sábado, 3 de fevereiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Decisão de Toffoli sobre Odebrecht deveria ser revista

O Globo

Brasil não pode jogar por terra confissões em vídeo e milhares de páginas com provas de corrupção

Em mais uma decisão individual, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu os pagamentos do acordo de leniência firmado pela antiga Odebrecht (atual Novonor) com o Ministério Público na Operação Lava-Jato. O acordo prevê multas de R$ 3,8 bilhões (ou R$ 8,5 bilhões em 23 anos de pagamento).

Em cinco meses, foi a terceira decisão individual de Toffoli invalidando acordos firmados com grandes empresas cujos executivos confessaram corrupção. Em setembro, ele anulou as provas do mesmo acordo de leniência da Odebrecht, sob o argumento de que houve conluio entre Ministério Público e Justiça Federal. Em dezembro, suspendeu o pagamento de multas de R$ 10,3 bilhões no acordo de leniência da J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, no âmbito da Operação Greenfield. Na época, disse que mensagens captadas ilegalmente levavam a uma “dúvida razoável” sobre o caráter voluntário essencial aos acordos. Ignorou que elas não poderiam ser usadas como prova de acusação. Agora, decidiu sozinho suspender as multas da Odebrecht.

Não é difícil concluir que essas decisões abrem caminho a outras. O ex-presidente da OAS Léo Pinheiro já pediu a Toffoli que suspenda a multa aplicada em seu acordo de delação premiada na Lava-Jato. Na certa virão outros pedidos. Empresas que confessaram ter pagado propina ficam agora em situação confortável, uma vez que se livram do ônus das multas, mas mantêm os bônus pactuados nos acordos. Embora aleguem que assinaram os termos sob coerção, não reivindicam anulação, para não perder autorização para participar de obras públicas e receber empréstimos de bancos estatais.

Pelo impacto desse tipo de decisão, o ideal seria que, havendo recurso da Procuradoria-Geral da República (PGR), ele fosse submetido ao plenário do STF (e não à Segunda Turma, que cuida da Lava-Jato). E com a maior urgência possível (Toffoli não deu prazo para que a Odebrecht analisasse os diálogos ilegais a que agora obteve acesso).

As decisões de Toffoli também deixam o governo diante de um dilema. Como escreveu no GLOBO a colunista Vera Magalhães, caso o Supremo as confirme, derrubando recurso da PGR, a União poderia recorrer, mas isso equivaleria a abandonar a narrativa falaciosa de que a Lava-Jato foi armação contra o PT. Mas não recorrer significaria deixar de receber multas bilionárias num momento em que o governo precisa arrecadar (a União poderia ter até de devolver o que já recebeu).

Não há dúvida de que a Lava-Jato cometeu erros. Porém isso em nada anula a roubalheira confessada. Ela está documentada em milhares de páginas e vídeos nos processos. A Odebrecht entregou de forma voluntária provas de corrupção em 49 contratos. Mais de 70 executivos assinaram delações. A empresa mantinha um setor apenas para gerir as propinas. Também firmou acordos na Suíça e nos Estados Unidos admitindo ter pagado US$ 788 milhões de suborno em 12 países.

Não há falta de provas, mas excesso. É um absurdo querer passar a borracha em tudo. Pretextos jurídicos, ainda que legítimos, não podem escamotear a realidade. O Brasil não deve jogar por terra o que foi desmascarado. A corrupção desvia recursos públicos escassos, pune o contribuinte e degrada a imagem do país. Retrocessos desse tipo transmitem ao cidadão uma sensação de frustração, corroendo a crença na Justiça, nas instituições e na democracia.

Cerco regulatório se fecha sobre as grandes plataformas digitais

O Globo

Mesmo nos Estados Unidos, Congresso em geral avesso a discipliná-las debate lei para defender crianças de abusos

O cerco se fecha sobre as grandes plataformas digitais. Mesmo nos Estados Unidos, onde o Congresso sempre evitou assumir seu papel regulatório, deixando a iniciativa de discipliná-las ao Judiciário, o imobilismo diante dos abusos parece perto do fim. O motivo é a preocupação com as crianças e adolescentes. É notável que, em audiência no Senado, dois executivos das próprias plataformas — Evan Spiegel, do Snap, e Linda Yaccarino, do X — tenham afirmado apoiar o projeto da Lei de Segurança On-Line para Crianças, impondo regras para coibir exploração sexual de menores, anorexia, bullying e marketing predatório, entre outras barbaridades que vicejam no ambiente digital.

Em contraste, o mais poderoso barão das redes sociais — Mark Zuckerberg, controlador de FacebookInstagram e WhatsApp — mais uma vez se esquivou. Pediu desculpas às vítimas e familiares, prometeu apenas ampliar esforços contra abusos. Shou Chew, CEO do TikTok, também desconversou quando questionado. A estratégia dos dois teve efeito contrário ao pretendido. A atitude negacionista reforça a urgência de regular o setor. Entre os pais presentes no Capitólio, o sentimento era de incredulidade. “O senhor e as empresas diante de nós, sei que não é sua intenção, mas têm as mãos manchadas de sangue”, disse a Zuckerberg o senador republicano Lindsey Graham.

A melhor inspiração para enfrentar a empáfia das plataformas digitais está do outro lado do Atlântico. O prazo para que elas se ajustem às exigências da nova lei da União Europeia está próximo (expirará em março). Em vigor desde maio, a legislação introduz responsabilidades para as empresas, cria um sistema de prestação de contas e transparência. Abrangente, atinge serviços que vão das lojas de aplicativos às redes sociais. Antes da aprovação em 2022, as mudanças foram alvo de lobby agressivo das empresas, mas os cenários catastróficos que elas pintavam não se concretizaram.

Os princípios da lei europeia serviram de base ao Projeto de Lei que tenta regulamentar as plataformas digitais no Brasil. Embora seja conhecido como PL das Fake News, ele tem um escopo bem mais abrangente que apenas o combate à desinformação. Impõe às empresas o “dever de cuidado” com aquilo que circula em suas redes, para que façam cumprir leis já existentes no caso de racismo ou incitação ao ódio, abusos contra crianças, mulheres, idosos e outros crimes.

Aqui também a pressão contra a regulação tem ido além do desdém manifestado nos Estados Unidos. Investigações da Polícia Federal descrevem evidências de que empresas como Google e Telegram usaram “artifícios” para evitar a aprovação do PL das Fake News “numa campanha caracterizada por desinformação e manipulação”. Se as transgressões forem comprovadas, a punição deve ser severa. O passo mais importante, porém, deve ser dado pelo Congresso. Com o retorno das atividades, espera-se que a nova lei volte a ser prioridade. As eleições e o avanço da inteligência artificial tornam o tema ainda mais urgente.

Prêmio à corrupção custa R$ 14 bi ao erário

Folha de S. Paulo

Com decisões monocráticas que deveriam caber à maioria do STF, Toffoli faz revisionismo de escândalos confessados

É um escárnio a medida do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, que suspende o pagamento de multas decorrentes de corrupção confessada pela Novonor —a empresa outrora conhecida por Odebrecht que, em dezembro de 2016, firmou acordo de leniência com o poder público para sanar os danos que causara ao erário.

A admissão de fraudes há pouco mais de sete anos dá lugar agora a um revisionismo despudorado no qual se unem envolvidos nos desmandos e autoridades. Os abusos da Operação Lava Jato não deveriam servir de pretexto para uma corrida acintosa à impunidade.

Uma avenida foi aberta por decisões de Toffoli que, embora solitárias, contam até aqui com o beneplácito por omissão da corte mais elevada do país. Foi com retórica de militante partidário que o magistrado, em setembro, declarou imprestáveis as provas obtidas a partir do acordo com a Odebrecht.

Ali se escancarava o propósito de desqualificar por inteiro as investigações de corrupção —como se não tivessem havido confissões e bilhões devolvidos aos cofres públicos. Causa estranheza, aliás, o silêncio do principal beneficiário da dinheirama, o governo federal.

À ofensiva contra os fatos se somou o descaso com o dinheiro do contribuinte quando foi suspensa a multa de R$ 10,3 bilhões aplicada ao grupo J&F, que firmou acordo de leniência em 2017.

Não foi embaraço para a benesse o fato de a mulher de Toffoli, Roberta Rangel, ser advogada da J&F em um litígio empresarial. Poucos meses antes, afinal, o Supremo derrubara a proibição de magistrados julgarem causas de clientes de seus cônjuges.

Com a interrupção dos pagamentos restantes da ex-Odebrecht, chegam a R$ 14,1 bilhões as perdas que elevarãoo déficit do Tesouro, sua dívida e os juros com os quais arcará toda a sociedade —nada que pareça impressionar um Judiciário que lidera rankings globais de custo.

A desenvoltura do revisionismo só é possível com a cumplicidade interesseira instalada em Brasília, com raras exceções. Passado o momento mais agudo de indignação da opinião pública, governo e oposição, congressistas e juízes se irmanam na preservação de privilégios e na derrubada de punições.

Renovam, assim, os incentivos à improbidade e à intromissão de interesses privados na gestão da coisa pública. Semeiam o descrédito na política e nas instituições, que tão perigoso se mostrou.

Há que estancar esse processo. O exame das canetadas de Toffoli pelo plenário do STF e a restrição a decisões monocráticas de magistrados são apenas as providências mais urgentes a tomar.

Cornucópia cadastral

Folha de S. Paulo

Georreferenciamento do Censo 2022 pode amplificar capacidade gerencial do Estado

A complexa realidade social vem sendo capturada em alta velocidade pela proliferação de bases de dados, o que em princípio facilita tanto o desempenho quanto a cobrança de governantes. O casamento dos dados do IBGE com sistemas digitais de informação geográfica dá bom exemplo das faculdades panópticas do Estado.

Claro que há riscos implícitos, como ao direito de privacidade. Mas, ressalvadas restrições da Lei Geral de Proteção de Dados, a multiplicação de cadastros abre ampla janela de oportunidade para aperfeiçoar políticas públicas.

Como mostrou a Folha, pela primeira vez entrevistadores do IBGE coletaram, no Censo de 2022, as coordenadas dos 111 milhões de endereços onde vivem 203 milhões de brasileiros. Apenas em 747 mil edificações (0,7%) a informação precisa deixou de ser obtida e precisou ser estimada.

Em recenseamentos anteriores, a localização se fazia em células com 200 m de lado, em áreas urbanas, ou até 1 km, em zonas rurais. Agora se pode verificar, por imagens de satélite, cada prédio.

O fruto mais imediato da acuidade geodemográfica foi relacionar as 18 cidades campeãs em imóveis vazios, ou seja, com mais domicílios do que habitantes — como municípios de veraneio, que têm casas ocupadas temporariamente.

Um emprego mais pragmático dessas informações seria cruzá-las com o mapeamento das áreas de risco da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais. A superposição diagnosticaria a existência de 144 domicílios na área de médio risco e outros 199 na de risco alto da Vila do Sahy, em São Sebastião (SP), onde deslizamentos mataram 64 pessoas no Carnaval passado.

A disponibilidade das bases de dados, no entanto, não garante eficiência do poder público. Não é por falta de informações detalhadas, mas por omissão flagrante, que tais tragédias se repetem a cada verão —mais ainda com os efeitos da mudança climática.

É preciso mobilizar os números inertes em discos rígidos para instruir políticas consequentes. Dados que se multiplicam de nada servem quando não se antevê, nem se decide, o que fazer com eles.

O STF insulta os brasileiros

O Estado de S. Paulo

O Supremo parece se esforçar para convencer os cidadãos de que o monumental esquema de corrupção envolvendo empreiteiras nos governos do PT não passou de um delírio de todo um país

No que depender do Supremo Tribunal Federal (STF), em particular do ministro Dias Toffoli, falta muito pouco para que milhões de brasileiros passem a acreditar que, talvez, no auge da Operação Lava Jato, tenham vivido uma espécie de surto coletivo. Tudo o que viram, leram e ouviram a respeito do monumental esquema de corrupção envolvendo as maiores empreiteiras do País durante os governos do PT, a despeito das inúmeras provas fornecidas pelos próprios acusados, aceitas como perfeitamente válidas em todas as instâncias judiciais ao longo de anos, simplesmente não aconteceu – e, pior, que as empresas envolvidas foram vítimas de uma sórdida conspiração da Lava Jato.

Em setembro do ano passado, o ministro Dias Toffoli decidiu liminarmente anular todas as provas que consubstanciaram o acordo de leniência da Odebrecht, hoje rebatizada como Novonor. Como dissemos nesta página na ocasião, o despacho com tintas imperiais “foi uma decisão exagerada e desequilibrada que, numa só canetada, colocou abaixo o trabalho de anos de várias instituições estatais”. Quase três meses depois, o mesmo Dias Toffoli voltou a apor sua pena sobre o papel em que decidiu reescrever a história recente do País. Com mais uma infeliz canetada, o ministro, aproveitando o recesso de fim de ano do Poder Judiciário, suspendeu o pagamento da multa de R$ 10,3 bilhões prevista no acordo de leniência firmado entre a J&F e as autoridades brasileiras.

Dias Toffoli parece seguir imparável no que se revela como uma autoatribuída missão de mostrar à sociedade que as investigações da Operação Lava Jato, as revelações da imprensa profissional e as confissões de centenas de executivos envolvidos em tramoias com agentes públicos – sem falar na extraordinária soma em dinheiro que tiveram de devolver ao erário – não passaram de uma conspiração urdida nos corredores do Poder Judiciário e do Ministério Público Federal em Curitiba. Na quinta-feira passada, foi a vez de o ministro suspender o pagamento da multa de R$ 6,8 bilhões da Odebrecht (em valores corrigidos), sob quase os mesmos argumentos que o levaram a decidir favoravelmente ao pleito da J&F. Dias Toffoli foi convencido pela equipe de defesa da Odebrecht de que seus executivos teriam sofrido “chantagem institucional” para assumir a autoria dos crimes e firmar os acordos de leniência.

É curiosa, para dizer o mínimo, a interpretação exótica que o ministro Dias Toffoli faz da suposta coação, ou “chantagem”, de que teriam sido vítimas os executivos da Odebrecht. Em primeiro lugar, são necessárias doses generosas de candura ou boa vontade para acreditar que uma das maiores empresas privadas do País, assessorada, portanto, por uma equipe de advogados de primeira linha, poderia ser forçada a assinar o que quer que fosse. Ademais, que constrangimento ilegal ou abuso de autoridade seriam esses que, ora vejam, só serviriam para sustar os ônus do acordo de leniência, mantendo íntegros os bônus do pacto? Não faz sentido.

Se firmados à força, sob chantagem, todos os acordos devem ser anulados em seus termos, inclusive os que beneficiam as empreiteiras, como a possibilidade de voltar a participar de licitações públicas e o fim do acordo de não persecução criminal. No limite, que os processos voltem à estaca zero, os erros cometidos pela força-tarefa da Operação Lava Jato sejam saneados e os implicados voltem a responder por seus atos.

Tudo é ainda mais estupefaciente quando se observa que, até hoje, nenhuma das decisões monocráticas do ministro Dias Toffoli sobre os acordos de leniência foi submetida ao crivo do plenário do Supremo. Ocioso esperar que seus pares cassem essas liminares, algo que raramente acontece na Corte. Mas os outros dez ministros poderiam ao menos dar um sinal à sociedade de que o Supremo ainda é um tribunal colegiado, como diz a Constituição.

Na abertura do ano Judiciário, no dia 1.º passado, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, comemorou o fato de que “as instituições funcionam na mais plena normalidade” hoje. Resta a pergunta: para quem?

Por um plano realista para a educação

O Estado de S. Paulo

Aprovado o texto que pode servir de base para o Plano Nacional de Educação, é preciso agora corrigir excessos para que mais uma vez não tenhamos ambição demais que fica no papel

Encerrou-se nesta semana a Conferência Nacional de Educação, com a aprovação do texto que poderá servir de base para o Plano Nacional de Educação (PNE) no período 2024-2034. Com validade de dez anos, o PNE define, por exemplo, metas para acesso e permanência na escola, qualidade do ensino, expansão da educação pública e níveis de investimento necessários. Como não é impositivo, o Plano corre o risco de ser desvirtuado, limitado ou convertido em peça de ficção – por incompetência, limitações na avaliação e implementação de políticas ou mera má vontade do governo de ocasião. Assim se fez com o PNE 2014-2024, sancionado durante o governo de Dilma Rousseff. Não é improvável que o texto aprovado na conferência, com seus méritos e defeitos, tenha o mesmo destino.

Pelo prazo previsto em lei, o Ministério da Educação (MEC) já deveria ter analisado o documento e entregado um projeto de lei ao Congresso, a quem cabe aprovar o Plano. Apesar do atraso, há tempo para reafirmar os méritos e corrigir os defeitos. Embora tenha a chancela de mais de 60 entidades ligadas à educação, o texto felizmente ainda enfrentará um longo percurso de debates com deputados e senadores – razão pela qual o presidente Lula da Silva lembrou à plateia que será necessário convencer muitos parlamentares que hoje são adversários políticos do PT a acolher o projeto. Lula sabe que o documento aprovado tem cara e cores esquerdistas.

Governo e Congresso precisarão exibir cautela diante de excessos delirantes, como a proposta de revogação da reforma do ensino médio e da Base Nacional Comum Curricular – cujo pecado, para a maioria dos participantes da conferência, foi terem nascido no governo de Michel Temer. O texto fala em revogação e substituição por um novo modelo em tramitação (os Projetos de Lei 5230 e 2601, respectivamente do governo Lula e da bancada do PSOL). Ocorre que o próprio projeto do governo não revoga a reforma, e sim a aperfeiçoa – encaminhado ao Congresso após um período de consulta pública, corrige os equívocos mais flagrantes de desenho e implementação do chamado Novo Ensino Médio. Ao pregar a revogação, a conferência repete a cantilena descabida de alguns setores do meio acadêmico, de sindicatos de professores e de organizações estudantis.

São ecos de um equívoco central que contamina certas ideias: o apego a ideologias e cisões onde deveria imperar o debate técnico. Para uma parte desse grupo, há representações do bem e do mal na discussão da educação. No primeiro, estão o autodeclarado “campo popular” e quem está com os sindicatos e uma parcela dos acadêmicos; no segundo, as fundações e institutos empresariais, supostamente de feição neoliberal e hoje com grande interlocução no MEC. Foi simbólico o ataque dirigido ao ministro Camilo Santana, recebido na conferência por um grupo de estudantes com gritos de “Fora Lemann”, referência à fundação que leva o nome do empresário Jorge Paulo Lemann. Tais divisões e simplificações prestam um desserviço ao que deveria ser uma frente ampla pela educação brasileira.

Corrigidos os exageros daqui para a frente, o PNE pode servir para a sociedade cobrar uma educação de efetiva qualidade. Há méritos na ênfase dada às necessárias diversidade e equidade na educação, na cobrança pela qualidade no ensino a distância, na defesa da universalização da pré-escola a partir dos 4 anos de idade e do ensino fundamental de 9 anos e na garantia da educação para toda a população até 17 anos. Mesmo propostas irrealistas, como a meta de 10% do PIB para os investimentos na educação, podem ajudar a ampliar as exigências por mais e melhores recursos para o setor.

Um plano bom, contudo, tem ideias implementáveis e metas factíveis. Nem um quinto das metas definidas no PNE 2014-2024 deve ser cumprido até junho deste ano, em boa medida pelos problemas do governo Dilma, por um MEC ausente na gestão de Jair Bolsonaro e titubeante sob Lula e, sobretudo, porque definia objetivos inalcançáveis e deixava de lado reformas fundamentais. Espera-se que, para o próximo decênio, os artífices do Plano – MEC e Congresso à frente, com a contribuição da sociedade civil e dos especialistas – não repitam o mesmo erro.

É preciso qualificar o emprego

O Estado de S. Paulo

Taxa de desemprego de um dígito é positiva, mas País tem de combater trabalho precário

A taxa de desemprego de 7,8% e a criação de quase 1,5 milhão de empregos formais formam um bom saldo para 2023, mas o mercado de trabalho ainda está longe de uma reativação que caminhe junto com a melhoria da renda e da qualificação. Em primeiro lugar, o 1,484 milhão de vagas com carteira assinada criadas no ano passado é um resultado 26% inferior ao de 2022.

O saldo também não chegou aos 2 milhões previstos pelo governo. Melhor seria se o crescimento da formalidade fosse inversamente proporcional à queda do desemprego. Ou até mesmo superior, já que emprego formal, como se sabe, funciona como salvaguarda contra a precarização do trabalho por garantir acesso aos direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Em segundo lugar, apesar de ter descido a um patamar mais próximo ao de 2014 – quando, com taxa de desemprego de 7%, o mercado de trabalho chegou quase ao nível de pleno-emprego –, a taxa do ano passado guarda uma diferença fundamental: o mercado de trabalho ainda não recuperou o mesmo nível de participação. Traduzindo, menos pessoas em idade ativa (pelos critérios do IBGE, acima de 14 anos) participam do mercado.

O desemprego diminuiu não apenas porque mais pessoas conseguiram uma ocupação, formal ou informal, mas porque há menos gente integrando a força de trabalho. Foi um movimento muito claro durante a pandemia, por causa das medidas de isolamento social, que permanece, em parte, porque um contingente expressivo de beneficiários de programas de transferência de renda não retornou ao mercado.

Esse monitoramento comprova que é necessário relativizar os dados. Não são poucos os economistas que atestam que, se o País tivesse retornado ao mesmo nível de participação pré-pandemia, o nível de ocupação atual levaria a taxa de desemprego a oscilar em torno de 10%. Por tudo isso, a manutenção do desemprego em um dígito deve, sim, ser comemorada, mas com a devida ponderação.

Mesmo que o mercado não esteja tão aquecido quanto parecem indicar as estatísticas do IBGE, o resultado geral é, de fato, positivo. Mas um aspecto que merece atenção especial é o da precarização do mercado de trabalho. A reforma trabalhista teve o mérito de facilitar o acesso ao mercado, ao permitir diferentes contratos de trabalho. O aumento na quantidade de microempreendedores individuais (MEIs) talvez seja o exemplo mais típico dessa nova relação.

Mas não haverá reconstrução adequada do mercado de trabalho sem investimentos em sua qualificação. A fórmula, há muito conhecida, está na educação. É o que justifica a campanha permanente pelo desenvolvimento e apoio ao ensino técnico e profissional que este jornal defende. Sem treinamento não há mão de obra qualificada, e sem aprendizado tecnológico não surgem gerações de profissionais especializados.

A queda do desemprego será mais bem celebrada quando vier precedida de medidas que se firmem como uma nova política de qualificação profissional que apoie um crescimento econômico sustentado.

Novos paradigmas na segurança pública

Correio Braziliense

O encarceramento em massa, devido ao endurecimento das penas, não resolve o problema, pois os presídios brasileiros se tornaram bunkers dos chefes de quadrilha e, ao mesmo tempo, escolas de delinquência

O novo ministro da Justiça e Segurança Pública, , assumiu o cargo com a missão de enfrentar o crime organizado, entre outras tarefas da pasta. Como se sabe, não existe crime organizado sem infiltração das organizações criminosas no aparelho de Estado. Esse é o xis da questão, mas não apenas. A política de segurança pública precisa de novos paradigmas, quando nada porque os resultados obtidos até agora deixam muito a desejar. Quando as coisas estão dando errado, é preciso mudar; se tudo continuar como antes, os resultados serão um novo fracasso.

As tarefas do Ministério da Justiça são complexas: primeiro, a defesa da ordem jurídica, dos direitos políticos e dos direitos constitucionais, da política de acesso à Justiça, do diálogo com o Poder Judiciário e com os demais órgãos de Justiça; depois, a articulação e coordenação das ações do Sistema Nacional de Política sobre Drogas, na qual o governo federal tem a responsabilidade de promover a informação e a capacitação para a repressão do uso de drogas lícitas e ilícitas, além da reinserção social dos dependentes do uso de álcool e de outras drogas.

O Ministério da Justiça também cuida do combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo, da ordem de defesa nacional e dos direitos do consumidor, migrações e refúgio, da política penal do sistema penitenciário brasileiro e da proteção de dados pessoais, dos direitos digitais, da demarcação de terras em território indígena. Mas prioridade hoje é crime organizado. O presidente Luiz Inácio lula da Silva, na posse do novo ministro, chamou o crime organizado de "indústria multinacional". É mesmo.

"O país e o mundo enfrentam o desafio da criminalidade organizada, como as milícias, subdivididas em inúmeras facções, ora aliadas, ora rivais. Antes restritas às áreas periféricas, hoje elas se desenvolvem em toda parte, à luz do dia, em moldes empresariais", disse Lewandowski ao assumir o cargo

O encarceramento em massa, devido ao endurecimento das penas, não resolve o problema, pois os presídios brasileiros se tornaram bunkers dos chefes de quadrilha e, ao mesmo tempo, escolas de delinquência. Exploração da prostituição, tráfico de drogas e de armas, ligações clandestinas de internet, controle da venda do gás e dos jogos de azar só existem porque têm apoio em setores corrompidos da segurança pública e da política.

Tem razão Lewandowski, quando afirma que dificultar a progressão do regime prisional dos detentos, do fechado para o semiaberto e, depois, para o aberto não resolve o problema, somente agrava. Há que se discutir uma nova política antidrogas. Não é um debate fácil, porque o senso comum vai na direção contrária. Mas há exemplos no mundo que merecem ser estudados, entre os quais o de Portugal, que obteve excelentes resultados.

No combate ao crime organizado, a cooperação com estados e municípios, que detém a primazia constitucional na gestão da segurança pública, deve ser ampliada e intensificada, com compartilhamento de dados e trabalho de inteligência, com a plena utilização dos meios tecnológicos disponíveis. A recusa ao uso de câmaras por policiais e suas viaturas em operações, por exemplo, é uma espécie de negacionismo, que mascara uma concepção autoritária de ação policial cujos resultados sempre foram o aumento da violência.

Apesar dos seus limites constitucionais, o governo federal pode fazer muito, por exemplo, integrar esforços para a investigação do poderio financeiro das organizações criminosas e seu modus operandi, por meio da Receita Federal, dos Tribunais de Conta, o Coaf, Detran e outras entidades. O que está acontecendo no cotidiano das grandes cidades, entre as quais São Paulo e Rio de Janeiro, com a ocupação de territórios por traficantes e milícias, está muito próximo de um ponto de não-retorno, incompatível com um Estado democrático, o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança e o bem-estar dos cidadãos.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário