quarta-feira, 27 de março de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Socorro a estados é prêmio para má gestão

Folha de S. Paulo

Dívidas de entes federativos, que já têm juros favorecidos, serão de novo revistas; contribuinte brasileiro pagará conta

Pela enésima vez, os estados conseguirão renegociar suas dívidas com a União. Segundo o acordo preliminar negociado com o governo federal, a taxa de juros acima da inflação que incide sobre esse passivo pode baixar de 4% ao ano para até 2%, se os governos estaduais cumprirem metas de ampliação de vagas no ensino técnico.

Caso eles consigam abater o valor do principal da dívida, por meio da entrega de ativos como empresas estatais ao Tesouro, a taxa pode diminuir mais, de 0,5 a 1 ponto percentual. A taxa real de juros no país é de cerca de 6% anuais.

Há meses que entes federativos lançaram nova campanha a fim de não pagar o que devem. Fazem parecer que são espoliados, que não podem investir ou cuidar das necessidades da população por causa de pagamentos que seriam injustos, indevidos ou até ilegais.

Ameaçavam mais uma vez levar o tema à Justiça e tentavam obter novos favores do Congresso.

Tal dívida resulta de um grande socorro federal, negociado entre 1997 e 2000, que beneficiou em especial Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo. A União assumiu as compromissos dos estados, quebrados por endividamento e má gestão generalizada.

A taxa de juros do socorro era então caridosa para a época, de 6% ao ano. Em troca, as administrações foram impedidas de emitir títulos. A autorização para contrair dívidas por outros meios passou a depender de regras mais rígidas e de garantias federais.

O endividamento diminuiu, mas desde fins da primeira década do século os estados passaram a se queixar de que o socorro federal era insuficiente. Com apoio de administrações petistas, passaram a tomar mais empréstimos.

Criaram artimanhas para maquiar o gasto com pessoal e não fizeram reformas previdenciárias. Na grande onda de aumento de arrecadação que ocorreu até 2014, elevaram despesas permanentes.

Concederam favores a empresas, na guerra fiscal. Governo federal e Congresso relaxaram restrições de endividamento; a Justiça acolheu a ofensiva contra os passivos.

Com a crise iniciada em 2014, gestões mais perdulárias, como as de Rio, Minas e Rio Grande do Sul, tinham dificuldades para arcar com despesas —das comezinhas, como a troca de pneus de carros da polícia, ao salário de servidores.

A arenga funcionou. Houve reduções de taxas de juros ou perdões a partir de 2014 e um novo regime de recuperação fiscal para os falidos. Os estados mais bem geridos pagam também a conta.

A União —ou seja, o contribuinte brasileiro— perderá receitas, e sua dívida aumentará. Mais uma vez se passa a mensagem de que a má gestão será premiada.

Ensino atrasado

Folha de S. Paulo

Governos devem sanar distorção entre série e idade, que piorou com a pandemia

A defasagem entre a idade dos alunos e a série que eles cursam é um problema histórico da educação brasileira, que a pandemia de Covid-19 agravou ainda mais.

É necessário, portanto, que o poder público esteja atento e desenvolva estratégias para diminuir os efeitos perniciosos que essa distorção gera no aprendizado.

Uma das metas do Plano Nacional de Educação (PNE), de 2014, era manter o patamar mínimo de matrículas de crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos no ensino fundamental em 95% até 2024.

Contudo, segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) Educação, divulgada na sexta (22), em 2023, 94,6% desse estrato estava inscrito nessa que é a etapa correta do ensino para a referida faixa etária.

É a primeira vez, desde o início da série histórica em 2016, que o nível fica abaixo de 95%. Os números mostram que a crise sanitária iniciada em 2020 interrompeu uma trajetória ascendente.

Em 2016, o índice era de 96,7%, e atingiu 97,4% em 2018. Já em 2022, caiu a 95,2% até chegar ao atual, abaixo do objetivo do PNE.

Devido à pandemia, alunos da educação infantil (crianças de 4 e 5 anos) atrasaram a entrada no sistema de ensino. Com o fim da quarentena, aquelas de 6 ou 7 anos, que deveriam estar nas primeiras séries do ensino fundamental, acabaram matriculadas na etapa anterior.

De acordo com a Pnad, em 2019, 11% das crianças de 6 anos estavam na pré-escola. No ano passado, o número saltou para 29%.

A distorção entre série e idade tende a provocar uma reação em cadeia, pois pode desestimular os estudos, elevando assim as taxas de reprovação e de evasão escolar.

Levantamento de dados do Inep, ligado ao Ministério da Educação, feito pela Fundação Itaú mostrou que 48% das pessoas nascidas entre 2000 e 2005 não concluíram o ensino fundamental na idade correta; no ensino médio, foram 59%.

Governos em todas as esferas devem monitorar a situação e criar planos para sanar esse efeito nefasto da pandemia na educação, com acompanhamento pedagógico específico e aulas de reforço para os estudantes em defasagem.

Falta de dados tem prejudicado o combate à dengue

O Globo

Só foram confirmadas 40% das mortes suspeitas. Informação de qualidade é essencial para decisões

Dez estados, entre eles Rio e São Paulo, já decretaram emergência epidemiológica para a dengue, assim como as prefeituras de diversas cidades pelo país. A medida permite que prefeitos e governadores façam despesas na velocidade exigida pela evolução do contágio. Mas não é simples gerenciar uma crise na saúde pública dessa dimensão, agravada pela limitação da disponibilidade de vacinas.

Com quase 2,3 milhões de casos, a incidência da infecção quebrou o recorde na série histórica de dados do Ministério da Saúde. A contagem correta e atualizada da evolução do contágio é ferramenta essencial para os epidemiologistas administrarem o combate à doença. Tudo precisa ser feito para evitar pressão excessiva sobre o sistema de saúde e corrigir falhas no atendimento médico.

A maior preocupação entre os epidemiologistas hoje é o número elevado de mortes ainda “em investigação”. São classificadas assim aquelas que se acredita terem sido causadas por dengue, mas ainda não foram confirmadas pelas secretarias de Saúde. É verdade que houve melhora. Na semana passada, apenas 35% das mortes suspeitas haviam sido confirmadas. Pelos números mais recentes, já são quase 40%. Mesmo assim, ainda há muita dúvida. “Se somarmos os óbitos suspeitos com os confirmados, teremos mais mortes que no ano passado todo. Como é possível que os gestores tomem decisões se desconhecem a real gravidade da doença?”, diz o infectologista Julio Croda, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e da Fiocruz.

Numa epidemia, as estatísticas funcionam como os instrumentos de bordo de um navio ou avião, essenciais para a tripulação chegar ao destino com segurança. Sem os dados corretos, os gestores da crise operam em voo cego. Para dar a dimensão do problema, o epidemiologista Wanderson Oliveira, ex-secretário de Vigilância e Saúde do Ministério da Saúde, calcula que, a esta altura do ano passado, 82% do total de casos de dengue tinha desfecho conhecido. Hoje, a média dos casos encerrados é menos da metade. Entender a razão das mortes é fundamental. “Só assim será possível diagnosticar que não houve encaminhamento à hidratação ou que a equipe está sobrecarregada”, diz ele. A própria magnitude da epidemia e sua severidade continuam desconhecidas.

O Ministério da Saúde alega que “abastece os estados e municípios com testes para a detecção da doença”. E que a análise de óbitos é “cuidadosa e demorada”. Isso não resolve o problema. O Estado de São Paulo, que apresentava a mesma disparidade na semana passada, decidiu criar um comitê para apoiar a investigação sobre a discrepância dos números. “Temos um comportamento diferente neste ano, com a antecipação das chuvas e o aumento da temperatura”, afirma Tatiana Lang D’Agostini, diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE) do Estado de São Paulo.

Na deficiência de estatísticas, falham os três níveis da administração, federal, estadual e municipal. O Brasil dispõe de tecnologia, profissionais e competência para criar procedimentos ágeis e eficazes de acompanhamento da epidemia. É dever dos gestores da saúde saber usá-los.

Apagão no centro de SP exige cobrar mais eficácia da concessionária Enel

O Globo

Não é a primeira vez que moradores da maior cidade do país são submetidos a longos períodos sem luz

Os constantes apagões enfrentados por moradores de São Paulo nos últimos dias ultrapassaram o limite do razoável. Assim como as desculpas apresentadas pela concessionária Enel para justificar as interrupções. Em bairros da região central da cidade, a falta de luz, que começou na manhã da segunda-feira, dia 18, se estendeu por mais de uma semana, afetando serviços essenciais como hospitais, escolas e transportes, além de transformar num caos a vida de moradores e comerciantes.

Não se pode menosprezar o sacrifício imposto à população. Prejuízos causados pela perda de alimentos em refrigeradores desligados, ar-condicionado e ventiladores inoperantes diante do calor abrasador ou torneiras secas como efeito colateral da falta de luz sobre as bombas-d’água nem são os problemas mais graves. Outros beiram a crueldade, caso dos doentes que dependem de equipamentos permanentemente ligados em casa ou dos idosos forçados a subir ou descer inúmeros lances de escada na falta de elevadores. Nem todos os lugares dispõem de gerador, e a Enel demorou a colocá-los em operação enquanto fazia os reparos necessários a restaurar o fornecimento.

Pode-se até compreender quando os problemas decorrem de chuvas torrenciais ou vendavais que derrubam árvores e danificam a rede elétrica. Sabe-se que, devido às mudanças climáticas, esses imprevistos estão mais frequentes, por isso as empresas de energia precisam se preparar para dar uma resposta rápida à população. Mas o descaso é indefensável quando o problema não decorre de situações extremas, caso do longo apagão nos bairros centrais de São Paulo na semana passada.

Inicialmente, a Enel afirmou que uma escavação da Sabesp, concessionária paulista de água e esgoto, atingiu acidentalmente cabos subterrâneos. A Sabesp alegou que investigações preliminares não detectaram danos. No meio do tiroteio verbal, fica o consumidor que paga a conta em dia e não recebe o serviço contratado.

Não foi a primeira vez que moradores de São Paulo foram submetidos a longos períodos sem luz. Em novembro do ano passado, mais de 400 mil residências ficaram sem energia por mais de 60 horas depois de uma tempestade. Em alguns lugares, o suplício durou mais de cem horas. Levantamento do GLOBO mostrou que a Enel, que atende São Paulo e outras 23 cidades da Região Metropolitana, registrou 339.993 quedas de energia não programadas em 2023 — ou uma interrupção a cada minuto e meio —, 37% acima da média dos anos anteriores.

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) precisa cobrar da Enel um serviço decente. Não é favor, é obrigação. O contrato da concessionária vai até 2028, e os moradores não podem passar mais quatro anos submetidos a apagões sucessivos. O transtorno é inaceitável. Hospitais têm de remarcar cirurgias, escolas dispensam alunos, comerciantes precisam compartilhar geradores, cidadãos acampam na casa de parentes ou fogem para hotéis. Não é possível que alguém ache isso normal na maior cidade do país.

A tardia e tímida crítica do Itamaraty a Maduro

O Estado de S. Paulo

Gestão Lula acha que é possível “fortalecer” a inexistente democracia na Venezuela

Não surpreende que o regime ditatorial de Nicolás Maduro tenha impedido o registro da candidatura da principal chapa de oposição na eleição presidencial de julho, pois é a culminação de um processo integralmente eivado de irregularidades, fraudes e violência política, aliás característico do chavismo desde sempre. Tampouco surpreende que só agora o governo brasileiro, por meio do Itamaraty, tenha manifestado alguma “preocupação” com a evidente destruição da democracia venezuelana.

Antes tarde do que nunca, mas mesmo no momento em que tomou coragem de reconhecer que o regime do companheiro Nicolás Maduro, ora vejam, está descumprindo suas promessas de permitir uma eleição minimamente competitiva e limpa, o Itamaraty o fez escolhendo bem as palavras, para não melindrar o ditador amigo de Lula da Silva – aquele mesmo Lula da Silva que não escolheu palavras quando comparou Israel à Alemanha nazista.

Diz a nota envergonhada do Itamaraty que, “com base nas informações disponíveis”, a candidata Corina Yoris, indicada pela Plataforma Unitaria, força política de oposição, “sobre a qual não pairavam decisões judiciais”, foi “impedida de registrar-se”, o que “não é compatível com os acordos de Barbados” – em referência ao acerto em que Maduro garantiu a lisura da eleição para presidente em troca da suspensão das sanções dos EUA à Venezuela.

Ora, há tempos o regime chavista vem impedindo sistematicamente que os principais nomes de oposição possam disputar as eleições, seja prendendo-os, seja impedindo que se candidatem. O caso mais escandaloso foi o da ex-deputada María Corina Machado, que foi considerada inelegível pela Justiça Eleitoral, inteiramente controlada pelo governo. María Corina era líder de intenção de voto nas pesquisas independentes.

Em vez de denunciar a evidente arbitrariedade da ditadura venezuelana, Lula da Silva achou que era o caso de criticar María Corina, recomendando que ela parasse de “chorar” e escolhesse outro candidato para disputar em seu lugar.

Pois foi o que María Corina fez: escolheu Corina Yoris. De nada adiantou. Corina Yoris não conseguiu registrar sua candidatura porque simplesmente não teve acesso ao sistema de inscrição. O prazo se encerrou ontem. Com razão, María Corina suspeita que qualquer candidato que ela indicasse teria o mesmo destino: a impossibilidade de disputar a eleição. Somente “opositores” chancelados pelo regime conseguiram registrar suas chapas.

Ainda assim, pisando em ovos, o Itamaraty reiterou sua crença de que é possível fazer da eleição de julho “um passo firme para que a vida política se normalize e a democracia se fortaleça na Venezuela, país vizinho e amigo do Brasil”. Se isso já era difícil antes, agora é virtualmente impossível. Não é possível “fortalecer” a democracia na Venezuela porque há décadas não existe democracia na Venezuela, e a ditadura só se aprofunda.

A diplomacia de Lula da Silva para a Venezuela em seu terceiro mandato é coerente com a dos dois anteriores, na década de 2000, quando assistiu passivamente à gradual captura do Legislativo, do Judiciário, das Forças Armadas e das instituições de controle de Estado pelo regime de Hugo Chávez. Não houve um pio de Brasília diante da demolição do Estado de Direito venezuelano e da imprensa livre e da brutal perseguição à oposição política. O silêncio de Lula jamais resultou em arrefecimento do regime. No entanto, essa mesma estratégia pusilânime prevalece como posição oficial do Brasil.

O governo Lula jamais considerou a possibilidade de integrar o grupo de países da região – entre os quais, os três sócios do Brasil na fundação do Mercosul – que manifesta coletivamente sua preocupação a cada arbitrariedade de Maduro nos últimos meses. Brasília tem se mantido apartada até mesmo de vozes respeitáveis da esquerda, como a do ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, que condenam sem rodeios o caráter autoritário do regime venezuelano.

O tardio esboço de surpresa do Itamaraty com a mais recente prova de autoritarismo de Maduro ainda está longe, na forma e no tom, de fazer jus ao interesse brasileiro na condenação inequívoca a qualquer regime autoritário, independentemente de sua coloração ideológica.

O ministro que não calculava

O Estado de S. Paulo

Carlos Lupi, aquele que nega o déficit da Previdência, rejeita também o cálculo atuarial, que projeta o gasto previdenciário no futuro. Para ele, são ‘teorias que me incomodam muito’

O ministro Carlos Lupi disse não acreditar que as despesas da Previdência Social no Orçamento estejam subestimadas, como têm apontado alguns dos maiores especialistas em contas públicas do País. Para defender sua tese, Lupi não se deu ao trabalho de apresentar divergências sobre os números com os quais eles trabalham para projetar o gasto. Nem precisaria, pois o motivo de sua desconfiança é muito mais singelo.

“Na questão orçamentária, eu acho que grandes economistas trabalham com teorias que me incomodam muito. Porque teoria sobre o ser humano é tão subjetiva… eu posso calcular exatamente quantos vão morrer? Eu posso calcular quantos ficarão doentes? Eu posso colocar uma média”, afirmou o ministro, em estupefaciente entrevista ao Estadão.

Não é segredo para ninguém que Lupi não acredita na existência de um déficit na Previdência Social – algo que, inclusive, ele reafirmou na entrevista. “Eu não aceito isso de dizer que a Previdência é déficit, eu vou morrer assim”, disse.

Agora, no entanto, o ministro revelou que sua descrença é mais profunda e diz respeito ao conceito de cálculo atuarial. Chega a ser irônico que Lupi tenha afirmado isso no mesmo dia em que o governo divulgou a primeira avaliação bimestral de receitas e despesas do ano e elevou a estimativa de gastos com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) de R$ 908,7 bilhões para R$ 914,2 bilhões.

Ora, é óbvio que não se pode prever, com exatidão, quantas pessoas morrerão ou ficarão doentes em um determinado período, mas isso não significa que não seja possível estimar os números com um certo grau de segurança, a partir de modelos e do histórico dessas despesas. Foi exatamente isso que o governo fez ao revisar as despesas da Previdência, e é com base nisso que tantos especialistas apontam que as despesas do INSS estejam subestimadas.

Essa desconfiança não vem apenas de gente “do mercado”. Nota da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados afirma que, mesmo com a revisão, os números continuam subestimados em cerca de R$ 20 bilhões, o suficiente para manter muito ceticismo sobre a possibilidade de o governo cumprir a meta de zerar o déficit primário deste ano.

A teimosia de Lupi parece imune a dados, mas não pode ser tratada como anedota. A Previdência Social é a principal despesa da União e, consequentemente, a maior fonte de déficit público. O envelhecimento da população é uma realidade e deve exigir novas reformas que impeçam o sistema de se tornar inviável.

Segundo o relatório O Brasil do Futuro, do Banco Mundial, a reforma da Previdência aprovada em 2019 foi suficiente para estabilizar o déficit do sistema até o fim da década de 2030, mas as mudanças demográficas exigiriam novos ajustes após esse período. Parte dessa economia, no entanto, pode ter sido revertida antes mesmo desse prazo – e de maneira silenciosa, como observou o economista Fabio Giambiagi em artigo publicado no Estadão.

O motivo, segundo ele, foi a aprovação da política de aumentos reais do salário mínimo, piso ao qual os benefícios do INSS são vinculados. “Em outras palavras, em plena luz do dia e sem ninguém ter dado um pio, o Brasil desfez, de uma penada, metade do que custou duas décadas e meia para aprovar”, afirmou Giambiagi.

Apontar problemas como esse não é o mesmo que tratar a Previdência como estorvo, como sugere Lupi, mas defender a sustentabilidade do INSS e de seus segurados no médio e longo prazos. Era isso que deveria estar no topo das preocupações de Lupi enquanto ministro da pasta.

Assim como o presidente Lula da Silva, Lupi é daqueles que têm dificuldades para tratar as coisas pelo nome. Alguns gastos, para eles, são mais que mero desembolso de recursos e devem ser classificados como investimentos, ainda que não gerem retorno.

Daí se entende por que o espaço das despesas discricionárias no Orçamento, rubrica na qual se inserem os investimentos públicos, é cada vez mais reduzido e consumido por despesas obrigatórias. No fundo, essa confusão de conceitos revela muito sobre a natureza do governo.

Conta outra

O Estado de S. Paulo

Bolsonaro diz que passou duas noites na Embaixada da Hungria para ‘manter contatos’

Jair Bolsonaro tratou os brasileiros como idiotas ao dizer que permaneceu na Embaixada da Hungria por pelo menos duas noites para “manter contatos com autoridades do país” europeu e lhes transmitir “informações precisas sobre o que acontece no Brasil”. E isso em plena semana de carnaval.

Bolsonaro, é óbvio, homiziou-se na embaixada húngara, como revelou o New York Times, por receio de ser preso por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF). Quatro dias antes daquela entrada constrangedora na representação diplomática, com um de seus seguranças batendo palmas na porta para que alguém viesse abri-la na calada da noite, o STF havia mandado a Polícia Federal (PF) apreender o passaporte de Bolsonaro como uma das medidas da Operação Tempus Veritatis, que investiga a tentativa de golpe de Estado por parte de bolsonaristas.

Ora, quem deseja conversar com diplomatas sobre o que quer que seja agenda uma audiência, marca almoço ou jantar, talvez um café ou um chá da tarde. Diz o que tem de dizer, ouve o interlocutor e vai embora. Ninguém leva trouxa de roupas, travesseiro, lençóis, um fardo de água mineral e uma garrafa térmica para um encontro com um dignitário estrangeiro. O objetivo de obter asilo político da Hungria parece evidente. Na embaixada, Bolsonaro estava fora do alcance das autoridades brasileiras. Portanto, logrou seu intento. Durante o tempo em que permaneceu no local, Bolsonaro não poderia ser abordado por policiais brasileiros para efeitos de cumprimento de um eventual mandado de prisão expedido contra ele.

De quebra, valendo-se de sua relação pessoal com o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, Bolsonaro – mesmo fora do poder e inelegível – ainda deu um jeito de causar um incidente diplomático para o Brasil. Mais um. Por meio do Itamaraty, o governo Lula da Silva, como era de esperar, chamou o embaixador húngaro Miklós Halmai para dar explicações. O diplomata tergiversou sobre a natureza da guarida dada a Bolsonaro.

O ministro do STF Alexandre de Moraes, por sua vez, intimou Bolsonaro a prestar esclarecimentos num prazo de 48 horas (contadas a partir do dia 25 passado). Além disso, a PF instaurou novo inquérito contra o ex-presidente para apurar se ele tentou uma “manobra diplomática” para escapar da eventual responsabilização penal por seu papel na tentativa de golpe de Estado – de resto, uma obviedade.

Há quem sustente que Bolsonaro, com essa fuga para a Embaixada da Hungria, estaria provocando o STF a decretar sua prisão preventiva. A prisão, sobretudo num ano eleitoral, faria de Bolsonaro uma espécie de “mártir” e mobilizaria seus apoiadores. A tese faria sentido se Bolsonaro fosse esse estrategista e se acaso tivesse coragem de enfrentar o xilindró em nome das ideias que defende. Não parece ser o caso. Ao que tudo indica, foi apenas medo de enfrentar as consequências de seu golpismo.

IPCA-15 acima da expectativa confirma alertas do Copom

Valor Econômico

Ainda há espaço para os juros caírem abaixo da projeção conservadora de 9,5%

A inflação medida pelo IPCA-15 realçou as mesmas preocupações expressas na ata do Comitê de Política Monetária, divulgada ao mesmo tempo que o índice - 0,36%, abaixo de 0,78% de fevereiro, mas acima da mediana das expectativas de 0,3% dos analistas. Em relação a março de 2023, registrou 4,14%, recuo importante em relação aos 4,49% na mesma comparação feita em fevereiro. Mesmo assim, o IPCA-15 até agora confirma o fato de que a inflação cai com menos intensidade do que a esperada, considerando-se uma enorme carga de juros que chegou a 13,75%, alguns décimos abaixo dos 14,25% do pico de juros da década passada. O Banco Central vê um aumento da incerteza tanto no cenário externo quanto no doméstico. Pela ata do Copom, os fatores internos são mais relevantes.

O balanço de riscos como tal parece defasado. A possibilidade de que o aperto sincronizado de juros nos países desenvolvidos que derrubasse a atividade global parece fora de cogitação. Ocorre o contrário: a força dos juros tem sido incapaz de amortecer a inflação. Uma desaceleração da atividade mais forte do que a projetada, outro risco de baixa no balanço, que seria o desejo atual dos BCs desenvolvidos, também não deu sinal de vida.

Restam então os riscos de alta, nos quais a ata do Copom se concentra. A rigor, estão na inflação de serviços e no “hiato do produto mais apertado”. A ata amplia o leque. A evolução dos salários, que para o BC suplanta os aumentos da produtividade, e o avanço da massa salarial real, impulsionada por um mercado de trabalho aquecido, incentivam o consumo das famílias, com outros estímulos simultâneos: redução importante da inflação, reativação da concessão de crédito em função da queda dos juros, avanço da renda concedida a programas sociais, como o Bolsa Família, e reajuste acima da inflação do salário mínimo.

Reajustes salariais acima da inflação podem postergar a aproximação do IPCA da meta de 3%. As expectativas de inflação, há oito meses, continuam mostrando considerável distância: pelo boletim Focus, 2024 fechará com IPCA de 3,75% e 2025, de 3,5%. Os reajustes seriam menos preocupantes se a produtividade da economia estivesse crescendo à mesma velocidade, ou acima. Para o BC, não é o caso.

“Um mercado de trabalho mais apertado, com reajustes salariais acima da meta de inflação e sem ganhos de produtividade correspondentes, pode potencialmente retardar a convergência da inflação, impactando notadamente a inflação de serviços e de setores mais intensivos em mão de obra”, registra a ata. Esse é um dos argumentos mais relevantes a compor o quadro de incertezas que emoldurou a decisão do Copom de reduzir o horizonte de sua orientação futura de dois meses para um mês.

Os efeitos desse aumento da massa salarial e do ritmo de reajustes dos vencimentos encontra tendências que vão na direção contrária, ou seja, de contenção de preços, como “recomposição favorável de preços relativos”, e uma “dinâmica benigna de commodities”. Considerado em seu conjunto, o BC considera que o cenário prospectivo para a inflação se mostra mais “incerto”, da mesma forma que o externo, ainda que as dúvidas sobre a evolução dos juros nos Estados Unidos e a força da atividade econômica global permaneçam as mesmas há alguns meses. Pode fazer diferença e influir na política monetária doméstica um atraso maior do que o esperado na redução dos juros americanos. A probabilidade existe, mas tornou-se menor depois que os membros do Federal Reserve mantiveram a perspectiva de três cortes na taxa básica ainda este ano.

Os dados do IPCA-15 confirmam as dúvidas sobre o ritmo de queda da inflação sem assegurar um rumo claro para a política monetária. A desaceleração em março foi relevante (0,36% ante 0,78% em fevereiro), mas inferior à prevista na mediana das projeções dos analistas. A evolução dos preços de alimentos e bebidas (0,91%) e gasolina (2,39%) contribuíram com 0,31 ponto percentual - quatro quintos do resultado. No caso dos alimentos, há a sazonalidade, e a entrada da safra deve arrefecer os aumentos já no próximo mês. No caso dos combustíveis, pesou a recomposição dos impostos, que não se repetirá. O IPCA acumula 1,46% no primeiro trimestre, enquanto a variação de preços de alimentos (3,45%), educação (5,64%) e saúde (1,94%) corre a uma velocidade maior.

O BC desconfia, mas não tem certeza, de que o aperto no mercado de trabalho e o aumento de salários indicam que a economia está perto de esgotar sua capacidade ociosa, o que tende a retardar o caminho da inflação em direção à meta. Não se trata de uma fatalidade - a ata faz várias ressalvas nesse sentido -, mas de um sinal de alerta. Diante disso, não fazia mais sentido o BC anunciar seus passos com dois meses de antecedência. Os investidores creem que o ciclo da baixa de juros se encerrará com a Selic entre 9,5% e 9,75%. É uma perspectiva muito conservadora, que prescreve juros reais de 6% ou mais. O BC, ao se livrar do seu “guidance” anterior, deixou seus movimentos em aberto, o que significa que as decisões acompanharão os mais recentes dados disponíveis e que os juros poderão cair abaixo disso.

BC mais cauteloso, mas não pode errar na dose

Correio Braziliense

Para a próxima reunião do comitê, no início de maio, o corte de 0,5 ponto percentual deve ser mantido, mas, ainda assim, a taxa ficará com dois dígitos e em um patamar ainda elevado em relação ao juro neutro

A perspectiva de redução da inflação no curto prazo e o recorde de arrecadação de impostos no primeiro bimestre, com o valor de R$ 467,15 bilhões, indicando uma receita maior este ano e de um deficit fiscal menor, não estão no radar do Banco Central para a próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), no início de maio. A Ata do Copom da reunião da semana passada, quando a Selic foi reduzida para 10,75% ao ano, mostra uma preocupação maior com a persistência das incertezas, que antes se referiam ao cenário externo e agora incorporam também o interno.

Para a próxima reunião do comitê, no início de maio, o corte de 0,5 ponto percentual deve ser mantido, mas, ainda assim, a taxa ficará com dois dígitos e em um patamar ainda elevado em relação ao juro neutro. A explicação para uma possível mudança na política monetária é o fato de as projeções para a inflação neste e nos próximos dois anos estarem acima do centro da meta inflacionária, que é de 3%.

O Banco Central sinaliza ao mercado que vai perseguir o centro da meta e agir para impedir o descolamento dos preços, o que já pode ser visto pelos consumidores nos supermercados, principalmente após altas expressivas do valor dos hortifrutigranjeiros. E com a gasolina defasada em relação ao mercado internacional, a perspectiva é de que o combustível possa ser reajustado novamente e pressionará todos os preços, reforçando a incerteza a que se refere o BC em sua ata da última reunião do Copom.

Com o histórico inflacionário e seus impactos danosos para a economia, é aceitável que o Banco Central se preocupe com o controle dos preços, mas é preciso não errar na dose de preocupação, sob pena de jogar mais para baixo uma atividade econômica desaquecida ou, pior ainda, mexer com as expectativas do mercado. Agora não há uma indicação clara de que na reunião de meados de junho haja uma mudança no patamar de redução da Selic, que finalmente poderá ficar abaixo dos dois dígitos e chegar a 9,75%. Esse patamar ainda é alto, mas é a partir desse ponto que o BC, com uma visão mais clara sobre o cenário-base, poderá reduzir a magnitude do corte de juros, para 0,25 ponto percentual.

Com a resiliência do mercado de trabalho e o pagamento de benefícios sociais mantendo a capacidade de consumo da parcela menos favorecida da população, taxas de juros não terão impacto sobre alimentos que podem seguir com preços pressionados por mudanças climáticas ou eventual alta dos combustíveis, mas vão continuar impactando investimentos, produção da indústria e consumo de bens de valor mais alto e que exigem financiamento.

Não se pede tolerância com a inflação fora da meta, ou, como se dizia no passado, que um pouco de inflação favorece o crescimento econômico. Não. A inflação é um imposto caro para a sociedade, assim como o juro num patamar acima de uma taxa neutra é um arrocho para empresas e famílias. O que se espera é que a análise técnica do BC não se paute apenas por números e abranja a complexa e robusta estrutura produtiva brasileira.

 

 

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