Correio Braziliense
Há um pacto de silêncio entre Lula e os
comandantes militares, que proibiram as comemorações nos quartéis do golpe de
1964, enquanto golpistas prestam contas à Justiça
É preciso fugir ao senso comum e ao passado
imaginário para ter um novo olhar sobre o dia 31 de março de 1964. O regime
militar que ali se instalou somente se encerrou com a eleição de Tancredo
Neves, em 1985, e a bem-sucedida transição à democracia presidida por José
Sarney, cujo coroamento foi a promulgação da Constituição de 1988. Desde então,
temos uma democracia representativa de massas, de caráter social-liberal. Não é
pouca coisa a preservar.
Um velho amigo, o sociólogo Caetano Araújo, consultor do Senado, a propósito da polêmica sobre se o governo Lula deveria comemorar ou não o golpe de 1964, fez uma sensata separação entre a verdade e a Justiça, que não são mesma coisa, embora devam caminhar juntas. É verdade que os órgãos de segurança cometeram crimes hediondos, sobretudo no caso dos desaparecidos, mas a aprovacão da anistia em 1979, que não foi exatamente como os militares queriam, foi o grande pacto entre o governo e a oposição que deu início efetivo à ultrapassagem pacífica do regime autoritário.
Era a justiça possível, como correu em outras
transições complexas da época. O Chile até hoje convive com uma
constitucionalidade herdada do governo de Augusto Pinochet. O Uruguai promoveu
um plebiscito que anistiou os militares. A Argentina puniu seus ditadores,
depois do desastre das Malvinas, mas também motoneros e militantes do ERP
envolvidos em crimes de sangue. Na África do Sul, sob liderança de Nelson
Mandela, a Comissão da Verdade promoveu uma reflexão para que o passado do
apartheid não se repetisse, não teve papel criminal.
Seguiram o rastro da Espanha, profundamente
dividida desde a década de 1930. Após a morte de Franco, em meio à crise
econômica e social, sem a mínima estrutura democrática, com apoio do rei Juan
Carlos I, Adolfo Suarez abriu o diálogo entre esquerda, centro e direita. No
Palácio la Moncloa, em 1977, em Madri, todos os partidos assinaram um pacto no
qual predominava a preocupação econômica, mas que abarcava previdência,
trabalho, liberdade, direito, energia, defesa e educação. A Espanha tornou-se
uma democracia sólida, que sobreviveu à tentativa de golpe militar de 1981.
“Por quem os sinos dobram” (Bertrand Brasil),
de Ernest Hemingway, que lutou como voluntário nas Brigadas Internacionais, é
uma grande história de amor, tendo por referência a experiência pessoal do
escritor na Guerra Civil Espanhola. Entretanto, narra a extrema violência das
tropas de ambos os lados: os nacionalistas, auxiliados pelo governo italiano e
nazista alemão, e os republicanos, apoiados pelas brigadas e a União Soviética.
O livro é inspirado no poema “Meditações”, do pastor e poeta John Donne: “Quando
morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade”. Empresta o
título à coluna.
Mortos e desaparecidos
Sim, os sinos hoje dobram por 434 mortos e desaparecidos, vítimas do regime
militar, a maioria dos quais na tortura ou executados em confrontos simulados
com os órgãos de repressão. Mas também dobram por cerca de 119 mortos pelos
grupos armados que se opuseram à ditadura. E quatro militantes de esquerda que
foram executados pelos próprios companheiros. Não eram “cachorros”. Qualquer
tentativa de ajuste de contas punitivo com esse passado é um equívoco. Isso não
significa confinar essa memória ao culto doméstico dos familiares de mortos e
desaparecidos.
A radicalização política que antecedeu o
golpe de 1964 dividiu profundamente a sociedade, inclusive as classes sociais e
as famílias. Nem tudo foi fruto da “guerra fria”. Havia, como há ainda, um
ambiente de iniquidade social propício. E também uma visão de ambos os lados de
que as coisas se resolveriam pela força bruta do Estado e não pela sociedade,
por via democrática.
A esquerda deveria se perguntar: por que
Juscelino Kubitscheck e Ulyssses Guimarães apoiaram o golpe? A resposta é
simples: foram empurrados para os braços de Carlos Lacerda e Magalhães Pinto,
que empunharam a bandeira da democracia contra o radicalismo de esquerda. Os
militares deveriam também se perguntar: por que Juscelino e Ulysses passaram à
oposição, logo após o golpe de 1964? Outra resposta simples: o regime cancelou
as eleições e derivou para uma ditadura sanguinária.
Existe um fio de história que liga os
acontecimentos de 1964 aos dias atuais, que passa pelas reformas de base na
marra, a luta armada, o voto nulo, o não apoio a Tancredo Neves, a rejeição ao
Plano Real e o fracasso do governo Dilma Rousseff: o voluntarismo e a
frustração de esquerda porque a queda da ditadura não se confundiu com a
revolução.
Outro fio de história liga a frustração dos
militares que ingressaram na carreira quando era uma via de ascensão ao poder
político, cuja recidiva se deu no governo Bolsonaro, à tentativa de golpe de 8
de janeiro da extrema direita bolsonarista, inspirada no passado imaginário do
regime militar: a mentalidade de que às Forças Armadas cabe tutelar a nação,
por representar “o povo em armas”.
A polêmica sobre a decisão do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva de não relembrar oficialmente o golpe militar de 31 de
março de 1964 é fruto dessas vicissitudes históricas. De fato, há um pacto de
silêncio entre Lula e os comandantes militares, que proibiram as comemorações
nos quartéis, enquanto generais e outros oficiais golpistas prestam contas à
Justiça comum, fato inédito na história.
Entretanto, a sociedade não está proibida de
reverenciar seus mortos, como fizeram os professores da Faculdade de Direito de
Niterói (UFF), ao propor o título de Doutor Honoris Causa ao seu ex-aluno
Fernando Santa Cruz, sequestrado e assassinato em 1974, depois de diplomá-lo
bacharel post mortem.
Pois é.
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