domingo, 3 de março de 2024

Bernardo Mello Franco - A cruzada de Michelle

O Globo

Em comício na Paulista, ex-primeira-dama expôs projeto de dominação pela fé

Enquanto o marido clamava por anistia aos golpistas, Michelle Bolsonaro usou o comício da Avenida Paulista para promover outra causa: a supressão do Estado laico.

A ex-primeira-dama abriu o ato do último domingo, organizado pelo notório pastor Silas Malafaia. Do alto do trio elétrico, ela citou trechos da Bíblia, distribuiu aleluias e anunciou um projeto de dominação pela fé.

“Por um bom tempo, fomos negligentes a ponto de dizer que não poderiam misturar política com religião. E o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação”, conclamou. “Nós te amamos, Pai. Nós te amamos e te pedimos que o Senhor estabeleça o seu reino no Brasil”, prosseguiu.

Em tom messiânico, Michelle descreveu os seguidores de Bolsonaro como um “exército de Deus”. “Somos um povo de bem, que defende valores e princípios cristãos”, discursou. Em 15 minutos, ela citou Deus 38 vezes — sem contar 30 menções ao Senhor, quatro ao Pai e três a Jesus Cristo.

“Nós abençoamos o Brasil. Nós abençoamos Israel. Em nome de Jesus, amém!”, exaltou, como se comandasse num culto evangélico. “Glória a Deus! Aleluias! Deus é bom! Deus é maravilhoso!”, empolgou-se, dando pulinhos no palanque.

A ex-primeira-dama usava camiseta verde-amarela com o desenho da bandeira. No lugar do lema “Ordem e progresso”, lia-se a convocação “Ore pelo Brasil”. Não é preciso ter Ph.D. em semiótica para captar a mensagem.

A julgar pela pregação de Michelle, Deus tomou partido na polarização brasileira. “Meu marido foi escolhido”, garantiu a senhora. Ela descreveu a eleição de Bolsonaro como uma providência divina para salvar o país. “Aprouve Deus nos colocar na Presidência”, discursou.

O Brasil d/separou Igreja e Estado ao proclamar a República, em 1889. Passados 135 anos, a ex-primeira-dama lança as bases de uma teocracia tropical. O ex-presidente já havia usado o nome de Deus ao registrar a coligação no TSE. Agora sua mulher investe abertamente contra a laicidade estatal.

A cruzada de Michelle tem um propósito claro: aumentar a adesão do eleitorado religioso ao projeto político da família. Com o capitão inelegível, ela também aproveita para se insinuar como opção para 2026.

Imunidade abençoada

Se só os evangélicos votassem, Bolsonaro teria sido reeleito com folga em 2022. Bateria Lula por 69% a 31%, segundo o último Datafolha.

Além de empunhar bandeiras ultraconservadoras e de indicar um pastor ao STF, o capitão ofereceu um pacote de benesses para fidelizar as grandes denominações. Perdoou dívidas fiscais, renovou concessões de TV e abasteceu emissoras religiosas com verbas de propaganda.

Ansioso para se aproximar dos evangélicos, o atual governo começa a flertar com a mesma tática de cooptação. Nesta terça, a Câmara abriu caminho para ampliar ainda mais a imunidade tributária das igrejas.

Apresentada pelo bispo Marcelo Crivella, a proposta passou por unanimidade numa comissão especial. Apesar do prejuízo aos cofres públicos, foi aprovada com a bênção do Planalto.

 

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