segunda-feira, 4 de março de 2024

Bruno Carazza* - Palavras de Barroso não pagam custo do Judiciário

Valor Econômico

No dia 25/02/2024, o atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, publicou um artigo na Folha de S.Paulo intitulado “Quanto vale o Judiciário?”

O texto foi uma defesa institucional ao estudo elaborado pelas Secretarias do Tesouro Nacional e do Orçamento Federal, em conjunto com o IBGE, que estimou em R$ 116 bilhões (ou 1,6% do PIB) as despesas totais do sistema judiciário no Brasil em 2022 - custo muito superior à média dos países emergentes (0,5% do PIB) e das economias mais avançadas (0,3% do PIB).

Impossibilitado de refutar os dados, o ministro Barroso optou pela retórica, como é bastante comum no mundo jurídico. Num duplo twist carpado, o atual presidente do Supremo inverteu a pergunta; para ele, mais importante do que discutir o custo, o correto seria indagar quanto vale o Judiciário.

Nas suas palavras, “a Justiça brasileira é, provavelmente, a mais produtiva do planeta, julgando definitivamente mais de 30 milhões de processos por ano”. De fato, o painel Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aponta para 31.872.289 julgados em 2023. Só faltou ao ministro informar que, no mesmo ano, foram protocoladas 34.140.521 novas ações.

Em vez de solucionar conflitos de forma definitiva, há anos o Judiciário brasileiro enxuga gelo devido a um sistema recursal kafkiano e frequentes mudanças jurisprudenciais. Como resultado, o estoque de processos pendentes só cresce: eram 79,56 milhões de casos esperando uma solução final em 2020 e atualmente eles passam de 82,65 milhões.

Incapaz de explicar a ineficiência do Judiciário, Barroso partiu então para defender o indefensável. De forma lamentável, incorporou os argumentos corporativistas utilizados pelas associações de magistrados para justificar rendimentos desproporcionais à realidade brasileira.

Segundo o presidente do STF, os magistrados são selecionados em concursos disputados e por isso estão entre os melhores profissionais do mercado, “embora ganhem substancialmente menos do que atores de sucesso no ambiente jurídico privado”.

Não há dúvidas que o concurso público é um filtro importantíssimo para arregimentar bons quadros. Mas a mera admissão na magistratura não é suficiente para se dizer que ali está o supra-sumo do meio jurídico nacional e muito menos para que todos os juízes se considerem merecedores de receber como a nata da advocacia privada.

Quando usam a comparação com advogados particulares para justificar penduricalhos, associações de juízes esquecem de levar em conta estabilidade, regimes generosos de férias, licenças e aposentadorias (quem mais no setor privado tem direito a 60 dias de férias e mais recesso judiciário por ano?) e estrutura de apoio (assessores, estagiários, equipe de apoio e terceirizados) paga pelos cofres públicos. Fora isso, o rendimento médio bruto dos magistrados em 2023, segundo dados preliminares do CNJ, foi de R$ 62.587,24 por mês, muito acima da média de ganhos dos advogados privados - R$ 15.194,26 mensais, segundo a Receita Federal (2021).

Isso sem falar nas distorções. “Os abusos remuneratórios que se noticiam aqui e ali são graves e devem ser corrigidos, mas não invalidam o quadro geral”, reconhece o presidente do STF.

Data venia, não se trata de abusos que ocorrem “aqui e ali”. A prática de criação de penduricalhos se alastrou em todo o Judiciário nos últimos anos, inclusive com a conivência do CNJ e do STF, presididos atualmente pelo ministro Barroso. Tomando por base os dados divulgados no painel de remunerações do Judiciário, 93% dos magistrados brasileiros tiveram um rendimento líquido superior ao dos ministros do STF.

Essa implosão do teto salarial se deve a uma série de decisões administrativas tomadas pelos próprios tribunais e conselhos que legitimam, ao arrepio da lei, quinquênios, licenças por acumulação de serviço, venda de férias, parcelas de equivalência, e tudo o mais que a criatividade da categoria permitir. Graças a essas benesses, foram pagos R$ 39,7 bilhões em benefícios além do teto para membros ativos e inativos do Poder Judiciário de 2018 a 2023.

As planilhas do CNJ revelam outro número assombroso: pelo menos 1.002 magistrados brasileiros, na ativa ou aposentados, receberam valor líquido superior a R$ 1 milhão em 2023. E esse número deve ser muito maior, pois quase a metade dos tribunais brasileiros (28 de 60) não divulgaram as folhas de pagamento de todos os meses do ano passado.

Como afirmou, com razão, o ministro Barroso, “instituições precisam ser sempre aperfeiçoadas, mas isso não as torna menos essenciais”. De fato, recuperar a credibilidade no Poder Judiciário é fundamental para se resgatar a confiança na democracia brasileira.

Para isso, porém, o ministro Barroso, como presidente de seus órgãos de cúpula, deveria colocar sua inteligência e habilidade política a serviço de uma agenda republicana, e não corporativista.

Restaurar a autoridade do teto salarial, abolir a liberdade com que os conselhos de Justiça têm de criar benefícios salariais e autorizar pagamentos retroativos, instituir um efetivo órgão de controle externo do Judiciário e estabelecer um plano de carreira razoável para juízes são ações para que a magistratura deixe de ser vista como casta carregada nos ombros pelo contribuinte brasileiro.

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.

 

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