Folha de S. Paulo
Autor lança 'Alfabeto das Colisões', livro experimental de filosofia para grande público
Vladimir
Safatle, 50, tem notícias pouco animadoras para a esquerda no
Brasil, campo ao qual ele próprio está vinculado.
"A extrema
direita é hoje a única força política real do país, porque é a força
que tem capacidade de ruptura, tem estrutura e coesão ideológica", afirma
o professor de filosofia da USP, que acaba de lançar um novo livro,
"Alfabeto das Colisões" (editora Ubu).
"A esquerda
brasileira morreu como esquerda", diz. O que existe agora, na
visão dele, é uma "constelação de progressismos, mas sem aquilo que
constituía o campo fundamental da esquerda, que são as ideias de igualdade
radical e de soberania popular".
De acordo com essa análise, o que se perdeu
na construção das pautas progressistas foi a ambição por uma transformação
estrutural da sociedade, que pressupunha um tipo de igualdade dentro dos
processos de produção e alguma forma de democracia direta.
"Hoje não se coloca nada parecido com
isso", afirma Safatle.
Foi esse diagnóstico que o levou a disputar uma vaga de deputado federal em 2022, pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). Com 17.644 votos, terminou como suplente.
"Entendi que a gente estava num momento
histórico que nem era mais de retração de expectativas. Era pior: era um
horizonte de retração de enunciação. A gente não conseguia nem enunciar.
Quantas vezes você ouviu, nos últimos dez anos, a ideia de autogestão da classe
trabalhadora?"
Embora o quadro não tenha mudado desse ponto
de vista, o professor de filosofia não pretende se candidatar na eleição
municipal deste ano. Considera que, em 2022, havia um desafio maior em curso,
que era a luta contra o bolsonarismo.
Não que, na visão dele, a vitória de Luiz Inácio
Lula da Silva (PT) sobre Jair
Bolsonaro (PL) tenha resolvido alguma coisa. Para Safatle, a
esquerda só ganhou tempo, enquanto a extrema direita continua forte e
mobilizada –como atestam
as mais diversas pesquisas de opinião.
O problema, diz o filósofo, se desdobra em
pelo menos dois níveis. No primeiro, mais superficial, Lula continua atuando na
política como um negociador, achando que é possível estabilizar uma situação de
crise profunda.
Ele cita como exemplo a queda de braço entre
a expansão
agrícola e a preservação ambiental. "Não dá para respeitar
exigências ecológicas tendo que satisfazer demandas do agronegócio. É
materialmente impossível. Não há negociação nesse caso. A violência da
mudança climática é tal que é preciso entender que estamos em
uma situação de emergência."
Safatle afirma que, em um país cindido e
clivado, não há espaço para certos pactos que antes se realizavam.
"Você precisa fortalecer o seu polo.
Você precisa consolidar o seu polo como uma força de produção de alternativas.
Não vai dar certo fazer o jogo de quem vai gerir melhor as crises do
capitalismo, como não deu certo na Argentina [onde o
ultraliberal Javier Milei derrotou o candidato da esquerda nas eleições
presidenciais]. Isso fortalece o retorno da extrema direita."
Mas essa é só uma das camadas do problema. A
outra, mais profunda, diz respeito à própria capacidade de se pensar sobre a
realidade e propor soluções para os desafios sociais.
De acordo com o autor, esse problema se
esconde sob a luta com a extrema direita, que acaba legitimando, no plano
político, todo tipo de aliança –inclusive aquelas que implicam a renúncia a
bandeiras históricas.
Só que, ao agir dessa forma, argumenta, a
esquerda admite uma aproximação dos dois polos em disputa que a torna cada vez
mais parecida com seus adversários de dez ou 15 anos atrás. "Isso parece
responsabilidade no presente, mas é uma forma de suicídio político a médio e
longo prazo", afirma Safatle. "Esse suicídio está explícito no fato
de que a gente perdeu a nossa gramática."
Ele explica: "Uma gramática define quais
são os valores, como você opera julgamentos, como você orienta a ação. Perder a
gramática não significa que você vai deixar de estabelecer valores, de julgar
ou de agir. Mas você integra o modo de ação e o julgamento de um outro".
Um exemplo? "Veja como a gramática do
empreendedorismo entrou na esquerda. Quantas vezes a gente não ouviu, na última
década, o pessoal falando sobre empreendedorismo periférico, como se fosse uma
expressão máxima de emancipação? Isso, para mim, é expressão de como a gente
perdeu até a nossa linguagem."
O problema está longe de ser trivial, já que,
para ele, a linguagem deveria servir não só para comunicar, mas também para
entender a complexidade de certas questões. Ou seja, é um problema
epistemológico, relacionado com a possibilidade de se produzir conhecimento.
"Daí veio a ideia do livro. Eu queria
mostrar que, quando uma gramática cai, a vida desaba em todas as
dimensões."
Em "Alfabeto das Colisões", Safatle
fala pouco de política em sentido estrito. Há um capítulo melancólico sobre sua
campanha de 2022, mas nada além disso. Ele temia que, se avançasse nesse tema,
a atenção dos leitores seria desviada para isso, quando o que mais importa é o
conjunto de provocações que a obra apresenta sobre diversos campos da
experiência.
Essas provocações começam já no índice do
livro, onde as letras do alfabeto aparecem em ordem aleatória. E seguem
presentes na primeira frase da obra: "Houve uma época em que podíamos
esperar do alfabeto ao menos a garantia de uma sequência".
O trabalho se constrói em torno desse
alfabeto disperso, em que as letras sugerem o nome do capítulo: "F"
de filosofia, "U" de universidade, "O" de opressão e por aí
vai. Alguns dos textos são inéditos, outros são versões modificadas de colunas
publicadas antes na Folha, no jornal El País e na revista Cult.
Como o leitor se dá conta logo de cara, são
ensaios curtos, sem fôlego, que parecem terminar quando o debate mal começa a
esquentar. Uma forma de escrita e organização do pensamento que Safatle
considera a mais apropriada para as reflexões que pretende estimular.
"Em uma situação de crise como a nossa,
tão profunda –crise ecológica, social, política, econômica, psíquica,
demográfica—, é importante entender que a gente está também em uma espécie de
crise epistêmica. Isso precisava aparecer na forma de constituir os problemas,
de escrever", diz.
Daí o livro fragmentado, distante da
linguagem acadêmica que caracteriza suas outras obras.
"Certas coisas eu não conseguia falar
por causa do tipo da escrita. Acho que tem uma certa forma de dizer que
determina o que você consegue dizer", afirma ele sobre a linguagem
experimental e a proposta de atingir um público mais amplo.
"O que não significa que eu seja
daqueles que falam sobre o caráter hermético da escrita acadêmica e agora estou
fazendo uma autocrítica. Não é nada disso. Eu entendo que essa escrita tem uma
função importante, mas acho que há várias dimensões da experiência que a gente
não consegue descrever de forma adequada."
Uma dessas provocações está no capítulo
"H", sobre heterossexuais, em que ele desenvolve um debate iniciado
na Cult e questiona se a própria ideia de que existem heterossexuais não é uma
forma de encapsular a reflexão sobre o assunto.
Ou no capítulo "I", de identidade,
no qual Safatle encara discussões identitárias e força os seus limites, à
esquerda e à direita.
"Talvez essa seja uma das funções
maiores desse livro: insistir em como nosso pensamento crítico é muito pouco
crítico. É necessária uma crítica do pensamento crítico, ou seja, uma certa
desconfiança, da nossa parte, do tipo de vocabulário, do tipo de gramática que
a gente utiliza", afirma.
Mas que ninguém espere encontrar soluções
prontas nesse alfabeto disperso, pois não é isso que seu autor pretende
oferecer.
"Uma coisa que me incomoda muito é essa
maneira com que a classe intelectual é chamada ao debate público para aparecer
como propositora de certas soluções que sempre são genéricas demais, ou são
hipermoralistas. Acho que a gente faz um papel muito ruim no debate
público", diz.
"Em uma situação como a nossa, mais
importante do que tentar propor soluções é partilhar colisões. Achei que isso
era o mais honesto a fazer", diz Safatle.
ALFABETO DAS COLISÕES
Preço R$ 59,90 (160 págs.)
Autoria Vladimir Safatle
Editora Ubu
Muito bom!
ResponderExcluirO Safatle deveria é estar fazendo o obituário da extrema-direita. Ela mostrou no último domingo que já perdeu o ímpeto, as garras e o líder.
ResponderExcluirDepois do vexame que o Bolsonaro protagonizou ao pedir arrego publicamente, levantando a bandeira da paz porque já não pode mais sustentar nenhuma guerra, nem mesmo manter-se fora das grades, a tendência é que a direita civilizada recupere as rédeas, impondo sua dominação por meio do seu avassalador poderio econômico e da lavagem cerebral efetuada dia e noite por sua indústria cultural, sem as loucuras estridentes que só assustam o mercado e afugentam os investidores.
É este o inimigo que devemos nos preparar para combater. Os fantasmas do século passado ainda arrastam correntes, mas já se tornaram inofensivos.(Celso Lungaretti)