sexta-feira, 22 de março de 2024

José de Souza Martins*- O fim de ciclo político?

Valor Econômico

A coragem dos processos, dos inquéritos e das comissões parlamentares de inquérito podem restituir ao Brasil a soberania que o autoritarismo usurpador substituiu pela técnica antidemocrática das “fake news” e da boçalidade

O levantamento do sigilo de numerosos depoimentos de civis e militares ouvidos no processo da tentativa de golpe de Estado de Jair Bolsonaro e seus ajudantes aparentemente fecha um ciclo de tensões e impasses políticos que teve início na circunstância da renúncia do presidente Jânio da Silva Quadros, em 1961.

Aquele foi um período agudo da Guerra Fria e da hegemonia americana na América Latina, sobretudo como consequência da Revolução Cubana. Uma revolução que não era comunista, mas movida pelo afã moral e político de completar a independência do país e libertá-lo da condição de cassino e prostíbulo de Miami.

Os americanos cometeram o grave engano político de irritarem-se com o atrevimento dos cubanos liderados por Fidel de se libertarem da dominação do que havia de pior no capitalismo de periferia. Decretaram o boicote aos produtos da ilha e negando-lhes até mesmo fornecimento de remédios. Aos revoltosos não restou alternativa senão a de aliarem-se aos russos e ao risco da guerra nuclear.

Os países latino-americanos tiveram seu destino alterado pela polarização entre EUA e URSS. Situação descabidamente persistente na melancólica ascensão do bolsonarismo. E no mais melancólico governo que resultou de técnicas antipolíticas de criação de fantasias que convencessem a grande massa da população brasileira partidarizável, mas não politizada, de que o país estava à beira do abismo vermelho.

É importante retornar à campanha política do general Hamilton Mourão, que aspirava à presidência, mas foi passado para trás e se conformou em ser vice e subalterno de um capitão do Exército, de curiosa carreira até o poder.

Mourão e outros altos oficiais militares entendem que a questão política no Brasil é um elo da questão geopolítica centrada na hegemonia americana no continente. Ou seja, o general, mesmo muito depois do fim da União Soviética e da Guerra Fria, continuara e continua preso ao domínio ideológico de uma realidade política que não existe mais. O que sugere que os militares brasileiros foram profissionalmente socializados na visão de mundo de uma sociedade sem alternativa e de um Brasil sem futuro, um Brasil que só tem o futuro da dependência.

As irracionalidades e arcaísmos dessa visão retrógrada de mundo manifestam-se em todas as partes e em todos os níveis da estrutura política herdada desse passado. A URSS deixara de servir como referência para um desenvolvimento econômico alternativo. Até para Cuba.

Mas não foram apenas os fatores geopolíticos que afetaram decisivamente a crise decorrente do janismo na direção do que veio a ser o golpe político de 1964. Por trás da conspiração do golpe estava o projeto de transformar o capitalismo brasileiro, cheio de resíduos econômicos não capitalistas, num capitalismo “de verdade”, isto é, que se enquadrasse no capitalismo multinacional que se desenvolvia no mundo após a Segunda Guerra Mundial.

O nacionalismo econômico brasileiro, que ganhara corpo e substância com a Revolução de Outubro de 1930, com Getúlio Vargas, entra em crise na década de 1950, especialmente com o suicídio de Vargas em agosto de 1954. O suicídio adiou o golpe para 1964, que reintroduzia o país na realidade da dominação externa e dependente. O golpe foi opção para negar ao Brasil um protagonismo histórico próprio e autônomo.

Um fenômeno paralelo, no qual se prestou pouca atenção, foi o surto religioso, evangélico, dos anos 1950. Na Guerra da Coreia, que resultou na divisão do país em duas Coreias, teve uma função importante para barrar a expansão do comunismo chinês. Apesar de quase metade da população coreana não manifestar confissão religiosa, o protestantismo passou o budismo e chega a quase 20% da população.

Os americanos descobriram as religiões evangélicas como força política auxiliar da geopolítica de sua dominação. O Brasil tornou-se um dos mais importantes laboratórios dessa inovação política. Juntar a urna das eleições com o gazofilácio do dízimo das igrejas barateou a guerra ideológica. Criou uma modalidade de ascensão social e de dominação política tentadora, sobretudo para a classe média. Viabilizou a tirania econômica neoliberal de Milton Friedman, que reconhecia que ela só funciona em regime político autoritário.

Os coadjuvantes religiosos do regime bolsonarista fazem parte desse sistema. Nesse sentido a coragem dos processos, dos inquéritos e das comissões parlamentares de inquérito podem restituir ao Brasil a soberania que o autoritarismo usurpador substituiu pela técnica antidemocrática das “fake news” e da boçalidade. É nossa chance de voltarmos a ser brasileiros de verdade, não os de roupa íntima verde-amarela. Não a bandeira para assoar o nariz.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

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