O Estado de S. Paulo
O STF decidiu corretamente ao brecar a descida da bola de neve pela montanha. O governo agiu acertadamente ao cumprir a decisão
Já votei em Ciro Gomes e nutro admiração pelo
seu estilo aguerrido e combativo. O ex-governador e ex-ministro tem muita
experiência e colaborou bastante para o debate público e a elaboração de
políticas públicas no Ceará e no Brasil. Na questão dos precatórios,
entretanto, discordo de Ciro em suas recentes avaliações.
Quando da promulgação das Emendas Constitucionais n.º 113 e n.º 114, derivadas da famigerada PEC dos Precatórios, avaliei que o limite estabelecido pelo artigo 107-A do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) teria efeitos deletérios sobre as contas públicas. Chamei aquilo de bola de neve, o que rendeu um desenho do saudoso Paulo Caruso na entrevista que concedi em dezembro de 2021 ao Roda Viva, na TV Cultura, com a frase pescada da minha resposta à jornalista Vera Magalhães, âncora do programa: “PEC é bola de neve rolando a montanha”.
O precatório é uma dívida pública derivada de
decisão judicial. Para ter claro: o juiz manda pagar e estipula o prazo. A
ordem não pode ser desobedecida. A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei
Complementar n.º 101, de 2000) determina, inclusive, que todo precatório
expedido não pago na data determinada pela Justiça seja contabilizado na
chamada dívida consolidada do respectivo ente federado. A meu ver, como já
defendi neste espaço, aliás, em artigo escrito em parceria com o professor
Fernando Facury Scaff, todo e qualquer precatório tem essa mesma natureza.
Agora me lembrei de Leonel Brizola: “Tem cara de jacaré, rabo de jacaré e boca
de jacaré, e não é jacaré?”.
Se os precatórios não pagos no prazo fossem
contabilizados como dívida pública, então, contabilmente, as despesas
realizadas quando do seu pagamento seriam financeiras, e não primárias. Isso
porque teriam como contrapartida a baixa no passivo. É como ocorre quando são
pagos o principal mais os juros dos títulos públicos, no seu vencimento, para
os detentores dos papéis. A despesa é realizada, mas o passivo, a dívida do
Estado, cai. Não se trata só de um tópico contábil, antes que venham os colegas
economistas com quatro pedras na mão, como se contabilidade pública fosse coisa
menor.
A questão é intrincada. Primeiro, decisão
judicial, num país sério, se cumpre. Os precatórios, portanto, todos derivados
de decisões judiciais, devem ser pagos e ponto final. Foi assim que o Supremo
Tribunal Federal (STF) fulminou a PEC do Calote, na verdade, o texto do artigo
mencionado que estabelecia um limite para o pagamento dos precatórios. O efeito
daquele teto era jogar para a frente o excedente, em efeito bola de neve que
atingiria prováveis R$ 300 bilhões até 2027. Calote puro.
A justificativa tinha duas pernas: a falta de
controle desse gasto, que emana de decisão judicial e, portanto, não pode ser
comandado pelo Executivo; e o seu crescimento exponencial observado nos últimos
anos. Quanto a isso, falta, na verdade, planejamento. A Advocacia-Geral da
União (AGU) e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) fazem um trabalho
primoroso, pautado por excepcional qualidade técnica, e alertam o governo sobre
os riscos, classificando as ações judiciais quanto à probabilidade de perda e o
valor envolvido. Conheci o trabalho quando estive à frente da Instituição
Fiscal Independente (IFI). Isso já aparece em boa medida no Balanço Geral da
União e no Anexo de Riscos Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias, ano a
ano. É preciso, isto sim, criar um sistema de monitoramento, como propus em
2021.
Como conciliar a boa gestão fiscal, sob
princípios adequados de planejamento orçamentário e econômico e sob regras
fiscais, à dinâmica dos precatórios? A saída contábil, a meu ver, é a que
descrevi acima. De rigor, nada de usar o espaço eventualmente gerado no
resultado primário para torrar. Todo o espaço seria destinado à amortização da
dívida pública. Um dispositivo simples na LRF resolveria essa grande
preocupação, de fato, da qual compactuo. Fato é que para tudo há solução, a não
ser para a morte.
Mas o ponto de Ciro Gomes é outro. Ele está
preocupado com o pagamento feito a toque de caixa, no final do ano passado,
para instituições que adquiriram o direito de receber junto dos precatoristas,
com deságio. Por partes. Se o direito de receber foi negociado pelo
precatorista, trata-se de decisão individual. Ele preferiu a liquidez em troca
de um pedaço do seu precatório. A outra parte assumiu o custo de esperar para
receber. Não há nada de ilegítimo ou ilegal nisso. Errado é defender que não se
pague um precatório. Sob qual justificativa? Descumprir uma decisão judicial
que determinou, por exemplo, o direito a um benefício de aposentadoria mal
calculado, a um valor por serviço prestado ao poder público, a um
auxílio-alimentação de um servidor etc.?
O STF decidiu corretamente ao brecar a
descida da bola de neve pela montanha. O governo agiu acertadamente ao cumprir
a decisão. Problema resolvido? Longe disso. É hora de moldar um sistema de
monitoramento para os precatórios e promover a mudança contábil que temos
defendido há algum tempo. Há outras possibilidades sobre a mesa. Vamos
discuti-las.
*Economista-chefe e sócio da Warren Investimentos,
foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo
■Este é um artigo mais para profissionais. Mas é um artigaço!
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