O Estado de S. Paulo
Se o país hoje desliza para o malogro, desliza menos porque perdeu um embate político e mais por ter deixado de ser objeto do desejo das massas consumidoras internacionais
Frequentadores habituais de Havana reconhecem
que a ilha de Fidel Castro enfrenta a sua pior crise. Quase tudo se esvai. Da
revolução que tomou o poder em 1959, quando os guerrilheiros de Sierra Maestra
marcharam sobre as ruas da capital sob os aplausos de um povo sorridente e
esperançoso, resta pouco além de repartições burocráticas, escassez
generalizada e gabinetes de vigilância política.
Os maiores entusiastas dessa longa história de arrebatamentos sabem disso. “É desesperador. Ninguém em Havana aponta saídas”, declarou Frei Betto ao jornalista Mario Sergio Conti (Folha de S.Paulo, 1.º de março). O frade dominicano, autor do best seller Fidel e a Religião (Editora Brasiliense, 1985), traduzido em mais de 30 países, inclusive em Cuba, é uma celebridade local. Basta ele sair por las calles para que venha alguém puxar assunto. O afeto ainda é o mesmo, o calor do olhar e dos abraços ainda aquece, mas os sorrisos perderam o brilho, a esperança minguou e os aplausos escassearam. Nas palavras de Conti, Cuba está “sem futuro à vista”.
Não é apenas uma estrela que fenece em céu
incerto, não é somente um ocaso triste; a perda de vitalidade da saga
insurrecional que balançou o mundo há seis décadas tem a envergadura de um
evento histórico mais denso, que não podemos desistir de compreender. A agonia
lenta e progressiva tem ao menos duas dimensões: no plano mais imediato, o das
coisas práticas, fracassam um regime e um modo de governar; no plano menos
tangível, o que vem abaixo é uma utopia do tamanho do mundo, uma utopia
desproporcionalmente maior do que a modesta tripa de terra caribenha onde ela
um dia se instalou em meio a gritos de vitória, jipes claudicantes, charutos
rebeldes e mochilas puídas. A derrota que se expressa agora como falta de
futuro é a calcinação de um sonho.
Explicações virão. Uns dirão que o bloqueio e
as sanções impostas pelos Estados Unidos engendraram o estrago, e estarão
certos. Outros sustentarão que o autoritarismo, os vezos ditatoriais e a
insensibilidade de um poder que se ilhou de sua própria gente são os
responsáveis pelo fiasco – estarão certos também.
O que poucos observadores notarão é que Cuba
foi devorada e, depois, desprezada pela indústria do entretenimento ou, de modo
mais preciso, pela indústria do turismo. Se vai morrendo aos poucos, não morre
apenas de inanição (vítima do bloqueio) ou de asfixia (vítima de uma ordem
autocrática), mas principalmente de déficit de carisma. Seu charme, que
encantou visitantes tão distintos quanto o filósofo francês Jean Paul Sartre e
o jornalista brasileiro Ruy Mesquita, diretor deste jornal, não existe mais. El
Malecón perdeu vigor porque perdeu a graça.
Quando se abriu para o turismo sem inibições,
a ilha tomou a decisão de entrar para o mercado de viagens recreativas como se
fosse um parque temático, uma espécie de Disneylândia socialista. Em parte, a
guinada deu certo. Os consumidores afluíram sedentos de aventuras ideológicas.
Muitos se deliciavam discutindo conjuntura internacional com o garçom e
interpelando o motorista de taxi sobre a luta de classes. Passar férias
naquelas plagas e naquelas praias era como praticar um esporte radical, como
experimentar uma clandestinidade sem correr risco de ir para a cadeia. Eram
férias inebriantes, como brincar de guerrilha tendo um mojito numa mão e um
Cohiba na outra.
No fundo, porém, o frenesi supostamente
militante não passava de uma caprichosa modalidade de consumo: os turistas
autodenominados “de esquerda” deglutiam com voracidade os dramas humanos do
“período especial”, os infortúnios de homossexuais que sofriam perseguição do
regime, o heroísmo de famílias que criavam porcos dentro de apartamentos para
ter o que comer. Adoravam tudo isso pois tudo isso fazia parte da luta que
venceria a exploração do homem pelo homem. Os turistas combativos iam para
Varadero ou Cayo Largo e saíam de lá com a alma renovada, abastecida de novas
fantasias, mais ou menos como quem vai até o Nasa Kennedy Space Center para
encostar os dedos em naves espaciais ou viaja para a Índia para se submeter a
overdoses de meditação transcendental.
Foi então que o país que destronou Fulgencio Batista e seus cassinos alcoolizantes seguiu no mesmo negócio, apenas redecorou as vitrines. Funcionou, ao menos um pouco. Depois, o fetiche da mercadoria se desfez e a concorrência levou a melhor. A Cuba turística se deixou ultrapassar por outras atrações que ofereciam mais adrenalina, como paisagens exóticas da China, ondas perfeitas na Oceania ou a culinária vietnamita. Pode ser cruel dizer isto, mas é o que é: se Cuba hoje desliza para o malogro, desliza menos porque perdeu um embate político e mais por ter deixado de ser o objeto do desejo das massas – não das massas proletárias, mas das massas consumidoras internacionais. A sua tragédia um tanto melancólica não se explica pela derrocada das relações de produção, mas pelo esvaziamento das relações de consumo. Os outdoors de Che Guevara, Fidel e Camilo Cienfuegos desbotaram.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Texto sensacional !
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