sábado, 24 de fevereiro de 2024

Pablo Ortellado - Câmeras corporais fortalecem a polícia

O Globo

O controle da atividade policial é necessário

As câmeras corporais em policiais, implantadas com sucesso no Estado de São Paulo, estão correndo sério risco de ser abandonadas. Com elas, a letalidade em intervenções policiais foi drasticamente reduzida de 697 mortes em 2019 para 260 em 2022 — uma queda de 63%. Apesar dos números excelentes, convicções ideológicas do governador Tarcísio de Freitas e do secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, estão levando o programa a ser sucateado. Verbas para as câmeras foram cortadas, e elas deixaram de ser usadas em operações policiais como a sangrenta Escudo, na Baixada Santista.

As câmeras foram introduzidas no governo de João Doria, que conseguiu convencer os poderosos coronéis da PM de São Paulo a adotá-las com o discurso de profissionalismo e proteção aos bons policiais. Os especialistas dizem que, para as câmeras corporais terem efeito no controle da atividade policial, o diabo mora nos detalhes. É preciso conceber cuidadosamente quando e por quem são ligadas e desligadas, como as imagens são arquivadas e quem pode ter acesso a elas, num delicado equilíbrio entre supervisão e a privacidade do policial. O programa de São Paulo foi muito bem desenhado, e os números de 2019 a 2022 são a prova de seu sucesso.

Mas Tarcísio e Derrite não veem o programa positivamente. Adotam a visão de que o controle da atividade policial limita sua eficiência e de que a letalidade policial não é problema, pois recai sobre bandidos. Desde que começaram a sucatear o programa, a letalidade policial já subiu 33%. Eles deram repetidas declarações de que as câmeras são caras e não ajudam na proteção aos cidadãos. A Secretaria de Segurança Pública disse, oficialmente, que a causa do aumento da letalidade “não é a atuação da polícia, mas a ação dos criminosos que optaram pelo confronto”.

As autoridades de São Paulo estão erradas. O controle da atividade policial é necessário porque policiais cometem erros e matam inocentes a toda hora, como vimos agora na Baixada Santista. E também porque as punições a criminosos precisam de proporção, e um roubo não pode ser punido com a morte.

A sociedade brasileira hoje se divide sobre a confiança na Polícia Militar. Segundo pesquisa de janeiro de 2024 do PoderData, 22% dos brasileiros confiam muito na polícia, 51% confiam pouco, e 19% simplesmente não confiam. Os números são semelhantes aos encontrados por outros institutos. Não é bom para a polícia, e não é bom para a sociedade, que o perigoso trabalho de proteger a cidadania não tenha amplo apoio dos cidadãos. As câmeras corporais são uma oportunidade de a sociedade se reconciliar com a polícia.

Gostaria de dar um depoimento pessoal sobre como as câmeras corporais mudaram meu olhar sobre a Polícia Militar de São Paulo. Assistia ao programa do Datena logo depois da implementação das câmeras em São Paulo. O programa mostrava uma operação policial na periferia. Um grupo de meninos jovens quebrava com uma pedra os vidros e assaltava carros que paravam num sinal num viaduto. Uma câmera filmava de longe a ação rotineira dos assaltantes, que se repetia a cada sinal fechado. De repente, vemos uma viatura da Polícia Militar encostar discretamente, e policiais se aproximarem a pé, sem ser notados. Eles abordam os assaltantes. Vemos sem nitidez uma altercação e um tiro. Um dos criminosos é baleado à queima-roupa e morre.

Por um momento, tive o impulso de lamentar “mais uma” morte por policial com dedo leve, que atira antes de tentar render e acha que deve fazer justiça com as próprias mãos. Mas, então, o programa mostra as imagens da câmera corporal, e a situação se apresenta de maneira completamente diferente. O policial pede para o rapaz se entregar, ele não atende ao chamado e ainda tenta sacar uma arma. O policial, muito corretamente, se antecipa e dispara.

Trago esse depoimento pessoal porque o episódio me fez refletir sobre meus vieses e ampliou minha confiança na polícia. Nosso debate sobre segurança — como quase todo debate sobre política pública — está viciado. De um lado, leituras empedradas de uma polícia predominantemente racista e assassina. De outro, leituras de uma polícia profissional e dura com a criminalidade que apenas não consegue derrotar os bandidos porque é contida por queixas dos ativistas de direitos humanos. Os dois lados escolhem e destacam fatos que ilustram suas caricaturas sem nuances. A polícia de São Paulo não é formada por assassinos racistas, mas também não é formada apenas por exímios profissionais.

Precisamos encontrar um equilíbrio entre apoiar os policiais que todo dia colocam a vida em risco por nós e controlar eventuais excessos, sem que isso implique “atacar a polícia”. As câmeras corporais podem ser esse controle, apoiando os bons policiais, controlando os excessos dos maus e resgatando a confiança da população.

 

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