Folha de S. Paulo
Nos EUA, Lula e Bolsonaro têm o mesmo
candidato, mas só o segundo pode pronunciar seu nome
Viktor Orbán, Putin e Lula não votam nas
eleições americanas, mas proclamaram suas preferências. O primeiro-ministro
húngaro declarou-se por Trump, uma manifestação sincera e interessada. Putin e
Lula declararam-se por Biden, em gestos de ilusionismo político movidos por
razões distintas.
Orbán visitou os EUA sem se reunir com Biden:
foi direto a Trump, rompendo o mais básico protocolo diplomático. Líder da
direita nacionalista europeia, ele professa as mesmas ideias que o virtual
candidato republicano.
No plano internacional, mantém uma pouco discreta parceria com a Rússia e critica o apoio da União Europeia à Ucrânia. No plano ideológico, compartilha com Putin o conceito da "nação de sangue" apoiada nos pilares da família tradicional e da religião cristã. O triunfo de Trump asseguraria a seu projeto autoritário e à direita conservadora do Velho Mundo um aliado poderoso, capaz de contrabalançar as pressões das democracias europeias.
"Para nós, quem é melhor, Biden ou
Trump?", perguntou a Putin um jornalista amestrado russo. A resposta
surpreendeu: "Biden. É mais experiente, previsível, um político ao velho
estilo". Mentira evidente, proferida de cara limpa. Biden classificou
Putin como "ditador assassino", um "puro bandido" que nutre
"cobiça covarde por territórios e poder". Mas o "puro
bandido" tem motivos mais sérios para torcer por sua derrota.
A sobrevivência do regime de Putin depende do
desenlace da guerra imperial na Ucrânia. Por isso, mais ainda que em 2016,
Trump é o candidato dos sonhos de Putin. O republicano despreza a Otan e, no
seu encontro com Orbán, prometeu cortar totalmente a ajuda dos EUA aos
ucranianos.
A resposta falsa à indagação encenada cumpre
a função política de confundir o debate eleitoral sobre política externa nos
EUA: a cada vez que for acusado de operar como despachante dos interesses de
Putin, Trump se refugiará na declaração do chefe do Kremlin. O líder russo
falou para o eleitorado dos EUA, ofertando material aos marqueteiros
republicanos.
Lula seguiu a linha de Putin: "Eu
obviamente acho que o Biden é mais garantia para a sobrevivência do regime
democrático no mundo e nos EUA". Contudo, ao contrário do líder russo, o
presidente brasileiro tem escassa relevância no debate eleitoral americano. Seu
apoio, igualmente insincero, não se destina ao público dos EUA, mas aos
brasileiros. Justamente por isso, não poderia dizer coisa diferente.
No Brasil, o nome de Trump está
indissoluvelmente associado ao de Bolsonaro –e
a polarização com Bolsonaro é o talismã que Lula carrega no bolso. Tudo que de
reprovável faz o governo, inclusive as iniciativas mais ignóbeis derivadas da
parceria com Lira, encontra legitimação retórica no alegado risco da
"volta de Bolsonaro". Democracia versus autoritarismo –eis o mantra
lulista.
Palavras enganosas. Lula pouco se importa com
a "sobrevivência do regime democrático no mundo", como atestam os
casos de Cuba, Venezuela e Nicarágua. Sobretudo, porém, sob o ponto de vista
dos conceitos de política internacional de seu governo, Trump funciona bem
melhor que Biden.
A política
externa brasileira subordina-se à ideia de uma coalizão
anti-ocidental estruturada ao redor dos Brics –ou seja, basicamente, da China e
da Rússia. "Sul Global" é a fórmula que expressa esse conceito, uma
atualização da tradição terceiro-mundista. A solidariedade (mal) disfarçada à
guerra de agressão russa decorre dessa visão geopolítica de fundo.
O neo-isolacionismo de Trump –ou seja, sua
inclinação a romper a aliança erguida no pós-guerra entre EUA e Europa–
adapta-se às prioridades internacionais da esquerda petista. Um
"imperialismo" trancado na sua fortaleza nacional: eis o cenário ideal
para Lula. Por isso, nos EUA, Lula e Bolsonaro têm o mesmo candidato –mas só o
segundo pode pronunciar seu nome.
Viajando na maionese.
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