsequentes de “patriotas”, sem direção ou rumo, perde força diante do material já coletado pela PF sobre o assunto. Minutas várias do que parecia uma obra em progresso foram encontradas em posse do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro e ex-secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres, e em outros locais. O presidente do PL, Valdemar Costa Neto, preso ontem por porte ilegal de armas, chegou a minimizar o assunto na época, ao declarar, em 26 de janeiro, que as minutas com esse teor estavam “na casa de todo mundo”.

A peça de Alexandre de Moraes, baseada nas investigações, aponta que os autores do decreto seriam Filipe Martins, ex-assessor para Assuntos Internacionais de Bolsonaro, e Amauri Feres Saad, advogado mencionado na CPI dos Atos Golpistas. Filipe foi preso ontem na casa de sua namorada em Ponta Grossa (PR).

A minuta do golpe, uma obra coletiva, teria sua versão mais acabada apresentada em reunião no dia 7 de dezembro de 2022, após o segundo turno das eleições, da qual participaram o então presidente, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, e o comandante da Marinha, Almir Garnier Santos. Bolsonaro teria pedido alterações no texto e então teria apresentado a minuta no Palácio da Alvorada a Carlos Baptista Junior, comandante da Força Aérea, e ao general Marcos Freire Gomes, comandante do Exército. Sabe-se que ambos foram contra o golpe.

Em 9 de dezembro, o general Estevam Gaspar de Oliveira, do Comando de Operações Terrestres (Coter) do Exército, responsável pelo Comando de Operações Especiais, teria se reunido com Bolsonaro no Palácio do Alvorada e, pelas gravações contidas no celular de Mauro Cid, teria dado consentimento ao golpe desde que o presidente assinasse a medida. Pelo texto da decisão de Moraes, Oliveira seria o responsável pelo emprego das tropas, as Forças Especiais do Exército (os “Kids Pretos”), se a intervenção militar ocorresse.

O candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa, teria feito parte de um grupo de pressão destinado a pressionar os militares em postos de comando que resistiam à ideia e a angariar nas Forças Armadas apoio para mudar a decisão das urnas. A organização da ação golpista seria dividida em cinco núcleos de operação, que se encarregariam da desinformação e ataques ao sistema eleitoral, incitação à adesão de militares em apoio ao golpe, apoio às manifestações preparatórias, como concentração de civis diante dos quartéis, e inteligência paralela.

Os indícios de que o vandalismo de 8 de janeiro foi incentivado e planejado pelo círculo próximo ao então presidente Jair Bolsonaro, com sua participação ativa, são agora mais fortes. Vídeos e gravações obtidas nas operações anteriores e por intermédio da delação de Mauro Cid estabelecem um elo coerente entre as intenções de Bolsonaro e a depredação das instituições da República.

A defesa inicial de Bolsonaro é a de sempre, a de que é perseguido pelo STF em geral e pelo ministro Alexandre de Moraes em particular. Por isso é crucial que todos os acusados tenham amplo direito à defesa, e que se possa fazer um julgamento técnico e desapaixonado sobre um fato lamentável da história republicana. Atropelos e desvios na garantia dos direitos legais dos investigados reforçariam a nociva polarização política que divide o país e serviriam aos inimigos da democracia.

Na dengue, corremos atrás do prejuízo

Folha de S. Paulo

Governos em todas as esferas falharam ao não se precaverem para sobrecarga do sistema gerada por surto previsto da doença

A população brasileira já sabe que o ano começa com Carnaval, chuvas e dengue. Entretanto o surto da doença em 2024 quebra recordes. Nas cinco primeiras semanas epidemiológicas, o país registrou quase o dobro de casos ante o mesmo período de 2023, passando de 82.840 para 156.871.

O Distrito Federal, que decretou estado de emergência, tem a maior incidência, com 46.298 casos prováveis até domingo (4) —alta de 1.120% em relação a 2023.

Ao superar 10 mil diagnósticos, o estado do Rio de Janeiro também decretou estado de emergência; na capital, janeiro somou 362 internações, maior número desde 1974.

O pior é que a possibilidade de que a situação calamitosa se instaurasse não era desconhecida por autoridades do setor de saúde.

Os casos vêm aumentando em todo o mundo na última década, atingindo em 2023 até países anteriormente livres do vírus, como Itália, França e Espanha.

Na América Latina, cujo clima tropical é propício ao mosquito, o gráfico ascendente mostra 400 mil casos em 2000, seguido por 1,7 milhão (2010) e até 2,8 milhões (2022).

No Brasil, segundo a série histórica do Ministério da Saúde com início em 2000, a marca de 1 milhão foi cruzada pela primeira vez em 2015. No ano passado, houve 1.658.816 de casos, dado só superado pelos 1.688.688 de 2015.

De acordo com a OMS, a alta global se deve a mudanças climáticas, aumento de circulação de pessoas e urbanização desordenada. Países emergentes, como o Brasil, sofrem ainda com saneamento precário.

Não à toa, no ano passado o órgão emitiu dois alertas sobre picos de casos, acrescentando o fenômeno El Niño como fator importante para a escalada da doença.

Mesmo assim, o Ministério da Saúde não agilizou a burocracia para a distribuição pelo SUS da vacina japonesa Qdenga, autorizada pela Anvisa em março de 2023.

Como o imunizante exige duas doses em intervalo de três meses, e a farmacêutica responsável só consegue entregar cerca de 5 milhões de doses até novembro, por ora esse recurso terá efeito bastante limitado para dar conta do colapso.

A dengue é uma doença que sobrecarrega os aparelhos de saúde. Governos nas esferas federal, estadual e municipal também falharam ao não preparar a infraestrutura física, logística e de pessoal do sistema para lidar com a alta de pacientes, muitos agora atendidos em tendas improvisadas.

Com o estrago já feito, resta ao poder público correr contra o tempo para incrementar o atendimento, aliado a medidas de prevenção e conscientização. Segundo especialistas, o pior ainda está por vir.

Crise na Ucrânia

Folha de S. Paulo

Presidente troca chefe militar; há dúvidas sobre capacidade de conter a Rússia

Em uma fotografia distribuída nesta quinta (8) pelo governo da Ucrânia, o presidente Volodimir Zelenski aparece de mãos dadas e dividindo um sorriso otimista com o general Valeri Zalujni, o comandante das Forças Armadas do país invadido pela Rússia há quase dois anos.

Há meses não se via cena semelhante, pelo motivo daquela encenação: após crescentes desavenças públicas, o mandatário acabara de demitir o chefe militar, a quem tinha pedido sem sucesso que entregasse o cargo de forma voluntária.

O teatro é revelador do estado de espírito relatado em Kiev por esses dias, os piores desde que o russo Vladimir Putin resolveu rasgar a lei internacional e atacar seu vizinho menor como se estivesse na Europa dos anos 1930.

O general ressentiu-se da crescente vontade do presidente, embevecido pela admiração mundial auferida pela sua heroica resistência à agressão russa, de decidir sobre temas militares.

E Zelenski enxerga Zalujni como uma estrela política em ascensão, talvez até um rival no dia em que a Ucrânia voltar a ter eleições.

O azedume político é temperado pela desconfiança, entre os aliados ocidentais de Kiev, de que os ucranianos não terão como ganhar a guerra ou mesmo conter o apetite territorial já vigente em Moscou.

É um ciclo vicioso. A tentativa de volta à Casa Branca por parte de Donald Trump levou o Partido Republicano a barrar iniciativas do governo democrata de Joe Biden para aprovar um pacote de apoio militar de R$ 300 bilhões. É uma novela que se arrasta desde dezembro, sem fim à vista.

A Europa aprovou uma ajuda progressiva de R$ 270 bilhões, mas ela mira a economia, não o fornecimento de novos armamentos.

O cenário favorece os russos, que hoje já têm vantagem de 5 para 1 em termos de artilharia, e estão saturando as defesas aéreas ucranianas com ondas de bombardeios.

O substituto de Zalujni será o chefe do Exército, visando evitar assim uma debacle na moral das tropas. Porém isso já é realidade em campo, dada a reversão na expectativa vendida por Kiev de que entraria 2024 na dianteira. O tempo corre contra Volodimir Zelenski.

O tempo da prudência

O Estado de S. Paulo

No momento em que operação da PF contra Bolsonaro eletriza o País, exige-se que tudo seja feito em absoluto respeito à lei. Só se combatem os inimigos da democracia com mais democracia

A história costuma ter dias e momentos determinantes, e o 8 de fevereiro de 2024 pode se tornar um deles. A operação da Polícia Federal que investiga uma possível tentativa de golpe de Estado investiu ontem contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e alguns dos seus aliados mais próximos, com 33 mandados de busca e apreensão, 4 mandados de prisão e 48 medidas cautelares. Entre os alvos estavam os generais Augusto Heleno, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional; Braga Netto, ex-ministro-chefe da Casa Civil e candidato a vice na derrotada chapa de Bolsonaro à reeleição; e Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa. Entre os presos, o coronel Marcelo Costa Câmara, ajudante de ordens do então presidente; e Felipe Martins, ex-assessor internacional. O próprio Bolsonaro foi alvo, com a determinação de retenção do seu passaporte. A operação também envolveu o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, que acabou preso por uma razão paralela, a de porte ilegal de arma de fogo.

É possível que estejamos diante de um prenúncio de algo ainda maior por vir. Pelo que veio à luz até aqui, as evidências e os contornos do enredo golpista são fartos e graves. A peça que sustentou a operação menciona “núcleos de atuação do grupo criminoso” – da disseminação de notícias falsas para atacar o sistema eleitoral ao incitamento de militares para aderir ao golpe; de uma rede de apoio operacional para as manifestações golpistas até a elaboração de minutas de decretos para sustentar, com certo verniz jurídico e constitucional, a supressão do Estado Democrático de Direito.

Não faltaram – nem faltarão – festejos daqueles que desejam a mais rápida e exemplar punição para o golpismo instalado no País, estimulado pelo ex-presidente. Após passar décadas desafiando impunemente a democracia, entre os tempos de mau militar ao período de congressista do baixo clero, Bolsonaro exerceu seu mandato na Presidência disposto a ignorar o compromisso de respeitar a Constituição, valendo-se do cargo para tumultuar e deslegitimar o processo eleitoral. Seu leitmotiv era o de disseminar a desconfiança nas urnas, gerar instabilidade e criar condições para um eventual golpe. O ápice dos seus ataques foi a reunião de 18 de julho de 2022 com embaixadores estrangeiros para atacar as urnas eletrônicas, peça fundamental para o Tribunal Superior Eleitoral declarar sua inelegibilidade.

Isto posto, o momento exige prudência e serenidade das lideranças e instituições envolvidas. O pior dos males, nessas circunstâncias definidoras da história, é o açodamento, a sanha punitivista, a espetacularização, os excessos cometidos em nome de uma simbologia política e midiática e o descumprimento dos mais estreitos limites dos direitos e liberdades individuais previstos na Constituição. Não custa dizer o óbvio: ainda que haja uma pletora de evidências, ninguém pode ser considerado culpado até prova em contrário. E não só as provas precisam ser seguras e confiáveis, como aos suspeitos deve ser garantido o amplo direito de defesa.

A história recente informa, no entanto, que alguns dos limites têm se tornado bastante elásticos na busca de culpados pelos atentados à democracia brasileira. O STF e, em particular neste processo, o ministro Alexandre de Moraes têm atuado de maneira heterodoxa em muitos momentos. São alguns dos seus vícios a politização, o excesso de protagonismo (inclusive fora dos autos) e o espírito de justiceiro, ensejando um clima de vale-tudo institucional – sempre, é claro, em nome de uma boa causa. Foi esse mesmíssimo problema, convém lembrar, que maculou a Lava Jato e fez ruir a operação e decompôs a biografia de seus artífices.

O Brasil esteve diante de um dos mais significativos ataques à democracia de sua história. É exatamente por essa razão que se exige o mais absoluto cuidado com o processo destinado a repará-lo. Nada mais poderoso e eficiente, para proteger a democracia, do que seguir o que está na lei. Contra o atentado à democracia, a melhor resposta é mais democracia.

Notória ignorância ética

O Estado de S. Paulo

Como se não coubesse num só Poder, Dino trafega ruidosamente pelos três, deixando claro seu afã de satisfazer o ‘sonho antigo’ de Lula de ter um ministro do STF com ‘cabeça política’

Ninguém ignora que o presidente Lula da Silva não indicou ao Supremo Tribunal Federal (STF) seu amigo, correligionário, ex-ministro da Justiça e senador Flávio Dino (PSB-MA) por seu relativamente desconhecido saber jurídico, e sim por seu notório saber político. Com uma base diminuta no Congresso, Lula não disfarçou seu desejo de consolidar a Corte como fiadora do Executivo e plenário de “terceiro turno” do Legislativo, confessando seu “sonho antigo” de instalar nela alguém com “cabeça política”.

Uma vez referendado pelo Senado, o decoro exigia de Dino que se recolhesse para engavetar o figurino político e confeccionar o figurino judiciário. Ao invés disso, ele decidiu aferrar-se até o último minuto à caneta de ministro da Justiça. Mal passou o bastão ao sucessor, o ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski, resolveu fazer um “pit stop” no Senado para propor “projetos”, algo que poderia ser feito por sua suplente – cuja notória atividade política, por sinal, é ser mulher de um deputado estadual companheiro de Dino.

Com essa espantosa nonchalance, como se seu ego não coubesse num só Poder, Dino saracoteia pelos três, ostentando a um tempo seu saber político e sua ignorância ética. É preciso reconhecer sua notável coerência. Já no Ministério, expôs aos quatro ventos a incompreensão de suas funções públicas.

Na coreografia institucional do Estado Democrático de Direito, o ministro da Justiça tem o papel singular de zelar pela defesa da ordem jurídica, dos direitos políticos, das garantias constitucionais e da segurança pública, trabalhando para que o Executivo atue nos limites traçados pelo ordenamento jurídico, ou seja, moldando a política pelo Direito. Dino fez o oposto, afanandose para que o Direito fosse moldado pela política.

À frente da pasta, Dino dividiu seu tempo entre parolagens tão infladas quanto inócuas e sua carreira de influencer militante. Quem se lembra de alguma grande realização de sua gestão? Seu “Programa de Enfrentamento às Organizações Criminosas” é só um compêndio de intenções genéricas que não toca as causas do problema. Sua “Operação de Garantia da Lei e da Ordem” foi só uma pirotecnia castrense populista comprovadamente ineficaz.

Mas quem não se lembra de alguma ruidosa polêmica insuflada por Dino em palanques e redes sociais? Como quando decidiu passar lição de moral aos argentinos por suas escolhas eleitorais, ou se vitimizar quando seus subordinados foram flagrados num encontro oficial com uma mulher envolvida com altos escalões do narcotráfico, ou antecipar resultados de investigações sigilosas. Dino opina sobre tudo e converte tudo em combustível para fustigar adversários do lulopetismo. Há poucos dias, já tendo sido aprovado para o Supremo, deu-se ao luxo imprudente de comentar investigações sobre a Agência Brasileira de Inteligência.

A imagem de assessor especial de Lula e líder da bancada petista no Supremo já colou no imaginário popular, e Dino está tão à vontade com ela que, num evento oficial, sugeriu jocosamente a Lula que pedisse “uma liminar no Supremo” caso servidores fizessem reivindicações que lhe desagradassem. Tão inapropriada foi a blague, que o próprio Lula, um mestre do traquejo político, não conseguiu disfarçar seu constrangimento.

Num momento de tensionamento institucional e insatisfação da sociedade com a politização da Corte e com o protagonismo individual e a falta de exemplaridade de seus integrantes, o ideal seria um novo ministro discreto, técnico, rigorosamente avesso às disputas partidárias e ao exibicionismo das mídias sociais – como, aliás, foi a predecessora de Dino, Rosa Weber. Mas a realidade é implacável, e Dino não é essa pessoa. Esperava-se que ao menos se esforçasse por preservar as aparências. Mas Dino não perde uma oportunidade de mandá-las às favas. Numa subversão peculiar do provérbio sobre a mulher de César, é como se, no afã de satisfazer os sonhos do presidente Lula, não lhe bastasse ser um magistrado político, precisando sofregamente parecer um.

Placar sinistro

O Estado de S. Paulo

A PM paulista já matou mais de 40 pessoas em operações para vingar a morte de policiais

É estarrecedor que não tenha causado nenhuma comoção a notícia de que a Polícia Militar (PM) matou nada menos que sete pessoas num único fim de semana na Baixada Santista, a título de vingar a morte de um PM durante patrulha em Santos. No total, operações desse tipo, criadas no governo de Tarcísio de Freitas, já deixaram mais de 40 mortos. Salvo as manifestações de praxe por parte de grupos de defesa dos direitos humanos, parece imperar a indiferença diante da evidente truculência policial.

Conclui-se que há certas regiões do Estado de São Paulo, notavelmente as mais pobres, em que não vigora o Estado Democrático de Direito – aquele que garante a todos, sem distinção, a igualdade perante a lei –, e nem isso tem sido capaz de despertar grande interesse, salvo como matéria-prima para o noticiário sensacionalista. Dá-se de ombros, como se fosse aceitável que uma parte da população paulista não seja titular de direitos.

O curioso é que o governo estadual não tem se empenhado muito em disfarçar o caráter arbitrário de suas ações. O linguajar utilizado para explicar tantas mortes assemelha-se ao dos tempos da ditadura militar, em que os infames “autos de resistência” tentavam dar legitimidade à execução de suspeitos por policiais. Os “autos de resistência” não existem mais com esse nome, mas o espírito permanece, como se depreende das declarações do secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, a propósito das mais recentes mortes resultantes da Operação Escudo: segundo ele, “os indivíduos atentaram contra os policiais” e “um deles, com passagens por roubo e furto, foi neutralizado e evoluiu a óbito”.

Não se trata apenas de justificar as mortes. Trata-se de celebrá-las. Antes de ser escolhido secretário, o sr. Derrite – ex-policial militar considerado violento demais até pela Rota, o que é uma façanha – disse que é “vergonhoso” um policial que trabalhe cinco anos e não tenha “pelo menos três ocorrências ou mais que tenham o resultado evento morte do criminoso”. Foi com esse tipo de pensamento deturpado sobre segurança pública que ele se elegeu deputado federal, já que não são poucos os eleitores que confundem policiamento com justiçamento. E lamentavelmente, como era previsível, é esse tipo de pensamento que parece predominar hoje na segurança pública de São Paulo.

É nesse contexto que se insere a resistência do governo paulista ao programa de câmeras nos uniformes da PM. Qualquer forma de constrangimento à truculência policial é desde logo entendida como limitação ao trabalho da PM e como favorecimento aos criminosos. Desconsidera-se que as câmeras protegem os bons policiais contra falsas acusações e ajudam as vítimas dos maus policiais.

Tudo isso faz parte da cultura de regimes autoritários, que entendem o combate ao crime como uma guerra na qual não se fazem prisioneiros. Além de deixar um rastro de mortes e de violência contra inocentes, não funciona.

Muito além da faixa de isenção do IR

Correio Braziliense

Não há justificativa para que apenas a imensa maioria de contratados formalmente seja a fonte principal do Imposto de Renda

A decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de editar uma medida provisória corrigindo a tabela do Imposto de Renda foi acertada, sob pena de trabalhadores com salário de até R$ 2.640, ou menos de dois salários mínimos, terem descontado dos vencimentos a parcela do Leão. Trata-se de uma situação que beira a aberração, uma vez que enquanto trabalhadores têm uma parcela de uma renda quase mínima tributados, há milionários e setores da economia sendo desonerados, ainda que com o prolongamento de medidas que eram para ser emergenciais, no caso das empresas, e por benesses fiscais para a parcela mais rica da população.

Não há justificativa para que apenas a imensa maioria de contratados formalmente seja a fonte principal do Imposto de Renda. Com a mudança feita pela MP, a faixa de isenção do Imposto de Renda Pessoa Física passa de R$ 2.640 para R$ 2.824, para atender aos assalariados que recebem dois mínimos. A medida deve impactar 6 milhões de contribuintes, mas para se ver a distorção da taxação da renda, o rendimento médio do brasileiro é de aproximadamente R$ 3 mil, valor sob o qual já se incide IR, ainda que apenas de R$ 37,50. Como esse valor é mensal, em um ano o assalariado que recebe R$ 176 a mais do que dois salários mínimos recolhe R$ 487,50 para a Receita Federal.

Ontem, durante sua visita a Belo Horizonte, Lula voltou a prometer que, até o final de seu mandato, determinará que as pessoas que ganham até R$ 5 mil sejam isentas do IR. Para isso, segundo o presidente, o governo fará reajustes na tabela todos os anos até 2026.

Para se ter ideia da concentração de impostos sobre a camada mais pobre da população, um levantamento feito pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco Brasil), com base na situação em 31 de dezembro, mostra que uma correção da tabela do IR elevando a faixa de isenção para R$ 4.934,69, com a correção integral da inflação desde 1996 e muito próximo da promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, elevaria o contingente de contribuintes isentos de 18.767.987 para 32.534.437, com mais de 13 milhões de declarantes do IR ficando isentos.

Com base nas projeções para o IR de 2025, ano-base 2024, o Unafisco Nacional calcula que de um total de arrecadação do IRPF previsto de R$ 321 bilhões, R$ 204,43 bilhões deixariam de ir para os cofres públicos, com a arrecadação limitando-se a R$ 116 bilhões. Considerando que 13,776 de milhões de contribuintes deixaram de pagar imposto com a correção da tabela do IR e que a perda de receita será de R$ 204,45 bilhões, é possível dizer que 29,5% do total previsto de 46,631 milhões de contribuintes vão causar um impacto equivalente a 63,65% da receita.

Na outra ponta, segundo a Receita Federal, em 2019, os contribuintes que correspondem a 0,01% da população (20,3 mil pessoas) declararam ter recebido mais de R$ 230 bilhões sem pagar imposto sobre esse valor. Ainda de acordo com o Ministério da Fazenda, a alíquota média do imposto para quem recebeu lucros e dividendos e teve renda superior a 320 salários mínimos por mês (R$ 451,84 mil) foi de 1,6%, enquanto a alíquota média dos assalariados é de 17%.

Há uma distorção gritante no imposto sobre a renda no Brasil e que precisa ser corrigida na magnitude em que se fez a reforma sobre o consumo, que vai representar uma simplificação tributária. É preciso que o governo se debruce sobre a reforma dos impostos sobre a renda para que efetivamente sejam tributados os brasileiros com maiores ganhos e que hoje estão isentos e se exerça fiscalização rigorosa para que a receita do IR não tenha que se ancorar quase que apenas no desconto em folha dos trabalhadores. A reforma deve promover a justiça tributária, com cada brasileiro contribuindo de acordo com sua condição de renda.


Um comentário: