quarta-feira, 6 de março de 2024

Elio Gaspari - O golpinho de Bolsonaro

O Globo

A mesa não virou porque a voz das urnas foi respeitada

A exumação da tentativa de golpe de Estado de Jair Bolsonaro corre o risco de se transformar num teatro do absurdo, com a reconstrução de algo que não houve. Uma mistura da trama da peça “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, com o poema “À espera dos bárbaros”, de Konstantinos Kaváfis. Godot não chega, nem os bárbaros, mas tanto a peça como o poema são obras-primas.

O golpinho de Jair Bolsonaro bebeu na fonte do golpe de Getúlio Vargas, em 1937. Este foi impecável.

Primeiro Vargas mandou um emissário aos governadores de sua confiança. Depois, pediu ao ministro da Justiça, Francisco Campos, que redigisse uma nova Constituição. Finalmente, armou o esquema militar com o ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, e o condestável do Exército, general Góes Monteiro. Dado o golpe, arrasou as instituições políticas e instalou o Estado Novo, que duraria oito anos.

O golpe de 1937 de Getúlio Vargas guarda uma diferença essencial com o golpinho de 2022 de Jair Bolsonaro. Ambos queriam o golpe para permanecer no poder, mas, enquanto num caso a eleição só ocorreria em 1938, no outro ela já havia ocorrido, e Bolsonaro perdera. Bota diferença nisso. Querer fazer em dezembro de 2022 o que Vargas fez em 1937 seria transformar uma tartaruga em girafa.

As necessárias investigações em curso devem responsabilizar quem atravessou as linhas das leis durante o processo eleitoral e mesmo depois dele. Esse é o caso dos articuladores e dos vândalos do 8 de Janeiro, bem como das obstruções de rodovias e das barreiras da Polícia Rodoviária Federal no dia do segundo turno. São delitos concretos, comprováveis. Indo além, entra-se no teatro do absurdo, expondo um golpe que não houve.

No dia 9 de dezembro de 2022, depois de ter perdido a eleição, Bolsonaro disse: “Vamos vencer, se manifestando de acordo com as nossas leis, vocês são cidadãos de verdade. Está na hora de parar de ser tratado como outra coisa aqui no Brasil. Se Deus quiser, tudo dará certo no momento oportuno!”.

Pela minuta do golpe, seria decretado o Estado de Defesa, seriam presos ministros do Supremo e parlamentares, anulando o resultado da eleição. Como se conseguiria isso, falta explicar. Seria o golpe de 1937, com Jair Bolsonaro numa reencarnação impossível de Getúlio Vargas e Anderson Torres com o intelecto de Francisco Campos. Isso tudo sem os generais Eurico Dutra e Góes Monteiro.

No ano do 60º aniversário do golpe de 1964, vale lembrar que Bolsonaro bebeu na fonte de João Goulart em outubro de 1963. Foi quando Jango enviou ao Congresso um pedido de instalação do Estado de Sítio.

Alceu Amoroso Lima escreveu à filha no dia 1º de outubro:

— Tudo indica ou um golpe do próprio governo, imitando o Getúlio de 37, ou um choque realmente de extremas, com um golpe de uma delas.

Três dias depois, com o apoio dos três ministros militares, Jango enviou ao Congresso uma mensagem pedindo o Estado de Sítio. A oposição generalizada, incluindo governadores como o pernambucano Miguel Arraes, esfarelou a manobra e, quatro dias depois, a proposta foi retirada.

Passado o tempo, o professor Darcy Ribeiro, que ocupava a chefia da Casa Civil, contaria:

— O que impediu foi que o esquema feito pelos próprios militares não foi cumprido.

Que esquema? Darcy sabia, mas não quis contar.

 

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