sexta-feira, 22 de março de 2024

Fabio Giambiagi - Um sistema disfuncional

O Globo

Sem isso, será difícil escapar da trajetória de mediocridade que tem sido nossa sina há vários anos. No longo prazo, é uma tragédia

Um dos temas sobre os quais os aspirantes a economistas se debruçam na faculdade é a análise do papel dos incentivos. Observe-se algo que funciona mal na economia e, muito provavelmente, haverá um erro de concepção no que os economistas chamamos de “desenho de incentivos”.

Isto não é algo difícil de entender para o leigo. Pensemos na educação de um filho. Se uma criança mal comportada não tiver limites claramente colocados pelos seus pais e, na juventude, continuar fazendo estripulias cada vez piores, vendo sempre como seus pais “passam o pano” diante do seu comportamento inaceitável, esse futuro adulto será provavelmente um péssimo cidadão, mal-educado e, eventualmente, violento.

Corta para um país. Tipicamente, as “famílias” de regimes de governo se decompõem em dois grandes blocos: presidencialistas e parlamentaristas. A situação peculiar da nossa Constituição de 1988 ter sido desenhada para um país parlamentarista, mas na qual no final prevaleceu o presidencialismo, gerou o “presidencialismo de coalizão”, um regime presidencialista com um sistema político fragmentado, mas onde o Presidente tinha instrumentos de Poder para poder governar.

Com o tempo, o Parlamento ganhou diversos poderes e, hoje, temos um animal híbrido, um regime disfuncional, com um Congresso poderoso, um Executivo enfraquecido e um sistema eleitoral onde escolhe-se quem, supostamente, comandará o país nos quatro anos seguintes, sem ter à mão, porém, os elementos para poder fazê-lo com eficácia.

Na raiz dessa disfunção, está a aberração do abuso das emendas parlamentares. Estas representam mecanismos que existem em qualquer democracia, mas que no Brasil alcançaram uma dimensão que conspira contra o sucesso da economia. Trata-se de uma despesa que está chegando perto de ser de quase R$ 50 bilhões por ano, a maior parte dos quais para gastos que, sob a ótica federal, não fazem o menor sentido.

Ao invés de o governo federal usar esses recursos para construir coisas que sejam condizentes com o que cabe à União fazer — proteção de fronteiras, ciência e tecnologia, energia nuclear, estradas etc. — estamos “torrando” dezenas de bilhões numa miríade de iniciativas que constituem, tipicamente, despesas locais: praças esportivas, ginásios, hospitais que se multiplicam sem qualquer lógica de integração etc. Isso é uma bola de ferro, que joga para baixo qualquer tentativa de elevar a produtividade. Em bom português, equivale a jogar dinheiro pela janela.

Qual é o problema político? Duas coisas associadas entre si: a) nada impede que o parlamentar agraciado com essa verba, na “hora H”, vote contra o governo, porque quem tem o comando desses recursos é o “alto cardinalato” do Parlamento e não o ministro ou o presidente; e b) para efeito das chances de o parlamentar se reeleger, pouco interessa se a despesa faz bem para o país ou não, porque o que vale para ele é se isso vai dar votos na comunidade ou não — e vai dar.

Como me disse um amigo muito politizado do interior, que votou em um parlamentar completamente fisiológico na última eleição: “Fabio, o que me interessa é se ele vai trazer recursos para a região onde moro ou não.”

O Brasil precisa redefinir o sistema político, para que uma coalizão de governo seja inteiramente responsável pelo sucesso ou pelo fracasso da gestão, ao invés de termos a “geleia geral” em que temos vivido. Por isso, aprovadas as leis complementares da Reforma Tributária em 2024, na segunda metade do mandato de 2023/2026 deveríamos discutir a sério a possível adoção do chamado “semipresidencialismo” a partir de 2031.

Assim, o próximo governo ainda seria no formato atual, mas os players da política já atuariam na gestão de 2027/2030 na perspectiva de mudança do sistema nas eleições seguintes.

Sem isso, será difícil escapar da trajetória de mediocridade que tem sido nossa sina há vários anos. No longo prazo, é uma tragédia.

 

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