terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais /Opiniões

Escândalo expõe falha no controle externo da Abin

O Globo

Autoridades devem aproveitar oportunidade para aperfeiçoar regulação das ações de inteligência

As suspeitas de uso da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para fins políticos ou pessoais no governo Jair Bolsonaro são graves. Há indícios de monitoramento ilegal via celular, confecção de relatórios contra adversários e tentativa de atrapalhar o trabalho de investigadores. Além da atividade da polícia e da Justiça, o episódio suscita ação noutra esfera — a regulatória.

Não é a primeira vez que ficam patentes falhas no controle externo da Abin. O uso da agência já foi questionado durante a Operação Satiagraha, em 2008, com suspeita de espionagem ilegal de políticos e juízes. Ou no monitoramento em 2013 do então governador de Pernambuco, Eduardo Campos, pré-candidato à Presidência. Dificuldades na supervisão da inteligência também não são exclusivas do Brasil. Outras democracias adotam mecanismos próprios para evitar que a espionagem se volte contra a população em favor de interesses políticos ou privados.

Criada em 1999, a Abin é distinta do Serviço Nacional de Inteligência (SNI), usado pelos militares durante a ditadura contra opositores do regime. Seus servidores são civis, concursados e devem obediência à Constituição. No campo jurídico, ela não tem sequer autorização legal para acessar dados privados, como revelou reportagem do GLOBO. Seria necessário haver de algum modo supervisão da Justiça.

A falta de controle sobre o que fazem nossos espiões piorou com a proliferação de instituições sob o Sistema Brasileiro de Inteligência. Em 2002 havia 22 agências vinculadas a ele. Ao final da década passada, já eram 42, incluindo os serviços das Forças Armadas e das polícias estaduais. A resposta do Congresso à criação de novos organismos foi lenta. A Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) foi criada no ano 2000, mas seu funcionamento só foi regulado em 2013. De lá para cá, nunca contou com equipe técnica suficiente e poucas vezes teve atuação preventiva.

Evitar crises no futuro exige ajustes na lei. Deve ficar mais claro o escopo das operações de inteligência, hoje envoltas numa névoa. É preciso definir com clareza o que elas podem e o que não podem fazer. Isso beneficiaria os próprios servidores, preocupados com a segurança jurídica de seu trabalho. Mudar a lei, porém, é apenas parte da resposta. A transformação maior está na visão que a classe política brasileira tem dos organismos de inteligência. Ao redor do mundo, os parlamentos são instituições ativas na fiscalização. No Brasil, a prática deixa a desejar, tanto para a Abin quanto para outras agências de inteligência federais e estaduais.

Provocado por ação da Procuradoria-Geral da República , o ministro do Supremo Tribunal Federal Cristiano Zanin fez bem ao dar prazo para que o Congresso preste informações sobre a regulamentação do uso de softwares espiões. Parte do trabalho de revisão cabe ao Executivo. Os documentos que estabelecem a política e a estratégia de inteligência precisam ser atualizados, com ênfase nos problemas mais prementes.

O Brasil não pode perder a oportunidade de mudar a legislação e as práticas que têm tornado frequentes as irregularidades nos serviços de inteligência. Eles são uma necessidade de todo Estado. Precisam de margem de manobra e sigilo, mas não podem, numa democracia, atuar ao arrepio da lei e dos direitos individuais.

Erros no Enem e no Sisu são motivo para indignação e frustração

O Globo

Divulgação de resultados incorretos expõe gestão deficiente, que desvia MEC de questões graves da educação

O Ministério da Educação (MEC) transformou numa confusão a divulgação dos resultados do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que define mais de 260 mil vagas para universidades públicas do país com base nas notas do Enem. As informações, aguardadas com ansiedade por 2 milhões de jovens em todo o Brasil, foram divulgadas com erros que provocaram indignação e frustração.

A divulgação dos classificados estava prevista para até 18h30 do dia 30 de janeiro. Às 20h, mais de uma hora depois do prazo estipulado, o ministério decidiu adiar o resultado para o dia seguinte. Em nota, a pasta informou que a Subsecretaria de Tecnologia da Informação e Comunicação identificara “problemas técnicos no sistema”. Descobriu-se depois que, apesar das inconsistências, parte dos estudantes conseguira acessar as informações no site oficial do MEC. Muitos comemoraram a entrada numa universidade pública. Para espanto geral, as informações estavam erradas.

O próprio MEC admitiu o equívoco. Afirmou que os resultados, disponíveis por cerca de 25 minutos, eram provisórios e não haviam sido homologados, pois ainda estava em andamento a reserva de vagas para cotistas. A União Nacional dos Estudantes (UNE) classificou o episódio como “grande absurdo” e prometeu lançar uma plataforma para receber denúncias.

O ministro da Educação, Camilo Santana, afirmou em entrevista à rádio CBN que a pasta apura o que aconteceu, para saber se o erro partiu da área técnica ou da empresa que presta serviço ao ministério. É obrigação do MEC investigar os erros, mas isso não redime o governo.

A aplicação do Enem já despertara celeuma. Candidatos reclamaram de ter sido alocados para fazer prova a mais de 30 quilômetros de casa, contrariando o determinado pelo edital do exame. De acordo com o Inep, pelo menos 50 mil estavam nessa situação. Todos puderam fazer o exame noutra data, mas o governo foi incapaz de apresentar uma explicação razoável para a falha. Santana chegou a ser convocado para uma audiência na Câmara. Depois, em novembro, questões vazaram antes do horário permitido, levantando dúvidas sobre a segurança da prova.

O MEC foi marcado por uma série de escândalos no governo passado, o mais rumoroso envolvendo acusação de negociatas com verbas públicas para prefeituras. Na atual administração, as falhas de gestão se sucedem. A educação no Brasil enfrenta uma infinidade de problemas, como má formação de professores, escolas precárias ou desempenho insatisfatório dos estudantes na comparação internacional. Combatê-los exige no mínimo gestão eficiente, para que o governo possa se preocupar com o que realmente importa: melhorar a qualidade do ensino.

Regulação da IA para eleições é um desafio conjunto

Valor Econômico

Inteligência Artificial traz riscos eleitorais cujos resultados ainda são impossíveis de se prever

Em um ano em que mais de 4 bilhões de pessoas vão às urnas escolher seus governantes e representantes no Legislativo, casos de uso da inteligência artificial (IA) como instrumento de manipulação de eleitores e desinformação nas campanhas acenderam um sinal de alerta sobre os riscos que o uso mal-intencionado da nova tecnologia representa para as democracias em diversos países.

Episódios registrados ao longo do ano passado na Argentina e na Eslováquia deram o tom do que é possível esperar nas próximas eleições nos Estados Unidos, Índia, Rússia e no Brasil. Casos isolados já ocorridos em 2024 reacenderam os pedidos de regulação - tanto das plataformas de IA como das redes sociais usadas para propagar as chamadas “deep fakes” - e os debates sobre como punir candidatos e partidos que recorrerem às novas tecnologias para prejudicar rivais ou minar a confiança da opinião pública nos sistemas de votação.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o Departamento de Justiça de New Hampshire investiga um esquema de ligações automáticas, com o uso de robôs, que tentava dissuadir parte da população de votar. Na mensagem, uma voz gerada por IA imita o presidente Joe Biden e pede que os eleitores fiquem em casa durante as primárias do Partido Democrata no Estado. “Guarde seu voto para novembro (mês da eleição presidencial americana)”, diz o falso Biden.

No Brasil, o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR) determinou no fim de janeiro que a Meta, dona do WhatsApp, bloqueasse o compartilhamento de um áudio denunciado por Silvio Barros, pré-candidato do PP à Prefeitura de Maringá. Na gravação, uma voz que se assemelha à do político, líder das pesquisas municipais, diz que ele desistiu da disputa e declara apoio a um adversário (O Globo, 24/01). Há também suspeitas de episódios similares em outros três Estados - Amazonas, Rio Grande do Sul e Sergipe.

A imitação de vozes, artimanha aparentemente preferida entre os que tentam subverter o jogo democrático com a IA, é apenas uma das possibilidades abertas pela nova tecnologia. Softwares cada vez mais sofisticados podem ser usados para produzir conteúdos falsos convincentes até mesmo aos olhos de especialistas - as tais das “deep fakes”. Com uso de algoritmos, esses programas “aprendem” com arquivos reais sobre o alvo em questão e são capazes de criar, manipular ou distorcer áudios, vídeos e fotos. A evolução da tecnologia simplificou seu uso e, agora, não é mais necessário ter conhecimentos avançados para se aventurar neste novo mundo de possibilidades.

Se o rápido desenvolvimento da IA torna cada vez mais difícil distinguir a realidade da fantasia criada pelas máquinas, as redes sociais ganham a cada nova atualização recursos mais capazes de ampliar a propagação dessas “deep fakes”, o que também preocupa especialistas e autoridades eleitorais após o uso quase generalizado dessas plataformas em campanhas de desinformação - eleitoral ou não - em todo o mundo, inclusive no Brasil.

Ao longo de 2023, o WhatsApp, o aplicativo de conversas mais usado pelos brasileiros, lançou no país as comunidades (que ampliam o alcance de seus grupos) e os canais (que possibilitam o envio de mensagens a um número ilimitado de usuários inscritos). Ambos os recursos seriam oferecidos em 2022, mas a liberação foi adiada pela empresa justamente para depois das eleições daquele ano após um acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Desde então, outras plataformas, como YouTube e o X, antigo Twitter, limitaram o acesso de pesquisadores aos seus dados (O Globo 28/01), o que dificulta a transparência sobre a moderação de conteúdos e de anúncios políticos em período eleitoral.

A divulgação de conteúdos falsos - sejam eles áudios, vídeos ou fotos - com alto grau de verossimilhança às vésperas de eleição pode prejudicar candidatos de forma significativa e ter impacto no resultado nas urnas. Hoje, faltam mecanismos para impedir que este tipo de situação ocorra ou seja remediada a tempo.

O TSE convocou recentemente audiência pública para discutir regulações da IA antes das eleições municipais, mas este não deve ser um trabalho apenas do órgão eleitoral. O Congresso Nacional também deve estar atento à questão e avançar nas discussões de projetos já em tramitação para enquadrar partidos e candidatos que se utilizarem das “deep fakes” para atacar adversários ou o sistema eleitoral do país. Além disso, é preciso cobrar as empresas do setor para coibir o mau uso das plataformas e a circulação de conteúdo falso nas redes.

Embora estas não sejam as primeiras eleições em que a desinformação e o jogo político sujo configuram um problema, a IA traz riscos eleitorais cujos resultados ainda são impossíveis de se prever. No Fórum Econômico Mundial, em Davos, Sam Altman, CEO da OpenAI, responsável pelo badalado ChatGPT, reconheceu que os processos de votação não serão a “mesma coisa de antes” com o surgimento da IA e disse ser “sempre um erro tentar lutar a última guerra”. Portanto, novas regras são necessárias para enfrentar os desafios que as novas tecnologias apresentam para as democracias.

Lula e Tarcísio dão um bom exemplo

Folha de S. Paulo

Acordo para obras mostra que adversários políticos podem se aliar pelo bem comum

Em outros tempos, seria nada além de trivial a interação que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), mantiveram na última sexta-feira (2) durante evento oficial no porto de Santos, litoral sul do estado.

Após quatro anos de Jair Bolsonaro (PL), porém, assumem outra dimensão os gestos de normalidade democrática e de rejeição à polarização fundamentalista que divide o mundo em amigos e inimigos.

Demonstrando que adversários políticos também podem ser parceiros, Lula e Tarcísio subiram juntos ao palco para anunciar o entendimento relativo à construção do túnel entre Santos e Guarujá.

Não será uma iniciativa somente federal, como se cogitava poucas semanas atrás, mas uma associação entre os dois governos, que dividirão tanto os custos bilionários da obra quanto os ganhos políticos decorrentes dela.

"O que importa é enxergar o verdadeiro interesse público", afirmou Tarcísio. "Você terá da Presidência da República tudo aquilo que for necessário, porque não estou beneficiando o governador: estou beneficiando o estado mais importante da Federação", asseverou Lula.

Estão cobertos de razão, e não só no conteúdo —que, afinal, é óbvio— mas também —e principalmente— na forma. Pois o país precisa deixar para trás a histeria que contaminou as mais diversas autoridades nos últimos anos e, no lugar dela, restaurar o verdadeiro sentido do republicanismo.

Claro que nem todos os petistas e bolsonaristas estarão prontos para essa lição. Depois do ato conciliatório em Santos, aliados mais radicais do ex-presidente rangeram os dentes para as mesuras de Tarcísio, que, aliás, já tinha ouvido algumas vaias da plateia durante o evento organizado pelo governo federal.

Coube a Lula, em boa hora, puxar a orelha de seus correligionários: "O governador merece ser tratado com muito respeito nas atividades públicas que nós fazemos".

Mais uma banalidade da qual muitos pareciam ter-se esquecido: adversários merecem respeito, mesmo que continuem adversários. E é precisamente esse o caso.

Lula e Tarcísio sabem que a aproximação litorânea não implica pensar da mesma maneira. O governador fez questão de lembrar que continua sendo um liberal, enquanto o petista sublinhou a importância de saber respeitar as diferenças.

Também sabem que o acordo não formou nenhuma aliança de outra natureza. O governador de São Paulo é um dos principais nomes do campo bolsonarista e, em 2026, disputará a eleição contra o PT —seja como candidato ao Planalto, seja em busca da reeleição.

Oxalá os dois mantenham até lá o espírito que mostraram em Santos.

Triunfo truculento

Folha de S. Paulo

Presidente de El Salvador é reeleito com ações em segurança que minam liberdades

El Salvador é o exemplo mais atual de como altos índices de criminalidade e violência podem abalar a normalidade democrática.

Com mais de 80% dos votos durante a apuração parcial, o presidente licenciado do país, Nayib Bukele, declarou a própria vitória no pleito, apesar de a Constituição vetar reeleição. Foi a primeira vez em 80 anos que a regra foi violada.

Aos 42 anos, é expoente regional da direita populista radical que tem ampla aprovação entre os salvadorenhos, com índices em torno de 70% e 80% E o motivo principal desse apreço é a segurança pública.

El Salvador tem histórico dramático de conflitos, com 12 anos de guerra civil que só chegou ao fim em 1992 graças a um acordo que levou o grupo guerrilheiro Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional a abandonar as armas para se tornar um partido político.

A partir do final dos anos 1990, teve início uma escalada de disputas sangrentas entre facções criminosas. Em 2015, 106 pessoas foram mortas a cada 100 mil habitantes em El Salvador —no Brasil, que tem altas taxas de homicídio, foram 25,7 por 100 mil.

Quando Bukele assumiu o poder, em 2019, eram cerca de 40 por 100 mil; em 2022, o número caiu para 7,8; no ano passado, apenas 2,4.

Esses dados mais recentes são questionados pela sociedade civil, mas fato é que 9 em cada 10 salvadorenhos dizem se sentir seguros, segundo pesquisa da Universidade Centro-Americana.

Para atingir tais resultados, entretanto, Bukele instaurou em 2022 um estado de exceção —aprovado pelo Legislativo, controlado por seu partido— que vem sendo prorrogado desde então.

O instrumento solapa direitos civis ao restringir a liberdade de reunião, a inviolabilidade de correspondências e comunicações, e autorizar prisões sem ordem judicial. El Salvador é o país que mais encarcera no mundo como proporção da população (2,2% dos adultos).

A popularidade e o triunfo eleitoral de Bukele sem dúvida alimentarão a influência de suas estratégias no debate político da América Latina, onde a criminalidade disseminada desafia as autoridades. Trata-se de um perigo.

‘Casus belli’

O Estado de S. Paulo

Arthur Lira e aliados usam erros do governo e do STF para adotar ameaça permanente e amplificação das tensões como arma de negociação e justificativa para confronto entre Poderes

O Congresso Nacional reabriu os trabalhos do ano legislativo com uma coleção de queixas e ameaças que mais parecem uma contraofensiva dirigida ao governo federal e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Mesmo sem a presença do presidente Lula da Silva e do ministro Luís Roberto Barroso, não faltaram discursos sobre a solidez das instituições, o apoio à democracia e a convivência civilizada e harmônica entre Congresso, governo e Supremo – além da previsível autocelebração contida na mensagem do Executivo, que ao seu estilo tentou mostrar que o País mais uma vez tem sua história reescrita por obra e graça do governo lulopetista. Também se viu a defesa da tramitação de pautas relevantes, como a regulamentação da reforma tributária, a transição energética, e o debate sobre as prioridades do Orçamento federal. Mas nem é preciso ir às entrelinhas dos discursos para chegar à conclusão de que a convivência está longe da harmonia pregada e que o equilíbrio entre os Poderes corre riscos.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi quem melhor deixou evidente o enorme abismo que separa discurso e prática na relação entre os Poderes. Ainda que ao final tenha mencionado a “disposição colaborativa” do Congresso com o Executivo e o Judiciário, sua mensagem foi dura e clara: os parlamentares não aceitarão ser coadjuvantes na aprovação do Orçamento. Fez menção indireta (ou explícita) ao veto de R$ 5,6 bilhões do presidente Lula no valor aprovado para emendas parlamentares, assim como à medida provisória da reoneração, gestada no Palácio do Planalto logo depois de o Congresso aprovar a desoneração de impostos. Também falou em “acordos firmados” e “compromissos assumidos” como exemplos de “honradez na política”.

As digitais de Lira na artilharia parlamentar já vinham sendo sentidas tanto na ausência em solenidades que uniram os comandos dos Três Poderes quanto nos recados velados ou explícitos, destinados a quem considera potenciais algozes dos interesses da Câmara. Em alguns casos, como a medida provisória da reoneração, a queixa pode ser justificável – afinal, o governo teria tentado promover, via canetada, um retorno de impostos à revelia do que o Legislativo já decidira. Em outros, os interesses da Câmara e de Lira trafegam por zonas mais cinzentas.

Entre luzes e sombras, pode ser perturbador um Congresso que legisla com base na contraofensiva e na vingança – especialmente quando seus alvos são o STF e o governo. A politização do Supremo é um desvio de rota a corrigir. A vocação lulopetista para tentar converter os demais Poderes em extensão do governo e do partido é outra chaga a combater. São disfuncionalidades que desvirtuam o funcionamento da democracia. Nenhuma delas, no entanto, será resolvida com outra disfuncionalidade. O presidente da Câmara e seus aliados sabem bem disso e dobram a aposta: ao notório apetite por cargos e verbas acrescentam o estado de ameaça permanente e a amplificação das tensões como armas preferenciais de negociação e conquista.

O presidente da Câmara já condicionou o avanço das pautas governistas à troca de comando na pasta que cuida das articulações com o Congresso. Ele e seu grupo prometem não só reagir a vetos presidenciais no Orçamento e no Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas, como fizeram chegar aos seus alvos a lembrança do que têm na gaveta: um projeto que restringe decisões monocráticas de magistrados; outro que define mandatos fixos para ministros do STF (esta proposta, convém reconhecer, oficialmente não tem o apoio do presidente da Câmara, e sim do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco); e mais um que, se aprovado, exigirá do Congresso o aval para medidas judiciais contra parlamentares em exercício (projeto inspirado nas recentes operações da Polícia Federal, autorizadas pela STF, em endereços de congressistas).

Lira sabe ainda que 2024 será decisivo para a sucessão na presidência da Câmara. Ele quer a garantia do governo de que Lula não vai interferir na disputa. E entre o curtíssimo prazo e 2025, saca argumentos do bolso como uma espécie de casus belli – a terminologia bélica usada para alguém poder justificar seu direito de ir à guerra.

Orfandade institucional

O Estado de S. Paulo

Lira e aliados usam erros do governo e do STF para adotar ameaça permanente como arma de negociação

O Supremo Tribunal Federal (STF) continua a observar passivamente um de seus integrantes, o ministro Dias Toffoli, passar feito um rolo compressor sobre as robustas evidências de crimes apuradas na Operação Lava Jato, fazendo parecer, como dissemos neste espaço, que o maior esquema de corrupção de que o País já teve notícia foi um delírio coletivo. Movido sabe-se lá por quais razões, o ministro Dias Toffoli usou sua caneta para riscar dos autos até as provas que foram entregues voluntariamente às autoridades por dezenas de implicados, entre os quais diretores e gerentes da Petrobras durante os governos do PT e executivos das maiores empreiteiras do País.

A bem da verdade, contudo, é forçoso dizer que o STF não é a única instituição que tem provocado esse sentimento misto de abandono e indignação em muitos cidadãos que acompanham os desdobramentos da Lava Jato nos últimos anos. O Ministério Público (MP), em particular a Procuradoria-Geral da República (PGR), também tem uma grande parcela de responsabilidade por essa espécie de orfandade institucional. Mudanças em ritmo vertiginoso na compreensão das leis e até dos fatos têm levado parcela expressiva da sociedade a questionar onde, afinal, estaria o MP como defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

A Constituição de 1988 teve o cuidado de incumbir o MP dessa missão moldando o parquet para agir na nova ordem democrática segundo os princípios da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional. Mas a julgar pela atuação do MP na Lava Jato, sobretudo da PGR, a percepção que se tem da instituição é outra, diametralmente oposta. Ao invés de uno e indivisível, o MP é visto como um órgão cindido em grupos conflitantes; ao invés de servir à Constituição, às leis e ao interesse público, a independência funcional por vezes se assemelha a um véu sob o qual a instituição se move a reboque da agenda particular do seu chefe de ocasião.

No auge da Lava Jato, com Rodrigo Janot à frente, a PGR impingiu grandes danos à sociedade ao agir orientada politicamente e imbuída de um espírito salvacionista, como se a corrupção fosse o maior dos males brasileiros e aos procuradores coubesse a missão de livrar o País de todos os malfeitores que, há séculos, estariam se interpondo entre o Brasil e seu virtuoso destino. Em nome desse propósito, a um só tempo megalomaníaco e inconstitucional, a PGR cometeu erros tão grosseiros que, hoje, criminosos confessos chegam a debochar da sociedade posando de injustiçados. Esse MP de ares messiânicos não cansou de erguer a voz diante de toda e qualquer crítica a seus métodos, classificando os reparos não só como uma “ameaça à Lava Jato”, mas como uma “defesa de corruptos”.

Já durante a gestão de Augusto Aras o que se viu na PGR foi o exato oposto: a adesão ao chamado antilavajatismo. Sob Aras, a Lava Jato acabou de vez, mas não porque, como qualquer operação, teria mesmo de ter um início e um fim bem delineados. A Lava Jato acabou por seu maior vício: ter se movido politicamente. Logo, quando mudaram os ventos da política nacional, uma nova visão sobre a operação, chamemos assim, se impôs.

Por ora, a marca que Paulo Gonet imprimirá na PGR é desconhecida, haja vista que o sucessor de Augusto Aras assumiu o cargo há apenas dois meses. Mas causa calafrios o silêncio do procurador-geral diante dessa série de decisões monocráticas do ministro Dias Toffoli livrando a Odebrecht e a J&F do pagamento das multas bilionárias com o qual as empresas se comprometeram ao assinar seus acordos de leniência. Aqui e ali surgem notícias de que a PGR vai recorrer das decisões, mas o fato é que, desde setembro, quando Dias Toffoli decidiu anular liminarmente as provas que sustentaram o acordo de leniência da Odebrecht, nenhuma ação foi tomada pela PGR. Quem recorreu da decisão foi o Ministério Público de São Paulo.

Já passou muito da hora de a PGR voltar à normalidade institucional, sem arroubos messiânicos, sem motivações políticas e, tampouco, sem omissões. O País tem muito a perder com um Ministério Público tão inconstante.

A jogada de Biden

O Estado de S. Paulo

Sanção a radicais israelenses é peça do jogo dos Estados Unidos para pôr fim à guerra no Oriente Médio

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, impôs inéditas sanções contra quatro colonos israelenses responsáveis por atos de violência contra palestinos na Cisjordânia. O decreto assinado no último dia 1.º não atinge diretamente o Estado de Israel – apenas indivíduos. Mas, certamente, pesa como uma cáustica advertência de Washington ao primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, que tem fechado seus olhos a tais agressões e negligenciado seu potencial de desencadear uma nova frente de combates, desta vez na Cisjordânia. Na estratégia do governo Biden para pôr fim ao conflito na Faixa de Gaza e a suas ramificações no Oriente Médio, conter Israel é peça fundamental.

As críticas de Washington contra a expansão dos assentamentos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental e as agressões a palestinos desferidas por colonos radicais – em geral, fortemente armados – não são novidade. Vinham de muito antes de 7 de outubro passado e foram solenemente desconsideradas pelo governo de Netanyahu, sustentado por ultraortodoxos defensores dessa expansão territorial por Israel. Mas a sanção aos quatro indivíduos – agora com ativos congelados nos EUA e sem acesso a seu sistema financeiro e a seu território – é inusitada. Para Washington, cauterizar a ferida na Cisjordânia, antes que vire uma nova frente de conflito, tem urgência.

Os EUA continuam a anos-luz de abdicar da defesa de Israel. Tampouco flexibilizarão o direito israelense a sua autodefesa, ainda mais depois do bárbaro ataque do Hamas contra civis em Israel em 7 de outubro passado. Mas há entendimento na Casa Branca de que a guerra na Faixa de Gaza está perto de um ponto de não retorno e desdobrou-se em focos que comprometem a paz em todo o Oriente Médio e a economia internacional. Contrariar Netanyahu é inevitável. Faz parte de um jogo maior de Washington, cujo sucesso depende mais dos regimes árabes do que de Israel.

Nesse sentido, o cessar-fogo na Faixa de Gaza, sob a contrapartida da libertação dos 132 reféns ainda mantidos pelo Hamas, faz parte de uma miríade de conversas que envolvem Israel e lideranças do grupo terrorista. Todas são movidas e acompanhadas pelos EUA. O reconhecimento da Palestina como Estado soberano entrou de forma pragmática na agenda da diplomacia americana no Oriente Médio. O diálogo sobre aprofundamento de alianças de Washington com as nações árabes, sobretudo com a Arábia Saudita, parece prosperar. Nas mãos dos árabes estão as perspectivas de desmonte do Hamas, de uma futura Palestina avessa a ameaças a Israel e de isolamento do Irã, o financiador do terror reinante no Oriente Médio.

Chamada de Doutrina Biden, a estratégia está claramente em execução, em que pese a contrariedade de Netanyahu. Se bem executada e exitosa, pode alcançar o que a máquina de guerra israelense não logrou em quase quatro meses na Faixa de Gaza: a neutralização do Hamas, a libertação dos reféns e o fim de um conflito que já deixou milhares de mortos e uma crise humanitária descomunal. Quem sabe haja horizonte até mesmo para uma paz menos frágil e temporária no Oriente Médio.

Câmeras modernizam o combate à violência

Correio Braziliense

Mas só oito unidades da Federação adotaram o equipamento corporal para os policiais militares. A adesão ainda é muito baixa, considerando-se as vantagens que representa tanto para os policiais quanto para a sociedade

Menos de um terço das 27 unidades da Federação adotaram a câmera corporal para os policiais militares: São Paulo, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Roraima, Rondônia e Santa Catarina. A adesão ainda é muito baixa, considerando-se as vantagens que o equipamento representa tanto para os policiais quanto para a sociedade. Não raro, há denúncias de abuso de autoridade da polícia nas abordagens de pessoas suspeitas, o que contribui para deteriorar a imagem das forças de segurança pública no país.

Em 2022, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelou que 6.429 pessoas foram vítimas da letalidade policial — o equivalente a 17 óbitos por dia. Os números, por si só, mostram que conter a violência é um dos desafios nos âmbitos dos poderes federal, estaduais e municipais, assim como é a fome e outras iniquidades sociais. E, nesse caso, as forças de segurança têm que seguir atuação exemplar, e jamais serem confundidas com o crime organizado.

Pesquisa recente da Fundação Getúlio Vargas com a Universidade de São Paulo (USP) constatou que o uso das câmeras corporais levou à redução de 57% no número de mortes decorrentes de intervenções policiais, sem diminuir a efetividade do trabalho dos agentes. O dado mostra o quanto o uso do equipamento é importante para ressuscitar a confiança dos cidadãos nas forças policiais.

As câmeras são ainda instrumento de prova contra os agentes que não honram a missão das corporações. E mais: servem para desmontar acusações contra os agentes apontados de autoria de ações inadequadas. Ou seja, o equipamento se torna uma testemunha que livra o policial de acusações infundadas.

Ainda assim, a maioria dos governos estaduais resiste à orientação do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) em favor do uso de câmeras nos uniformes policiais. Os conselheiros — representantes de órgãos públicos e da sociedade civil — recomendaram que os estados adotem equipamentos com gravação automática e capacidade de armazenamento de dados por um período de três a seis meses. Hoje, os equipamentos em uso guardam as imagens por um mês.

A indisposição dos governos estaduais para seguir uma tendência quase que mundial não se coaduna com os avanços tecnológicos e está longe da possibilidade de reduzir a violência e conter a criminalidade que assola o país. Os poderes de Estado, por imposição constitucional, têm o dever de garantir a segurança da população e a integridade dos cidadãos. Portanto, inexistem razões para desprezar os avanços tecnológicos que contribuem para a eficácia das responsabilidades do poder público.

 

 

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