terça-feira, 5 de março de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo - Proezas e achaques dos fluxos de capitais

Valor Econômico

Os ‘money doctors’ recomendam que a valorização-desvalorização da moeda não conversível seja mitigada pelos emplastros do equilíbrio fiscal

Na última sexta-feira (1º), Luque, Silber, Luna e Zagha ofereceram o artigo “O enigma do investimento direto no país“ aos leitores do Valor. Os autores desfiam argumentos bem fundamentados para avaliar a natureza dos capitais que, sob os auspícios da abertura e desregulamentação financeiras, alternam entradas e saídas dos países emergentes.

Escolhi um parágrafo: “Relatórios recentes do FMI observam que os recursos captados no exterior aumentam a liquidez das empresas, mas não suas inversões. Como já observamos neste espaço, isso não é surpresa. Quando a capacidade ociosa é ampla, qual seria a razão para aumentá-la ainda mais? Mas, se a diferença entre juros internacionais e domésticos for alta, é vantajoso se endividar no exterior a taxas menores que têm vigorado nos últimos anos e aplicar esses recursos no mercado financeiro doméstico”. Bingo!!!

Sujeitos às mudanças de humor dos capitais financeiros em livre movimento, os emergentes sacodem o esqueleto entre as ilusões do otimismo e as decepções das “paradas súbitas”. Na euforia, as bolsas comemoram e a taxa de câmbio detona a competitividade da manufatura. Quando sobrevém o pessimismo, as consequências são funestas: desvalorizações agudas do câmbio, balanços “avermelhados” das empresas e bancos que se endividaram em moeda estrangeira, choque inflacionário, queda de salários reais e recessão.

“Money Doctors“: assim eram chamados os conselheiros a serviço da “haute finance” que perambulavam pela periferia entre o último quartel do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Leio e ouço na mídia tupiniquim as opiniões de conhecidos e reputados “money doctors” da nova geração, aviando receitas para os achaques do câmbio. Recomendam que as intermitências valorização-desvalorização da moeda não-conversível tenha seus incômodos mitigados pelos emplastros do equilíbrio fiscal.

Entre os dissidentes - como os autores supracitados - há quem atribua os surtos de valorização-desvalorização das moedas inconversíveis aos investidores abastecidos de liquidez em moeda forte que buscam escapar dos baixos rendimentos oferecidos nas economias centrais. Na opinião desses amaldiçoados, em tais circunstâncias, os gestores da riqueza líquida aceleraram o carry-trade entre as modestas taxas de juro dos países desenvolvidos e as confortáveis e recompensadoras remunerações dos mercados emergentes.

Os doutores mais ousados da corrente dominante chegam a desconsiderar a existência de relações entre juros e câmbio em uma economia aberta e exposta aos movimentos de capitais. Em suas recomendações, ignoram a reiteração de episódios de “fuga de capitais” e advertem que os juros refletem o risco fiscal e, assim, a política monetária deve empenhar forças para enfiar a inflação na meta.

Vamos recordar: as economias emergentes, no início dos anos 1990, açoitadas pela alta inflação, encontraram a mezinha capaz de curar suas agruras. É preciso esclarecer que o Brasil - até então machucado pelas dores da crise da dívida externa - passou da condição de doador para receptor de recursos financeiros. Isso foi possível graças à deflação da riqueza mobiliária e imobiliária observada já no final de 1989 nos mercados globais.

A recessão americana, que se prolongou até meados de 1992, e o “estouro” da bolha especulativa japonesa foram fatores que exigiram grande lassidão das políticas monetárias com o propósito de tornar possível a digestão dos desequilíbrios correntes e do balanço patrimonial de empresas, bancos e famílias, atingidos pelo colapso do exuberante surto de valorização de ativos que se seguiu à intervenção salvadora de 1987.

Ao estado quase depressivo dos mercados de qualidade e à situação de sobre liquidez, causada por um período prolongado de taxas de juros muito baixas, juntou-se um quadro, nos mercados emergentes latino-americanos, de estoques de ações depreciados, governos fortemente endividados e proprietários de empresas públicas privatizáveis distribuídas por vários setores da economia, além das perspectivas de valorização das taxas de câmbio e da manutenção de taxas de juros reais elevadas, em moeda forte, mesmo depois da estabilização.

No momento da reforma monetária empreendida pelo exitoso e bem concebido Plano Real, as reservas já eram superiores a US$ 40 bilhões, um nível correspondente a 18 meses de importação e mais do que suficiente para amparar a fixação do câmbio como instrumento da política de estabilização. Até a crise de 1998/99, as reservas chegariam a US$ 70 bilhões, sustentando e renovando a aposta na ancoragem cambial.

A regra básica das estabilizações com abertura financeira é a da criação de uma oferta de ativos atraentes. Neste rol estão incluídos títulos da dívida pública, em geral curtos e de elevada liquidez; ações de empresas em processo de privatização; bônus e papéis comerciais de empresas e bancos de boa reputação; e posteriormente, ações depreciadas de empresas privadas, especialmente daquelas mais afetadas pela abertura econômica, valorização cambial e taxas de juros altas.

Diante da fragilidade intrínseca das moedas recém-estabilizadas, estes ativos precisavam prometer elevados ganhos de capital e/ou embutir prêmios de risco em suas taxas de retorno. Cria-se assim uma situação na qual a rápida desinflação é acompanhada por uma queda muito mais lenta das taxas nominais de juros. As taxas reais não podem ser reduzidas abaixo de determinados limites estabelecidos pelos spreads exigidos pelos investidores estrangeiros para adquirir e manter em carteira um ativo denominado em moeda fraca, artificialmente valorizada.

A desvalorização do real em 1999 e a adoção de um regime de câmbio flutuante se aliaram às benesses da demanda chinesa de commodities e aos benefícios do dinamismo do agro para elevar o saldo comercial - um movimento lento entre 1999 e 2001 e mais rápido a partir de 2002. Impulsionado pela demanda chinesa de commodities e amparado em uma política econômica prudente, o Brasil acumulou cerca de US$ 380 bilhões em reservas (hoje em torno de US$ 355 bilhões).

Os “hermanos” se debatem nos torvelinhos das reservas minguadas, fuga da moeda nacional e, desgraçadamente, desatinos político-econômicos.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da Universidade Federal de Goiás.

 

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