O Estado de S. Paulo
Ao confirmar a minuta do golpe, Freire Gomes
entregou à Polícia Federal informações contra o ex-presidente com o peso de
terem sido fornecidas por quem comandou a Força Terrestre
O depoimento do general Marco Antonio Freire Gomes à PF é visto como o
“tiro de misericórdia” contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. Não só pelas
informações que revela, esclarece ou confirma, mas também pelo significado que
tem a palavra do ex-comandante do Exército. Ela traz parte do peso
institucional da voz do Grande Mudo da República. E a expectativa de ser o fim
da agonia para a Força Terrestre.
Freire Gomes confirmou não só a discussão sobre a “minuta do golpe” com
Bolsonaro e a participação em reuniões no Palácio do Planalto, onde
a tentativa de subverter a ordem democrática era planejada. Ele corroborou o
depoimento do tenente-coronel Mauro Cid, chefe da Ajudância de Ordens da
Presidência da República, que assinou um acordo de delação com a
Polícia Federal.
Cid atualizava o general sobre as discussões no Planalto. Às 15h30 do dia 9 de dezembro de 2022, ele contou que Bolsonaro fora pressionado “por vários atores a tomar uma medida mais radical”: as prisões dos ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do STF, além do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O tenente-coronel asseverou, no entanto, que Bolsonaro permanecia “na linha do que fora discutido com os comandantes das Forças e com o ministro da Defesa (Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira)”. “Hoje, ele mexeu muito naquele decreto, né. Ele reduziu bastante. Fez algo mais direto, objetivo e curto e limitado.”
Ouvido como testemunha, o general respondeu a
todas as perguntas durante mais de oito horas. Contou que não desmontou os
acampamentos em frente ao Exército por causa de Jair Bolsonaro. O general vivia
um drama pessoal. Sua mãe, Maria Freire Gomes, estava enferma ao mesmo tempo em
que o filho enfrentava outra situação que o deixava atormentado: as pressões do
governo para que embarcasse em uma aventura. Gomes sabia que a maioria ordeira e silenciosa no Exército era contrária
à bagunça institucional, que levaria à divisão da instituição, tão
necessária ao golpe.
Em agosto de 2022, Freire Gomes pediu aos
subordinados que os contatos com jornalistas, empresários e políticos ficassem
restritos. Tentava afastar o Exército do ambiente polarizado da campanha
eleitoral e fechar as portas dos quartéis para as vivandeiras que rondaram os
bivaques em 2018. Em novembro, viu-se enredado no movimento nascido entre bolsonaristas que
tinha o objetivo de emparedar Luiz Inácio Lula da Silva: passar o comando das
Forças aos indicados pela nova gestão ainda sob Bolsonaro, como
forma de mostrar que ninguém prestaria continência ao “ladrão”, como então se
referiam ao presidente eleito.
No Planalto, acusavam o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, então
comandante da Aeronáutica, de ter deixado vazar a informação, o que fez
fracassar a trama – só o comandante da Marinha, Almir
Garnier, que teria se colocado à disposição do golpe, se recusaria a comparecer
à posse de seu sucessor, o almirante Marcos Olsen. Houve ainda a carta dos
comandantes das Forças, em 11 de novembro, na qual diziam condenar excessos nas
manifestações após o voto bem como as restrições à liberdade de expressão dos
manifestantes que se aglomeravam então em frente aos quartéis.
O documento parecia dar aval aos que pediam a
“intrervenção militar”. Freire Gomes afirmou que os acampamentos não foram
desfeitos em razão de Bolsonaro. No dia 29 de dezembro, o comandante militar do
Planalto, general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, mandou desmontar as barracas
em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília. Não avisou
Freire Gomes. Quando soube da ação do subordinado, Gomes telefonou para Dutra e
o chamou de “maluco”. E cancelou a ordem.
É que o comandante tinha receio de que
Bolsonaro usasse o incidente para justificar uma ruptura. Ou nomear outro
general para seu lugar, que decidisse levar adiante o plano do golpe. Seus
colegas de Alto Comando do Exército (ACE) sabiam que Freire Gomes não estava
entre os mais decididos apoiadores da ideia de se garantir a legalidade, mas
confiavam que ele se manteria com a maioria. De fato, 11 dos 16 generais do ACE
não admitiam a hipótese de uma ruptura institucional para impedir a posse de
Lula.
Os companheiros de Freire Gomes afirmam agora
que, se ele entregasse Bolsonaro à Justiça ou denunciasse o golpe, não teria
como provar a trama e seria ele mesmo destituído. Mesmo assim, há quem fale em
omissão do general, que ao saber do intento urdido no Planalto, teria o dever
de procurar o Ministério Público. Do ponto de vista legal, o desembargador aposentado Walter Maierovitch
afirma que não. “A condição de subordinados do presidente
descaracteriza o crime. A questão hierárquica se impõe. Encaminhar ou não a
notícia-crime suscita apenas um debate ético ou ainda, moral, mas não o legal.”
Até as vésperas de seu depoimento, os
bolsonaristas tinham a esperança de envolver Freire Gomes na investigação. O
objetivo era um só: servir-se da figura institucional do ex-comandante para se
colocar atrás do biombo da instituição, vender a imagem de que todo o Exército
era o alvo da investigação da PF e, assim, poder contar com a solidariedade dos
quartéis. Todo mau militar busca essa manobra: a proteção dos pares, dos quais
empresta o respeito e a honra para suprir o que lhe falta.Não é à toa que
Bolsonaro nunca mais compareceu a solenidades de “seu Exército” depois que as
investigações começaram a revelar a trama de deslealdades e de ofensas
planejadas e executadas por antigos camaradas contra colegas, uma campanha que
não poupou nem mesmo as famílias de quem zelou pelo profissionalismo e pela
disciplina da tropa. De fato, o ex-presidente só é visto agora em solenidades da Polícia Militar
de São Paulo, Estado governado por Tarcísio de Freitas.
Bolsonaro sumiu das cerimônias da Academia
Militar da Agulhas Negras (Aman). Também não esteve no Comando Militar do Leste
quando o general André Luis Novaes de Miranda passou o comando ao
general Kleber Nunes de Vasconcellos – o general Walter Braga Netto,
cujo teor abjeto das mensagens para o major Ailton Barros ainda era
desconhecido, compareceu sozinho à cerimônia, no fim de 2023. Em situação não
muito diferente está o general Augusto Heleno, o homem que falava o que
não devia nas reuniões gravadas do Planalto e era repreendido por Bolsonaro.
E é melhor que seja assim, pensam os generais
ouvidos pela coluna. Eles questionam: imagina depois de todas as mensagens
reveladas o tamanho do constrangimento que seria ter em um mesmo palanque o
ex-presidente e o comandante do Exército, Tomás Miguel Ribeiro Paiva? Como olhar
na cara de Braga Netto depois que este chamou Freire Gomes de “cagão” e mandou
oferecer a cabeça do comandante aos leões? O que esperar do ex-comandante
diante da deslealdade em relação aos antigos companheiros?
Muita gente sabia que os artífices da
campanha difamatória contra os generais legalistas em novembro e dezembro de
2022 tinham informações privilegiadas do Planalto. Ou seja, as revelações da PF
apenas deram nomes aos bois. Agora, todos avaliam que o depoimento de Freire
Gomes deve abrir as portas da cadeia para Bolsonaro. Nenhuma surpresa. Para os
generais, o próprio ex-presidente e seus subordinados demonstravam ter
consciência de que cometiam ilegalidades quando diziam em mensagens saber que
seriam presos ou quando questionavam se as reuniões no Palácio estavam sendo
gravadas.
É cada vez mais forte na caserna o sentimento
de que o depoimento do ex-comandante deve acelerar também o fim das
investigações e sepultar de uma vez qualquer tipo de pensamento
intervencionista nas Forças Armadas. A instituição saiu arranhada depois de ser posta à prova pela
coincidência de Bolsonaro ter chegado ao poder em 2018, justamente no momento
em que seus colegas de turma e contemporâneos de AMAN dos anos
1970 ocupavam o Alto Comando do Exército. Muitos sabiam quem era o “Cavalão”,
mas os laços de camaradagem impediam de vê-lo como aquilo que ele sempre foi:
um mau militar.
Não se verá mais a Força Terrestre envolvida
com urnas eletrônicas, com cloroquina ou com os extremistas de direita. Mas,
para além de afastar os militares da política por meio do reforço da
profissionalização e do controle civil objetivo, seria importante, segundo
analistas ouvidos pela coluna, que a quarentena estudada pelo Congresso fosse aprovada. Ela deveria também
atingir outras carreiras de Estado, como a magistratura e o MInistério Público.
A República precisa preservar as instituições dos interesses políticos e
pessoais de alguns de seus integrantes, uns movidos pela vaidade, outros por
razões financeiras ou até mesmo pela obtenção de privilégios reservados ao
exercício do poder.
Texto magnífico!
ResponderExcluirMagnífico mesmo.
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