sexta-feira, 8 de março de 2024

José de Souza Martins* - As brechas autoritárias da organização política

Valor Econômica

As frequentes violações dos direitos humanos pelas polícias e a fragilidade da segurança refletem suas origens na cultura da repressão à senzala

O fim da ditadura militar (1964-1985) não representou o fim da baderna estrutural. A de que ela foi expressão, a que dotara o país de uma organização política anômala e desfavorável à democracia.

A coisa vem de longe. Desde, pelo menos, a independência. A constituição do Estado brasileiro tem uma característica que o distancia do que é próprio do verdadeiro Estado moderno, que na Europa nascia quando houve aqui o Grito do Ipiranga. O que deu nascimento a um Estado brasileiro antimoderno, baseado no poder do atraso, um tipo como contrapartida do outro.

As anomalias retrógradas e autoritárias do período presidencial encerrado em dezembro de 2023 se determinam pela estrutura defeituosa desse passado que persiste e resiste. Somos muito atrasados achando que somos muito modernos.

Somos peculiares. Fernando Henrique Cardoso, num ensaio sociológico de 1971, já havia chamado a atenção para o fato de que, diversamente do que aconteceu com os outros países latino-americanos, a independência brasileira não resultou de uma revolução política motivada por um projeto de nação. Uma insurreição da sociedade.

No modo como foi proclamada nossa independência, não foi a sociedade que criou o Estado. Mas o Estado que inventou a sociedade que o legitimasse.

Porém, qual sociedade? O Brasil era sociedade escravista - de escravos e senhores de escravos, com uma categoria média de funcionários públicos, algumas forças policiais mais do que militares propriamente ditos, a ordem assegurada por capitães do mato.

As frequentes violações dos direitos humanos pelas polícias e a decorrente fragilidade da segurança da sociedade refletem suas origens na cultura da repressão à senzala. Escravos e escravização ainda existem aqui apesar das leis que tratam do direito do trabalho.

O latifúndio foi aqui fruto da escravidão, enquanto monopólio do território pela minoria racial para sujeitar o trabalho dos desvalidos, fonte de lucro extraordinário à margem da lei.

A criminalidade fundiária ainda responde pelo açambarcamento de dezenas de milhões de hectares de terra, desprovidos da legitimidade do fundamento na cadeia dominial que a leve aos registros decorrentes da Lei de Terras de 1850.

Não é exagero e descabimento reconhecer as persistências de um passado não superado num presente não realizado. É necessidade de construção de uma consciência crítica que ilumine o caminho para fora do buraco da política meia-boca em que estamos metidos, dominados ou ameaçados por uma maioria de políticos que personificam o meia-boquismo de nossas piores tradições.

O Brasil originou-se de uma colagem de diversidades e diferenças resultantes do acaso e da circunstância. São poucas nossas tradições de orientação. Nunca tivemos protagonistas legítimos do processo histórico, como o das classes sociais que nasciam no mundo, cujo conflito engendrou a sociedade moderna.

Aqui não temos conservadores, temos reacionários. Não temos revolucionários porque os que assim se acham não têm ideia do que é o fazer história e a historicidade da criação política democrática. E do que é a superação das contradições sociais. Direita e esquerda vivem da falsidade do retornelo das polarizações para não sair do mesmo lugar.

O Brasil é, politicamente, uma peneira furada por cujos furos se infiltram os poderios dispersos, o do poder local do latifúndio ao município; o das corporações das forças armadas ao das igrejas e religiões.

O Estado se tornou mero instrumento desses poderios. Em diferentes momentos, o Exército tem sido um deles, que se infiltra na estrutura do Estado em nome de seus valores e privilégios corporativos. Não raro inventa inimigos para legitimar-se, como faz com a esquerda e os comunistas. Rotula segmentos sociais e combate rótulos, sataniza e questiona direitos.

As religiões fazem isso, a seu modo. Infiltram-se na estrutura do Estado. Violam a Constituição. No Congresso, surgiu a “bancada da Bíblia”, que congrega os religiosos das várias denominações. Deram funções de templo a palácios e instituições. Para preservar, democraticamente, a liberdade religiosa, o Estado brasileiro não tem religião. Religião não é categoria política e partidária que possa legitimamente impor ao país o direito de representação política.

Essa e outras anomalias da estrutura do Estado fragmentário no Brasil se expressam na existência no Congresso de uma “bancada da bala”. Os representantes de uma corporação de defensores da violência e da violação dos direitos humanos, portanto, da lei, que se legitima no eleitorado que fala em nome dos que acham que a sociedade se edifica na violência privada e não na civilização e na lei.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

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