domingo, 10 de março de 2024

Luiz Carlos Azedo - Lula e o americanismo na vida brasileira

Correio Braziliense

O American way of life serve de espelho para a maioria da população. Não apenas a elite econômica e a classe média, mas também a grande massa de periferias e favelas

A complexidade das relações do Brasil com os Estados Unidos é determinada historicamente por nossa condição geopolítica na América do Sul, o republicanismo, a vocação agroexportadora e industrial e a influência cultural do modo de vida americano na vida urbana. Antes mesmo da independência do Brasil, quando as relações com os EUA se estabeleceram diplomaticamente, alternamos períodos de tensão por razões comerciais ou políticas, como na Inconfidência, na Confederação do Equador e nos governos Vargas e João Goulart, e momentos de estreita cooperação, maior até do que deveria, como na Primeira República, no governo Dutra e nos primeiros anos do regime militar.

No momento, as relações são boas entre o governo Lula e o governo Biden, mas podem se deteriorar em função do cenário político internacional. Ucrânia, Gaza, Venezuela, Nicarágua, são os pontos de maior fricção, mas o que pode complicar ainda mais as relações é uma eventual derrota dos democratas e a volta ao poder de Donald Trump, aliado de primeira hora do ex-presidente Jair Bolsonaro. Entretanto, a influência cultural do americanismo, desde a entrada na II Guerra Mundial (1939-1945), ao lado dos Aliados, independe dessas relações políticas conjunturais.

O American way of life serve de espelho para a maioria da população. Não apenas a elite econômica e a classe média, cujos padrões de consumo emulam os norte-americanos, mas também a grande massa dos subúrbios, periferias e favelas, que hoje consome o que pode para reproduzir o mesmo estilo de vida, haja vista a forte influência do hip hop e do fank entre os jovens, o “identitarismo” de movimentos sócio-políticos” de negros, mulheres e LGBTQIA+ e a forte reação conservadora pentecostal, que esses comportamentos provocam, tanto aqui quanto lá.

É preciso compreender a essência do americanismo, que se consolidou como modo de vida hegemônico após a crise de 1929 e a Grande Depressão. No final do século 19, principalmente depois da I Guerra Mundial (1914-1918), os Estados Unidos lideraram o desenvolvimento industrial e passaram a ser o centro da economia mundial. É um modo de vida que surgiu associado ao taylorismo, como modelo de organização do trabalho, e ao fordismo, um novo padrão de acumulação de capital, que possibilitava o aumento da renda dos trabalhadores, sem as amarras e resquícios do absolutismo e da servidão que caracterizaram os primórdios do capitalismo na Europa e outros países de passado feudal. No nosso caso, essas amarras são heranças do colonialismo e da escravidão.

Modernidade líquida

Ao combinar organização do trabalho e empreendedorismo, o taylor-fordismo foi a base do American way of life, cuja tradução literal é estilo de vida americano, e se consolidou com toda a força após a Segunda Guerra Mundial. O modelo americano se impôs como referência de bem-estar para os países capitalistas ocidentais e asiáticos. Numa sociedade com pleno emprego, todos os sonhos poderiam ser realizados, com base no consumismo, na padronização social e na crença nos valores democráticos liberais. Vendido através dos filmes e do marketing de suas empresas, durante a Guerra Fria também foi uma arma ideológica e cultural contra antiga União Soviética e o comunismo. A exclusão dos afrodescendentes dos direitos civis e a histeria anticomunista promovida pelo macarthismo foram a face mais perversa da moeda.

No plano político e ideológico, se o americanismo foi uma resposta capitalista bem-sucedida à esquerda revolucionária e ao modelo do “socialismo real”, hoje as suas bases objetivas, a grande indústria mecanizada e o fordismo, acabaram ultrapassadas pelos novos sistemas de produção flexíveis, a automação, a robotização e outros elementos da revolução tecnológica em curso no mundo. Isso desestruturou as classes sociais da sociedade industrial e criou uma sociedade pós-moderna, líquida e volátil, como destacou o filósofo Zygmunt Bauman (1925-2017) ao definir o mundo globalizado.

Assim como o capitalismo nos seus primórdios, essas mudanças desorganizaram todas as esferas da vida social, do amor ao trabalho, pois o sujeito sociológico moderno, com forte identidade de classe, é um ser em extinção. Os indivíduos passaram a ser moldados e a moldar o mundo de acordo com a sua personalidade. O estilo de vida, aquilo e o modo como consome, o deslocamento fácil e rápido, e a mudança na forma de trabalho, com redução de salários e insegurança no emprego, a “uberização” e o empreendedorismo, são as novas bases sociais e econômicas do americanismo.

Fluidez, movimento e imprevisibilidades agora são as características da vida em sociedade e vem tendo forte impacto na política. No nosso caso, o fato de a China ter tomado o lugar dos Estados Unidos como principal parceiro comercial não deve alimentar ilusões de que podemos atrelar o nosso desenvolvimento ao capitalismo de estado, fora dos marcos da democracia representativa e do americanismo. O resultado dessa equação seria o autoritarismo. Muito menos, trocar o Ocidente pelo Oriente nas relações internacionais, por causa dessa balança de comércio exterior. O que está acontecendo na política brasileira reflete as circunstâncias das mudanças no mundo, que precisam ser mais compreendidas. Até porque, se esse for o novo caminho a trilhar, uma eventual derrota de Biden terá consequências catastróficas para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

 

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