terça-feira, 12 de março de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Inchaço do cadastro distorce Bolsa Família

O Globo

De 22,3 milhões de famílias registradas como pobres, 6,6 milhões estavam acima da linha da pobreza, estima pesquisa

O Brasil se tornou referência mundial em políticas de transferência de renda por identificar as famílias em situação de risco e pagar os benefícios de forma direta, simples e rápida. Foi crucial a criação, em 2001, do Cadastro Único (CadÚnico). Até então, o governo mantinha listas distintas de beneficiados para vários programas, como Bolsa Alimentação ou Auxílio-Gás. Algumas famílias recebiam ajuda de três ou mais, outras de um só, e o governo não sabia o que acontecia porque as informações eram mantidas em silos. A consolidação do CadÚnico foi determinante para o sucesso do Bolsa Família, lançado em 2003. De lá para cá, ele passou por vários aperfeiçoamentos. Infelizmente, nos últimos anos houve deterioração na qualidade das informações.

Cerca de 6,6 milhões dos 22,3 milhões de famílias registradas como pobres no CadÚnico em 2023 não eram pobres, revelou estudo do Insper encomendado pelo governo. Os pesquisadores cruzaram dados do cadastro com a pesquisa domiciliar periódica do IBGE, a Pnad Contínua. Concluíram que 30% das famílias no CadÚnico tinham renda per capita acima de R$ 218 mensais — limiar da pobreza usado para determinar quem recebe Bolsa Família. No Rio, na Baixada Fluminense ou no oeste da Bahia a discrepância passa de 50%. A partir dos resultados, o governo precisa fazer um pente-fino e corrigir a distorção.

Não se trata de retirar as famílias do cadastro, que reúne pobres e segmentos com rendimentos maiores, mas ainda assim vulneráveis (a linha de corte do CadÚnico é renda per capita de até meio salário mínimo mensal, ou R$ 706). Mas a reclassificação é urgente para melhorar o foco do Bolsa Família. O governo poderia até aproveitar a oportunidade para rever o critério de entrada no programa, mas não deveria dar acesso a quem não precisa.

É verdade que o estudo não fornece um retrato exato da realidade, pois o universo das amostras e as metodologias usadas no CadÚnico e na Pnad são distintos. Mas faz uma estimativa razoável da diferença. Nos locais onde há maior disparidade, é provável que haja desvirtuamento, com mais famílias que não deveriam estar na lista das pobres. O mapa das áreas problemáticas é a maior contribuição da pesquisa.

O inchaço do CadÚnico já foi maior. Quando Jair Bolsonaro estava em campanha pela reeleição em 2022, houve inclusão de milhões de beneficiários com a mudança de critérios que resultou na criação do programa Auxílio Brasil. Havia 8,9 milhões de famílias pobres no CadÚnico que não apareciam nos dados da Pnad. No primeiro ano da gestão Lula, o governo deu início à identificação de irregularidades. Cerca de 1,7 milhão de inscrições de famílias com apenas um integrante foram excluídas. O apoio à pesquisa do Insper é parte da depuração em curso.

Manter o CadÚnico atualizado, sem irregularidades, é essencial para o êxito de um programa social que, só em janeiro, consumiu R$ 14,4 bilhões e cujo custo chegou a 1,6% do PIB no ano passado. O Bolsa Família deve ter como meta o combate à pobreza estrutural. Se a família está conjunturalmente em situação de pobreza, a resposta deve ser outra, com ênfase no problema concreto que levou à perda de renda. O consenso sobre a necessidade de apoiar financeiramente os mais vulneráveis é uma conquista da sociedade brasileira. Mas depende da execução eficiente dos programas sociais.

Vitória da centro-direita em Portugal traz desafio de lidar com ultradireita

O Globo

Aliança vencedora terá de negociar com populistas do Chega, que se tornaram terceira força parlamentar

Os resultados da eleição em Portugal no fim de semana demonstraram o desejo de mudança e deixaram a coligação vitoriosa diante de um dilema para garantir a governabilidade. Foi por pouco, menos de 1 ponto percentual, que os socialistas perderam o primeiro lugar. Contados os votos, a Aliança Democrática, de centro-direita, liderada pelo Partido Social Democrata (PSD), conquistou 29,5% dos votos. Com 28,7%, o Partido Socialista (PS) passou para a oposição depois de nove anos no poder (e um escândalo de corrupção recente).

Em seu discurso de vitória, Luís Montenegro, líder da Aliança Democrática e presidente do PSD, reafirmou o compromisso de melhorar o desempenho da economia e criar empregos com salários melhores aos mais jovens. Reconheceu que o desafio é grande e exigirá “responsabilidade” e “capacidade de diálogo e tolerância”. A primeira dificuldade será formar um governo. Na campanha, Montenegro garantiu que não aceitaria a participação do Chega, partido da ultradireita apoiado por Jair Bolsonaro. Confirmando prognósticos anteriores ao pleito, o Chega, liderado por André Ventura, deixou para trás a condição de sigla nanica para conquistar 18% dos votos, tornando-se a terceira maior força no Parlamento.

Para a direita tradicional, deter a ultradireita é questão de sobrevivência. Por isso faz sentido descartá-la da coalizão governista. Mas isso não significa que Montenegro estará livre de concessões. Ele governará sem maioria no Parlamento. Todas as votações dependerão de acertos com as demais forças políticas, ora os socialistas, ora os ultradireitistas. Portugal já teve governos assim, mas o temor é que tal arranjo traga instabilidade.

Outra opção seria Montenegro voltar atrás e chamar Ventura. Partidos tradicionais de direita e centro-direita na Europa costumam evitar essa aproximação, mas há as exceções. Na Holanda, o partido de Geert Wilders, que defende acabar com imigração islâmica e proibir o Alcorão, ganhou em novembro 37 das 150 cadeiras do Parlamento. Num cenário pulverizado, tornou-se uma das principais forças políticas. De lá para cá, siglas tradicionais têm negociado com ele a formação de uma coalizão. Na Suécia, a estabilidade do governo depende de um partido com raízes neonazistas. Na Itália, a ultradireita governa o país.

O português Ventura ganhou fama em 2017 ao destilar preconceitos contra a comunidade cigana, que acusou de ser origem de crimes e de explorar o sistema de seguridade social. Dois anos depois fundou o Chega. Seu programa ataca a imigração, que ele considera diluir a cultura portuguesa. Na campanha, adotou promessas demagógicas, como baixar impostos e elevar aposentadorias ao mesmo tempo. Como todo partido nacional-populista, o Chega adota posições retrógradas em temas que vão da imigração aos direitos civis. Mas, desde que respeite as regras da democracia, deve ser aceito como representante legítimo de uma vertente crescente — ainda que preocupante — na sociedade portuguesa.

Novo Carf piora ambiente de negócios e não afasta risco fiscal

Valor Econômico

Compensações tributárias foram de R$ 27 bilhões, mesmo com MP que as limita de acordo com o valor

A mudança nas regras de funcionamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) está surtindo efeito para o lado do governo. Com o único objetivo de aumentar a arrecadação - e evitar cortes de gastos -, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, conseguiu que o Senado aprovasse, em agosto, o projeto que retomava o voto de qualidade no Carf, extinto em 2020. Nesse sistema, o presidente das turmas, um auditor da Receita, funcionário do Executivo, decide as disputas em caso de empate. A nova regra foi sancionada no fim de setembro, e em outubro veio o primeiro recorde mensal de julgamentos definidos por desempate, de R$ 14,4 bilhões.

Mesmo com a greve dos auditores da Receita Federal, o que atrasou os julgamentos, o ano terminou com um balanço favorável para o governo no Carf: o volume de litígios tributários julgados dobrou, passando de R$ 138 bilhões no último ano do governo Bolsonaro para R$ 278 bilhões em 2023. Desse total, os contribuintes perderam R$ 109 bilhões, ou 39% do total, mais do que o triplo dos R$ 30 bilhões de 2022, o maior valor desde 2019. Nem tudo veio do voto de qualidade nos julgamentos de casos de empate, mas ele foi decisivo para isso.

A expectativa do próprio Carf é julgar R$ 870 bilhões neste ano, previsão apoiada no fim da greve dos auditores da Receita, no aumento do quadro de conselheiros de 180 para 204, na introdução do plenário virtual para julgamentos com litígios de até R$ 60 milhões e na realização de sessões extras. O valor é superior ao de R$ 580 bilhões previsto no Orçamento.

A remodelação do Carf é uma das apostas do ministro Haddad para atingir a meta de déficit zero neste ano. O volume de decisões favoráveis ao governo em 2023 atingiu quase 40%, mas graças a algumas manobras, como a inclusão de casos de alto valor na fila de julgamentos. Historicamente, o Carf favorece o governo em um percentual inferior, em torno de 10% do total. Daí a previsão do governo de obter R$ 55 bilhões neste ano - ou até R$ 87 bilhões se a estimativa mais elevada se confirmar.

O mercado não conta nem de longe com essa cifra. Um dos motivos é que, para estimular as empresas a aceitarem o veredito do Carf, as novas regras incluem incentivos como abatimento de multas, o que reduz o valor final. Além disso, o Carf é a última instância de recurso administrativo. As empresas contrariadas podem recorrer ainda ao Judiciário, prolongando por anos o desfecho dos casos e a eventual entrada efetiva dos recursos nos cofres do governo. Podem-se colher no mercado previsões de que os julgamentos do Carf contribuirão com R$ 10 bilhões a R$ 15 bilhões das receitas tributárias deste ano, cerca de 20% do estimado pelo governo, em grande parte devido à litigância que a mudança estimulará.

A experiência de 2023 indica que o Judiciário concedeu vitórias ao governo. Levantamento do escritório Machado Associados indica que, em 49 casos julgados nos tribunais superiores, 34 foram favoráveis a entes públicos, inclusive a União. São casos analisados em recursos repetitivos, repercussões gerais ou considerados relevantes (Valo r, 30/1). Em quatro deles, a perda de arrecadação evitada pelo governo é estimada em R$ 62,4 bilhões. O de maior impacto é o que trata da tributação de incentivos fiscais.

Compensações tributárias, muitas delas originadas de decisões judiciais, atuaram no sentido contrário à ação do Carf. Dados obtidos pelo Valor por meio da Lei de Acesso à Informação (23/2) mostram que as compensações tributárias diminuíram a arrecadação da União em R$ 242 bilhões no ano passado. Do total, R$ 82,7 bilhões se referem a créditos determinados por decisões judiciais, em muitos casos por pagamentos indevidos de impostos. Em 2018, eles somavam pouco mais de 5% do total de compensações. A Fazenda informa que só as compensações da “tese do século”, a exclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, custaram mais de R$ 60 bilhões à União em 2023.

Em consequência disso, o governo editou a Medida Provisória 1.202, que limitou o direito a esse benefício para créditos fiscais oriundos de decisões da Justiça a partir de R$ 10 milhões. Nos últimos cinco anos, créditos acima desse valor frustraram a arrecadação em R$ 320,5 bilhões. O limite a elas pode gerar um ganho de R$ 20 bilhões neste ano. As compensações, no entanto, somaram R$ 27 bilhões em janeiro, mesmo com a MP em vigor.

O desempenho da arrecadação em janeiro foi o melhor de todos os meses da série histórica iniciada em 1995. Houve um aumento real de 6,6%, para R$ 280 bilhões. Caso os fatores não recorrentes fossem excluídos, o crescimento real da arrecadação teria sido de 4,27%, estima o fisco. Entre eles está a tributação dos chamados super-ricos e pelo aumento da massa salarial. A tributação dos fundos exclusivos somou R$ 4,1 bilhões em janeiro.

A retomada do Carf original, para ajudar a máquina arrecadadora, além de piorar o ambiente de negócios para sustentar aumentos de gastos, não elimina os riscos de uma política fiscal apoiada principalmente no aumento de receitas.

Em corrida acirrada, Nunes ganha pontos

Folha de S. Paulo

Datafolha aponta melhora na avaliação do prefeito, que está empatado com Boulos; eleitorado se mostra pouco informado

A sete meses do primeiro turno, a disputa pela Prefeitura de São Paulo parece à primeira vista previsível, como registra o Datafolha. O deputado federal Guilherme Boulos (PSOL) e o prefeito Ricardo Nunes (MDB) estão empatados na liderança, com larga vantagem sobre os demais candidatos.

São representantes e apadrinhados dos líderes dos polos que hoje praticamente dividem a opinião política-eleitoral do país —Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL), esquerda e direita.

A diferença mais notável de cenário, embora nem tão significativa, aparece nas margens. Pela primeira vez em quatro levantamentos, desde abril de 2022, a avaliação de Nunes parece ter um saldo positivo, ainda nos limites da margem de erro de 3 pontos percentuais.

A gestão do prefeito é classificada como ótima ou boa por 29% dos eleitores, é ruim ou péssima para 24% e regular segundo 43%.

Na corrida, Nunes ganhou pontos em relação ao Datafolha de agosto, embora a pesquisa do ano passado e a de agora não sejam imediatamente comparáveis, por diferenças na lista de candidatos possíveis.No mais, os números da sondagem dificultam prognósticos.

Instados a dizer espontaneamente em quem votariam, 60% dos eleitores não sabiam citar um nome; outros 7% não votariam em ninguém. Entres aqueles com renda familiar inferior a dois salários mínimos, 40% da amostra, os índices sobem a 68% e 11%.

A depender do peso efetivo dos padrinhos políticos na decisão do voto, Nunes pode ter dificuldades, pois 63% dos eleitores dizem rejeitar alguém apoiado por Bolsonaro. Um nome endossado por Lula, caso de Boulos, teria a rejeição de 42%.

Observe-se também que, por enquanto, tais relações não estão claras para muitos eleitores: 33% não sabem a quem Bolsonaro dá apoio; 8% chegam a imaginar que o ex-presidente se aliou a Boulos. Por enquanto, Nunes é menos rejeitado (26%) do que o rival (34%).

Com o conhecimento dos candidatos e de suas relações políticas, decisões de voto podem mudar. Parte do eleitorado paulistano não conhece Boulos (17%) ou o conhece "só de ouvir falar" (27%). A situação de Nunes é quase a mesma, com 15% e 27%, respectivamente.

Dadas a polarização e as filiações dos postulantes, é bem possível que o destino político de Lula e Bolsonaro até a eleição possa pesar de modo diferente na disputa municipal. A popularidade do atual mandatário parece decair; investigações policiais e decisões judiciais podem abalar ainda mais a imagem do antecessor.

O eleitorado ainda não se deteve na análise dos candidatos e suas propostas. A disputa que ora se afigura acirrada ainda parece aberta.

Ensino obscurantista

Folha de S. Paulo

Tarcísio insiste em modelo cívico-militar, em vez de usar recursos com sensatez

Eleito com apoio da base de Jair Bolsonaro (PL), o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), mantém seu discurso político distante do radicalismo e da intolerância da direita populista.

Em duas áreas essenciais, contudo, Tarcísio insiste no erro de respaldar teses bolsonaristas. Na segurança pública, a polícia coleciona operações sangrentas, e o governador, declarações impensadas; na educação, insiste na inclusão de militares na rede de ensino.

Ao defender o projeto de lei que cria o programa de escolas cívico-militares, enviado pelo Palácio dos Bandeirantes à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp)na quinta (7), Tarcísio disse que a iniciativa em "nada interfere com a rotina pedagógica da escola".

De fato, a atuação de policias militares e bombeiros da reserva nesse modelo não atinge o conteúdo curricular. Se regras disciplinares fazem parte de um sistema pedagógico, no entanto, por óbvio há interferências. Crianças são obrigadas a cantar o hino nacional, cortar o cabelo de determinado modo e a seguir outras restrições e normas rígidas de comportamento.

Entre 2015 e 2018, o número de instituições de ensino desse tipo no país passou de 93 para 120. Em 2023, após o programa de fomento instituído ao longo da gestão de Jair Bolsonaro (PL), eram 215.

No ano passado, o governo federal iniciou o processo de extinção dos aportes para o programa. Como resultado de embates ideológicos, diversos estados anunciaram que não só manteriam o sistema, como o expandiriam.

Alunos tanto de escolas militares (das Forças Armadas) quanto de cívico-militares (estaduais com presença militar) têm melhores resultados em avaliações de ensino.

Porém pesquisas mostram que isso se deve não à disciplina militar, mas a aportes em infraestrutura, formação de professores e expansão da carga horária —em relação a este fator, por exemplo, só 17% dos alunos paulistas estão em escolas de ensino integral.

Se governo e deputados paulistas querem melhorar a educação do estado, deveriam alocar recursos com base em evidências, em vez de seguir ideologia obscurantista.

Mão pesada sobre a Petrobras

O Estado de S. Paulo

Diferentes governos veem nela não uma empresa em busca dos melhores resultados para acionistas, mas um instrumento para atender a demandas que nada têm a ver com suas atividades

A Petrobras registrou um lucro líquido de impressionantes R$ 124,6 bilhões no ano passado. Foi o segundo melhor resultado da história da companhia, superado apenas pelo recorde de R$ 188,3 bilhões registrado em 2022, e o maior entre as empresas brasileiras no período. Seria um dia de celebrações, não fosse o esforço coletivo do governo Lula da Silva para arruiná-lo.

Há duas semanas, o presidente da Petrobras, Jean-Paul Prates, já havia colocado o bode na sala ao adiantar, em en trevis taàB lo om berg, que apolítica de distribuição de dividendos da companhia seria mais cautelosa para privilegiar investimentos em energias renováveis. Prates pretendia distribuir 50% dos valores extraordinários apurados no ano passado na forma de dividendos e reter a outra metade para pagamento em momento posterior.

Contrariando a recomendação da própria diretoria da empresa, no entanto, o Conselho de Administração optou por reter 100% dos recursos extras. Aprovada por 6 votos a 4, a decisão contou coma participação decisiva dos membros indicados pelo governo federal e, em particular, pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira.

Os acionistas minoritários reagiram mal. Com toda a razão, passaram a desconfiar que o governo faria uso da maioria dos assentos que detém no colegiado para destinar esses recursos para o financiamento de investimentos defendidos por Lula da Silva – algo que, atualmente, o estatuto não permite.

O governo até tentou menosprezar o impacto da notícia, mas ficou difícil ignorá-la quando ficou claro que ela não era consensual. Além de expor a crescente rusga entre Prates e Silveira, a decisão surpreendeu o Ministério da Fazenda, que contava com o pagamento de dividendos extraordinários da empresa à União para melhorar o ambicioso resultado fiscal deste ano.

A trapalhada levou à maior desvalorização das ações da Petrobras desde fevereiro de 2021 – episódio também marcado por um ato de intervencionismo governamental na companhia. À época, Jair Bolsonaro demitiu o então presidente da empresa, Roberto Castello Branco, após o anúncio de um aumento do preço do diesel e de ameaças de greve por parte de caminhoneiros.

O passado mostra que as tentativas de ingerência governamental sobre a Petrobras não são fatos isolados. Na gestão Dilma Rousseff, a empresa acumulou prejuízos bilionários ao segurar reajustes de combustíveis para conter a inflação e permitir a redução artificial da taxa básica de juros pelo Banco Central (BC).

Já no segundo mandato de Lula da Silva, a Petrobras se aproveitava de sua posição dominante no mercado para praticar preços bem superiores aos cobrados no exterior à custa do consumidor, tudo para acumular recursos para sustentar os controversos empreendimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Não é por acaso, portanto, que a Petrobras tenha um valor de mercado menor que o de suas principais concorrentes e muito inferior ao seu próprio potencial – ainda que seja líder mundial na exploração de petróleo em águas profundas. Isso acontece porque, para os governos, independentemente do viés político do presidente de turno, a Petrobras não é uma empresa em busca dos melhores resultados para seus acionistas, entre os quais a própria União, mas um instrumento para atender a demandas que nada têm a ver com sua atividade-fim.

Não é função da Petrobras garantir crescimento econômico, controlar a inflação, agradar aos caminhoneiros, salvar a meta fiscal ou servir de palco para disputas políticas da base aliada. Ao menos em tese, sua missão é produzir petróleo pelo menor custo possível e gerar riquezas que se revertam em benefício da sociedade e garantam sua sobrevivência em meio à transição energética.

Ao não conter o ímpeto intervencionista, o governo degrada o valor da companhia e afasta investidores cujo capital poderia financiar os investimentos de que a economia tanto necessita para crescer de maneira sustentável. Quando isso acontece com a maior empresa brasileira, a imagem que o País passa é a pior possível, e não há lucro recorde que seja capaz de alterá-la.

O incrível caso do sem-teto ‘golpista’

O Estado de S. Paulo

Morador de rua preso por quase um ano, acusado de participar do 8 de Janeiro, deve ser absolvido por falta de provas, num caso exemplar dos abusos em nome da defesa da democracia

Ocaso de um morador de rua que passou quase um ano preso por suposta participação no ataque bolsonarista às sedes dos Três Poderes no infame 8 de Janeiro, e que provavelmente será absolvido por falta de provas, é exemplar dos exageros que estão sendo cometidos em nome da defesa da democracia por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Procuradoria-Geral da República (PGR).

O serralheiro Geraldo Filipe da Silva vivia em situação de rua em Brasília havia três meses quando foi observar a razia promovida pela malta bolsonarista. A “curiosidade” que o movera, conforme depoimento prestado às autoridades, lhe custou caro: quase um ano de prisão sem que tenha cometido crime algum. É possível imaginar a angústia e o sentimento de impotência do sem-teto, que, sabidamente inocente, viu o poderoso aparato persecutório do Estado se voltar contra ele.

Geraldo foi preso em flagrante e acusado pela PGR dos crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio público tombado. Denunciado ao STF por todos esses gravíssimos delitos, o homem que não derrubou sequer um vaso de plantas no chão naquele dia infame se tornou réu em 31 de maio de 2023. Só deixaria a cadeia em novembro – e, mesmo assim, para continuar respondendo às acusações em liberdade.

Só no dia 8 passado o ministro Alexandre de Moraes votou pela absolvição do serralheiro. Segundo Moraes, não foram apresentadas provas suficientes de que

Geraldo tenha participado da insurreição “aderindo dolosamente ao intento de tomada do poder e destruição do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo”. Ou seja, a mesma PGR que acusou Geraldo de crimes gravíssimos foi incapaz de provar sua culpa e pugnou por sua absolvição – mas o dano já havia sido causado.

O desleixo do parquet – e também do STF, que aceitou uma denúncia inepta – autoriza a inferência de que Geraldo foi tratado como só mais um em meio às denúncias de baciada que a PGR ofereceu contra os acusados de praticar os atos golpistas. Em nome de uma suposta cruzada em defesa da democracia, abusos têm sido cometidos pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário. Até uma altercação envolvendo o ministro Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma já foi tratada como um “ataque” contra o Estado Democrático de Direito. Liberdades foram cassadas sem o devido processo legal. Punições “preventivas” têm sido determinadas pelo STF, como é o caso dessa estapafúrdia decisão de Moraes que proíbe Jair Bolsonaro de participar de eventos em quartéis.

Ninguém de boa-fé haverá de ignorar a importância que o STF teve para frear a sanha golpista que moveu o governo Bolsonaro do primeiro ao último dia de seu mandato, e mesmo depois. Na ausência de um procurador-geral à altura do cargo e de suas funções na República e com parte do Congresso comprada a peso de “orçamento secreto”, não foram poucas as ocasiões, entre 2019 e 2022, em que a sociedade só pôde contar com o STF como última linha de defesa da democracia e da Constituição. Também é inolvidável que o julgamento dos atos golpistas do 8 de Janeiro impôs à Corte desafios sem precedentes na história recente. No entanto, nenhum desses desafios, por mais complexos que sejam, suspendeu os direitos e as garantias fundamentais que a Constituição confere a qualquer cidadão.

O voto de Moraes deve ser seguido por seus pares, haja vista que as posições do ministro relator têm ditado, para o bem ou para o mal, os rumos do STF no que concerne aos inquéritos abertos para supostamente apurar ataques contra a democracia – e que até hoje não foram encerrados. Sendo assim, Geraldo provavelmente será o primeiro réu absolvido de todas as acusações que lhe foram imputadas pela PGR por sua suposta participação nos atos do 8 de Janeiro.

Ao fim e ao cabo, é reconfortante saber que um homem inocente deverá ser reconhecido como tal pela mais alta instância do Poder Judiciário do País. Mas, diante da violência estatal cometida contra Geraldo Filipe da Silva, entre outros abusos, é o caso de perguntar: afinal, quantos “Geraldos” ainda há atrás das grades na segunda maior democracia das Américas?

Portugal se move à direita

O Estado de S. Paulo

A ascensão reacionária não ameaça a democracia, mas sinaliza um mal-estar que exige resposta

As eleições em Portugal se encerraram com uma vitória previsível, uma novidade e uma incerteza. O fato corriqueiro foi a oscilação do pêndulo político à direita. A coalizão de centrodireita Aliança Democrática (AD) não conquistou a maioria no Parlamento de 230 deputados, mas obteve o maior número de cadeiras, 79, seguida de perto pelo Partido Socialista (PS), 77, que liderou por oito anos o governo.

Após as eleições de 2022, o próximo pleito deveria ocorrer só em 2026, mas foi antecipado após o premiê António Costa renunciar na esteira de acusações de corrupção ao seu governo. A chamada “geringonça” dos partidos de esquerda geriu relativamente bem a economia, uma das que mais cresceram na Europa nos últimos anos. Mas há insatisfação dos portugueses com o custo de vida.

O desejo de renovação econômica explica a opção do eleitorado pela plataforma de centro-direita – menos impostos e mais incentivos à iniciativa privada –, mas não dá conta da novidade destas eleições: a ascensão do partido populista antissistema e anti-imigração Chega, que em 2022 saltou de 1% para 7% dos votos, e agora conquistou 18,1%, tornando-se a terceira maior legenda, com 48 parlamentares.

Em abril, Portugal comemorará 50 anos da Revolução dos Cravos, que derrubou a ditadura de direita de António Salazar. Desde então, o país foi um modelo de estabilidade democrática, com a centro-direita e a centro-esquerda se alternando no poder. A incógnita é até onde Portugal se moverá à extrema direita.

Até o momento, não muito. A AD foi às urnas asseverando um inequívoco “não” a uma aliança com o Chega.

Após as eleições, o chefe do Chega, André Ventura, acenou a essa possibilidade, mas o líder da AD, Luís Montenegro, reafirmou seu “não”. O PS declarou que será oposição, mas não vetará um governo da AD, que, assim, poderá governar sem precisar formar uma “geringonça” de direita. Mas, sem maioria, disputará suas pautas uma a uma, negociando compromissos à direita e à esquerda.

A ascensão do Chega sinaliza uma irritação do eleitorado que precisa de resposta dos partidos tradicionais em questões como racionalização da administração pública, combate à corrupção, reformas da Justiça e serviços de qualidade em Saúde e Educação.

Um sinal de que o protesto foi ouvido foi dado pelo líder socialista. “Não há 18,1% de portugueses votantes racistas ou xenófobos, mas há muitos portugueses zangados”, disse Pedro Nuno Santos. “Queremos reconquistar a confiança destes portugueses.”

Essa reconquista passa por enfrentar o desafio da imigração, o principal combustível do Chega. A população de Portugal, como a de outros países da Europa, está envelhecendo e encolhendo, e precisa de imigrantes dispostos a trabalhar e criar suas famílias no país, aportando capital financeiro e humano. Mas a imigração ilegal desperta apreensão. Será crucial para o novo governo separar o joio do trigo, reprimindo a imigração ilegal e estimulando a legal.

Assim, num futuro próximo, a tradição moderada em Portugal se mantém. Mas não há espaço para complacência.

Lições da covid após quatro anos

Correio Braziliense

A ministra Nísia Trindade anunciou a criação de um memorial para as vítimas da doença. O local escolhido é o Centro Cultural do Ministério, localizado no Rio de Janeiro

Quatro anos depois de a Organização Mundial da Saúde declarar uma pandemia global de covid-19, o governo federal estabeleceu um marco no Brasil para a doença que matou 710 mil no país. A ministra Nísia Trindade anunciou a criação de um memorial para as vítimas da doença. O local escolhido é o Centro Cultural do Ministério, localizado no Rio de Janeiro.

Como acontece com iniciativas semelhantes, o memorial tem por finalidade servir de reflexão permanente sobre a doença que devastou o país entre 2020 e 2022 e ainda constitui um relevante problema grave no Sistema Único de Saúde, bem como na rede privada de atendimento. "Não circunscrevemos a pandemia de covid-19 ao passado. Como todas as reflexões sobre memória, sabemos do componente presente, político, das ações de memória. E, ao mesmo tempo, lembramos que, a despeito de termos superado a emergência sanitária, nós não superamos a covid-19 como problema de saúde pública", afirmou Nísia Trindade.

Em números absolutos, o morticínio provocado pela covid-19 no Brasil encontra paralelo com os Estados Unidos, onde a pandemia causou mais de 1 milhão de óbitos, e na Índia, país que acumula mais de 530 mil mortes. Dirão os negacionistas da pandemia que, considerando os dados proporcionais, o Brasil está em situação menos dramática do que em nações como Peru, que contabiliza uma média 6 mil óbitos por milhão de habitantes. Nesse critério, o Brasil ocupa a 18ª posição, com aproximadamente 3,2 mil mortes por milhão de habitantes.

Independentemente das variações estatísticas, é consenso entre autoridades sanitárias que a covid-19 provocou um flagelo no país. O avanço devastador da pandemia extenuou o Sistema Público de Saúde — que, de resto, mostrou-se fundamental no enfrentamento da doença; revelou a vulnerabilidade do Brasil no desenvolvimento de vacinas; escancarou o negacionismo em parcelas da sociedade brasileira, muitas vezes estimulado por agentes do poder público; gerou profundo impacto em diversos setores da economia, muitos dos quais ainda em fase de recuperação. Isso sem mencionar os traumas na sociedade, com milhões de famílias e empresas tentando se reerguer após a partida repentina de pais, mães, avôs, avós, tios, trabalhadores, pesquisadores, cidadãos.

É precisamente por causa do propósito de lembrar o país dos danos, muitas vezes irreversíveis, causados pela covid-19 que o memorial anunciado pelo Ministério da Saúde tem sua relevância. Passados quatro anos da eclosão do novo coronavírus, o Brasil ainda enfrenta séria batalha contra a doença. Em 2024, a covid-19 tem registrado uma média de 200 mortes a cada semana epidemiológica. É como se caísse um avião toda semana no Brasil. A dengue, apesar de se encontrar em crescente estágio de emergência em diversos estados e no Distrito Federal, registra oficialmente 363 mortes, e outras 763 em investigação.

Em ambas as graves moléstias, apesar das especificidades, o desafio é um só: investir em prevenção, tratamento e, não menos importante, no fomento à pesquisa. Dada a magnitude que essas patologias adquiriram no país continental e de profundas desigualdades, é fundamental uma ação permanente e coordenada, que envolva os três entes federativos, para evitar a ocorrência de novas tragédias. É dever do Estado combater covid-19 e dengue de maneira incansável; é dever de todo brasileiro contribuir com essa causa. Esse é o sentido mais profundo de iniciativas como o memorial anunciado ontem.

 

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