Valor Econômico
Os ex-comandantes não denunciaram golpismo do
ex-presidente, tampouco agiram para coibir a indisciplina interna, como a
leniência em relação à carta dos oficiais demonstra
Ficou mais difícil para o ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL) escapar da acusação de golpe de Estado e afronta ao Estado de
direito depois do conjunto de depoimentos cujo sigilo foi aberto pelo ministro
Alexandre de Moraes. Os ex-comandantes do Exército, Marco Antonio Freire Gomes,
e da Aeronáutica, Carlos Almeida Baptista Junior, foram determinantes para
evitar a reversão da ordem democrática, mas ainda não está claro se poderiam
ter evitado que o país tivesse chegado tão perto de um golpe como, de fato, aconteceu.
Foi Baptista Junior quem pintou de herói o general Freire Gomes ao dizer que o golpe só não aconteceu porque o ex-comandante não havia aderido. Confirmou ainda que o general havia ameaçado o ex-presidente Jair Bolsonaro com uma ordem de prisão, conforme antecipou o Valor em 21/9/2023, se ele tentasse o golpe. No seu depoimento, Freire Gomes se limita a dizer que advertiu o ex-presidente de que ele poderia ser responsabilizado penalmente se tentasse impedir a posse do então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva.
É possível que Freire Gomes tenha sido mais
comedido porque seu depoimento ainda deixa muitas perguntas sem respostas. O
general disse ter discordado da “Carta ao comandante do Exército de Oficiais
Superiores da Ativa do Exército”. Por que, então, não adotou medidas
disciplinares contra seus signatários, cuja identidade se mantém oculta até
hoje? Por que não mandou desfazer o acampamento em frente ao quartel-general do
Exército? No depoimento, ele disse não ter tido amparo jurídico para tanto. Não
teria dificuldade porém, em obter pareceres distintos que respaldassem o
rechaço ao uso de uma área de segurança nacional para manifestação política.
Em seu depoimento, o general Theophilo de
Oliveira, ex-chefe do Comando de Operações Terrestres do Exército, diz que foi
ao encontro de Bolsonaro três vezes no Palácio do Alvorada em obediência a
Freire Gomes, sendo duas delas na sua companhia. Indagado o que Theophilo lhe
reportara, Freire Gomes disse não se recordar.
Se Theophilo joga as idas ao Alvorada na
conta da disciplina e hierarquia militares, não explica por que Bolsonaro
“desabafara” com ele se previamente dissera aos policiais que o indagaram que
não tinha “relacionamento pessoal” com o ex-presidente. Além de telegráfico
sobre as idas de Theophilo ao Alvorada, Freire Gomes também parece pouco
convincente ao reportar a prestação de contas de Mauro Cid, ex-ajudante de
ordens de Bolsonaro, sobre o apoio de empresários ao golpismo. Limitou-se a
dizer que Cid fora proativo e lhe deu informações que não haviam sido
demandadas.
Nenhum dos inquiridores perguntou aos
ex-comandantes por que eles não haviam denunciado o golpismo do ex-presidente.
Muito provavelmente porque ouviriam deles que se o fizessem, teriam que deixar
seus postos, expondo o país a mais riscos. Baptista resumiu a atitude como uma
estratégia para “ganhar tempo”. Não deixa de ser verdade, mas os comandantes
tampouco agiram para coibir a indisciplina interna, como a leniência em relação
à carta dos oficiais demonstra.
É Baptista quem mais se aproxima desta
cobrança ao relatar que pedira ao então Ministro da Defesa, Paulo Sérgio
Oliveira, que avisasse ao ex-presidente que o coronel Marcelo Câmara, braço
direito de Bolsonaro, não deveria entrar em contato com o coronel Wagner
Oliveira da Silva, da Comissão de Transparência Eleitoral, para passar “achados
sobre fraudes”. O brigadeiro disse que Câmara deveria seguir a cadeia de
comando na relação com a comissão que estava sob a égide das três Forças.
O brigadeiro deixa o ex-ministro do Gabinete
de Segurança Institucional, general Heleno Ribeiro, em maus lençóis ao revelar
conversa que tiveram no Instituto Tecnológico da Aeronáutica. Nesta conversa,
por ocasião da formatura do neto do ex-ministro, conta que Heleno teria ficado
atônito quando ele pediu que fosse reportado ao ex-presidente seu rechaço a uma
investida contra a posse de Lula.
O momento mais frágil do depoimento de
Baptista é quando, indagado por que não havia sido divulgado o relatório da
comissão de transparência eleitoral depois do primeiro turno, disse ter havido
determinação para não fazê-lo. Só não sabe de quem. Freire Gomes foi igualmente
lacônico, ao dizer que o resultado da comissão não fora divulgado porque não
haviam sido identificadas irregularidades.
Ao dar publicidade ao relatório depois do
segundo turno, o MD afirmou que “embora não tenha apontado, também não havia
excluído a possibilidade de existência de fraude ou inconsistência nas urnas
eletrônicas no processo eleitoral de 2022”. Nem Baptista nem Freire Gomes são
críticos à atuação do então ministro da Defesa, Paulo Sergio Oliveira, no
persistente questionamento das urnas eletrônicas.
Os depoimentos parecem suficientemente
incriminadores do ex-presidente Jair Bolsonaro numa tentativa de golpe de
Estado, mas é possível que a acusação possa vir a ser reforçada se os militares
que ficaram em silêncio resolverem falar. A defesa do coronel Marcelo Câmara,
por exemplo, já manifestou interesse numa delação.
Além de Câmara, permaneceram em silêncio o
general Mario Fernandes, ex-secretário-executivo da Secretaria-Geral da
Presidência, o coronel Bernardo Romão, à época assistente do Comando Militar do
Sul, além do general Heleno e do almirante Almir Garnier. O ex-comandante da
Marinha é reportado tanto por Baptista quanto por Freire Gomes como o mais
aderente aos planos de Bolsonaro.
Entre os civis, permaneceram calados o
ex-assessor internacional de Bolsonaro Filipe Martins, que seria o artífice da
segunda minuta de golpe, aquela que propõe a decretação de um Estado de Sítio,
além de Tércio Arnaud, também assessor de Bolsonaro, que optou por silenciar
ante as perguntas mais comprometedoras.
O foco desta fase do inquérito é a
participação de militares na trama golpista que antecedeu a posse de Lula. Se a
investigação caminhar para apurar a conivência militar no 8 de janeiro, outros
nomes, como o ex-comandante militar do Planalto Gustavo Henrique Dutra ou mesmo
o ex-comandante do Exército general Julio Cesar Arruda, que sucedeu a Freire
Gomes, podem entrar na roda. Arruda foi demitido por Lula por insistir na
nomeação de Mauro Cid para o comando do estratégico Batalhão de Ações de
Comando de Goiânia.
Concluído o inquérito sobre a participação
dos militares, restará saber que atitudes o comandante em chefe, o presidente
Lula, além dos atuais comandantes, terão para evitar que as Forças Armadas
voltem a ser contaminadas da mesma forma pelo golpismo. A punição dos
signatários da carta ao ex-comandante do Exército, nos termos do Estatuto dos
Militares e do regimento interno, poderia ser um caminho.
A dúvida que fica é como se posicionaria a
Justiça Militar ante a recente sessão que foi suspensa depois de dois votos
pela absolvição de militares que alegaram legítima defesa como motivação para o
fuzilamento com 257 tiros do músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo,
ambos desarmados.
Pois é.
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