O Estado de S. Paulo
Sob pretexto de cuidado com o Brasil, podemos estar reféns de mensagens que distorcem nossa percepção sobre a realidade do País
Não raro, vem um sentimento de indignação e
de tristeza a respeito dos rumos do País. Chegam-nos notícias sobre mau uso de
recursos públicos, decisões contraditórias do Supremo Tribunal Federal (STF) ou
atos do governo federal que nos parecem repetição de erros passados. Tudo isso
nos abate. Muitas vezes, nem sequer são notícias propriamente ditas, mas
mensagens compartilhadas pelo WhatsApp, cuja origem não sabemos ao certo. No
entanto, mesmo sendo pouco confiáveis, elas também afetam nosso estado de ânimo.
Não só frustrados. Sentimo-nos enganados, feridos em nossa cidadania.
Depois, esse sentimento reflete-se nas conversas familiares, nos ambientes profissionais, nos círculos sociais. De forma espontânea, acabamos falando de assuntos sobre os quais temos objetivamente pouco conhecimento, mas que nos revoltam internamente. Daí surgem discussões, atritos, novas incompreensões, o que alimenta a frustração. O País com o qual sonhamos está distante não apenas nas decisões de Brasília, mas na própria mesa de jantar ou no grupo dos amigos da faculdade.
É um panorama asfixiante, mas não porque tudo
esteja indo mal e não exista uma saída possível. A avaliação simplista de terra
arrasada não é bom retrato da realidade, que sempre tem matizes e contrastes. É
asfixiante principalmente porque nos vemos presos a uma teia de assuntos que,
não sendo necessariamente os mais importantes, fisgam nossa cabeça – e nossa
língua.
O modo de consumo da informação nos dias de
hoje causa uma fragilidade. Sob o bombardeio seletivo de mensagens e vídeos que
nos chegam pelas redes sociais ou pelo WhatsApp, é muito fácil perder a visão
de conjunto ou avaliar mal a relevância de cada tema. E pior: este emaranhado
de informações – quase sempre sem acurácia e sem contexto – molda nossas
preocupações. É um fenômeno paradoxal: em vez de nos fortalecerem, as novas
tecnologias deixam-nos muitas vezes mais expostos ao erro, mais reativos, menos
autônomos.
Non ducor, duco (não sou conduzido, conduzo)
diz o lema latino inscrito no brasão da cidade de São Paulo. Não sejamos
conduzidos pelo que chega até nós. Não deixemos que outros determinem quais
serão as nossas preocupações, ou sobre quais assuntos versarão nossas
conversas. Trata-se de um aspecto essencial da autonomia no mundo
contemporâneo: as preocupações de cada um devem decorrer das suas prioridades,
e não do que lhe chega pelo WhatsApp.
Recomenda-se atenção. Sob pretexto de cuidado
com o Brasil e com o interesse público, podemos estar reféns de mensagens que,
valendo-se de dados verdadeiros, mas incompletos, distorcem nossa percepção
sobre a realidade social, política e econômica do País. Esta é a velha
estrutura dos sofismas: verdade aparente, erro oculto.
Certamente, muitas notícias geram indignação,
e podemos e devemos falar sobre elas. Mas, se elas se tornam o carro-chefe das
nossas conversas, isso significa que deixamos de conduzir o que nos preocupa e
inquieta. Nossa agenda mental está sendo determinada por outros. Non ducor,
duco.
Existe ainda outro problema. Nossa
preocupação com o coletivo é rasteira e de curto prazo – superficial –, se
estiver guiada pelos trending topics do momento. O debate público está repleto
de falsas questões, lugares-comuns, indignações artificiais e problemas
inventados (ou distorcidos) por interesses políticos.
Autonomia é falar dos nossos sonhos, do que
queremos deixar de legado para as futuras gerações. Quais são nossas
prioridades para o País, para nossa cidade, para nossa área de atividade
profissional? É isso o que deve guiar as nossas conversas, e não o vídeo com
trechos recortados de uma sessão do STF de cinco anos atrás.
Exercer o protagonismo sobre a nossa agenda
mental é mais do que mero voluntarismo. Exige estudo, diálogo, reflexão.
Conhecemos a fundo os três ou os cinco temas que nos parecem vitais para a
sociedade e para o Estado brasileiro? Sabemos elaborar um diagnóstico de cada
um deles, indicando o que avançou nos últimos anos, o que foi feito e o que não
se fez? Somos capazes de formular um prognóstico realista, com medidas
factíveis para o curto, o médio e o longo prazos?
Temos pouco a contribuir falando de assuntos
que não dominamos – sobre os quais temos um conhecimento superficial e seletivo
–, simplesmente porque estamos indignados com eles. É uma bela forma de ser
conduzido, de ser manada. Ao contrário, temos muito a contribuir se, a partir
da nossa experiência profissional e da nossa área de conhecimento, procuramos
olhar para os problemas concretos do Brasil, pensando e construindo
coletivamente alternativas e soluções.
Há muito a fazer pela coletividade. Não
podemos desperdiçar nossas energias e talentos com questões sobre as quais
temos pouquíssimo controle e cujo debate produz apenas irritação e desânimo. A
preocupação com o futuro do País não é atividade estéril. A depender de como se
trilha, pode gerar muitos frutos. Mas, para isso, é preciso não se deixar
dominar no núcleo mais íntimo da autonomia: em nossa cabeça, em nosso mundo
interior.
*Advogado
Excelente, texto muito bem pensado. Repito um pedaço que julgo sintetizar o artigo: "as preocupações de cada um devem decorrer das suas prioridades"!
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