sexta-feira, 8 de março de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

São inexplicáveis os afagos de Lula à ditadura de Maduro

O Globo

Não tem cabimento comparar casos do próprio petista e de oposicionista venezuelana impedida de concorrer

Dos dez países com que o Brasil faz fronteira, a Venezuela é o que mais gera dores de cabeça. Garimpeiros ilegais usam o território venezuelano quando a fiscalização aumenta em terras indígenas e voltam ao brasileiro quando diminui. Grupos criminosos atuam nos quase 3 mil quilômetros de divisa, e venezuelanos têm buscado o Brasil para escapar da crise humanitária provocada pelo regime chavista. Ameaças recentes de invasão da Guiana fizeram ressurgir o espectro de um conflito armado a poucos quilômetros de Roraima e Amazonas. Por fim, brasileiros e venezuelanos ainda têm a responsabilidade de coordenar esforços pela preservação da maior floresta tropical do mundo.

Com uma agenda dessas, é compreensível que o presidente do Brasil seja obrigado a estabelecer uma relação produtiva com a liderança venezuelana, ainda que se trate de um regime autoritário. Somente com canais abertos e um ambiente de cooperação, os interesses brasileiros podem avançar. Mas isso nada tem a ver com a atitude benevolente do presidente Luiz Inácio Lula da Silva perante os desmandos do ditador Nicolás Maduro. A condescendência com o regime chavista, que Lula não perde a oportunidade de expressar, contradiz sua própria biografia e ofende a memória dos brasileiros que lutaram e lutam pela democracia.

Depois de, no ano passado, receber Maduro com honras de chefe de Estado e de declarar, sobre a ditadura venezuelana, que “o conceito de democracia é relativo”, Lula voltou à carga nesta semana. Insinuou que María Corina Machado, principal líder da oposição venezuelana, está “chorando” por ter sido declarada inelegível pelo Judiciário submisso a Maduro. Em seguida, ele tentou explicar o inexplicável: “Só disse a vocês que houve aqui neste país, eu fui impedido de concorrer às eleições de 2018. Em vez de ficar chorando, indiquei outro candidato que disputou as eleições”.

Ora, a declaração não tem o menor cabimento. Lula não participou do pleito por uma decisão tomada pelo Judiciário independente num regime democrático. Seu substituto, Fernando Haddad, disputou num sistema eleitoral livre de fraudes, sem ser perseguido ou prejudicado pelas instituições. A prova evidente de que a situação brasileira nada tem de similar à venezuelana é Lula ter recorrido, ter sido libertado e hoje ocupar a Presidência da República. Se quisesse fazer comparação histórica, deveria ter lembrado a ditadura militar, quando foi preso de forma arbitrária e temeu pela própria vida.

Todas as instituições acadêmicas dedicadas a classificar os sistemas políticos concordam que o regime venezuelano não é democrático. No ranking de democracia de 167 países da Economist Intelligence Unit, a Venezuela ocupa a 142ª posição, pior que Cuba (135ª) e perto da China (148ª). No da Varieties of Democracy (V-Dem), está pior que a Rússia de Vladimir Putin. Na avaliação da Freedom House, está entre os países com declínio de liberdade mais dramático nos últimos dez anos.

Ao saber das declarações de Lula, María Corina reagiu.“O senhor está validando os abusos de um autocrata que viola a Constituição”, afirmou. “Maduro tem medo de me confrontar porque sabe que o povo venezuelano está hoje na rua comigo.” Lula, eleito por uma frente ampla para afastar a ameaça autoritária do Brasil, deveria ser mais coerente com sua biografia e suas credenciais democráticas.

Adiar critério para distinguir usuários de traficantes preserva injustiças

O Globo

Julgamento no Supremo deveria ser mais ágil para cumprir objetivos da Lei Antidrogas

Ainda não foi desta vez que o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento sobre a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, tema cuja discussão se arrasta há quase uma década. Na sessão de quarta-feira, a análise foi interrompida quando o ministro Dias Toffoli pediu vista do processo. Ele tem até 90 dias para devolver o caso, e uma nova data de julgamento terá de ser marcada pelo presidente do STF, Luís Roberto Barroso.

Até agora, o placar é de 5 votos a favor e 3 contra a descriminalização. A favor, votaram os ministros Barroso, Gilmar Mendes, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Rosa Weber. Manifestaram-se contra Cristiano Zanin, André Mendonça e Nunes Marques. Mesmo dentro de cada grupo, há divergências. Fachin defende que cabe ao Congresso fixar a quantidade de maconha a partir da qual alguém seria considerado traficante em vez de usuário. Mendonça tem posição semelhante, mas propõe um parâmetro provisório de 10 gramas até que o Parlamento tome uma decisão. Zanin e Nunes Marques, mesmo tendo votado contra a descriminalização, são favoráveis a 25 gramas. Gilmar, Barroso, Moraes e Rosa, a 60 gramas.

O tema é delicado e o consenso difícil, mas não é mais possível adiar uma decisão sobre o assunto. O Congresso, predominantemente conservador, não quer que o STF se ocupe da questão das drogas, mas tem sido omisso em relação a um vácuo na legislação atual. A Lei Antidrogas, de 2006, substituiu a prisão de usuários por advertência, prestação de serviços comunitários ou cumprimento de medida socioeducativa. Mas não deixou claro o que se entende por usuário. Daí a necessidade de estabelecer parâmetros objetivos para distingui-lo do traficante. Outro ponto importante: a legislação atual proíbe o plantio de maconha, mas diz que a União pode autorizá-lo para fins medicinais e científicos. Falta clareza sobre as circunstâncias, criando obstáculos para quem usa medicamentos baseados em canabidiol.

O intuito da Lei Antidrogas era evitar a prisão de usuários, muitas vezes com quantidades mínimas (a ação em julgamento diz respeito a um detendo flagrado com 3 gramas de maconha). Por falta de parâmetro, o efeito foi o oposto, legando ao país um encarceramento maciço. Na prática, a prisão de usuários com pequenas quantidades tem apenas fornecido mão de obra para as facções criminosas que operam e aliciam seus integrantes nos presídios.

Sem critério objetivo para distinguir usuário de traficante, cria-se uma fábrica de injustiças. Uma mesma quantidade de droga pode levar alguém para lá ou para cá, dependendo de seu perfil socioeconômico. Jovens, negros e pobres têm maior probabilidade de ir para a prisão, mesmo com quantidades mínimas de droga. Enquanto o Congresso continua omisso, é dever do STF estabelecer os parâmetros para que seja atingida a meta da Lei Antidrogas: reduzir encarceramentos injustos.

Inflação de serviços retarda queda de juros global

Valor Econômico

Os bancos centrais não sabem quanto tempo vai durar a resistência dos avanços de preços dos serviços, que impede o fim do ciclo de políticas monetárias restritivas

Na reta final para derrubar a inflação nos países desenvolvidos e em outros emergentes, como o Brasil, os bancos centrais enfrentam o desafio da resistência dos preços dos serviços. A preocupação dos BCs se voltou, em maior ou menor grau, para algo que antes não estava no radar - aumentos de salários. Provavelmente é uma questão temporária. A renda do trabalho só passou à frente dos índices de preços quando estes recuaram, propiciando ganhos reais compensatórios de uma fase de perdas de remuneração. Os bancos centrais não sabem quanto tempo vai durar essa fase, que impede o fim do ciclo de políticas monetárias restritivas. O discurso das autoridades monetárias dos Estados Unidos e zona do euro ontem foram todos na mesma direção a esse respeito.

O ímpeto da inflação de serviços é semelhante na zona do euro, nos EUA e no Brasil, ainda que difiram nas condições prospectivas das economias. O crescimento no bloco monetário europeu foi ontem rebaixado nas projeções do BCE, de 0,8% para 0,6%. A inflação projetada para o ano caiu de 2,7% para 2,3%, pelo índice cheio, já bem próximo à meta, mas o núcleo de inflação (exclui energia e alimentos), foi de 2,6% e o índice de serviços chegou a 3,9% em fevereiro. “Precisamos de mais evidências e de mais dados”, disse Christine Lagarde, presidente do BCE. “Saberemos um pouco mais em abril e muito mais em junho”, afirmou, sinalizando uma data tentativa para a reversão dos juros de 4%, os maiores desde a criação da moeda única.

O presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, tem um problema maior, pois a economia americana, apesar dos juros mais altos em muito tempo, exibe um fôlego inédito para tal aperto monetário. Em depoimento no Congresso americano, ele praticamente repetiu o comunicado do banco após sua mais recente reunião, cuja mensagem é esperar para ver sinais consistentes e sustentáveis de queda da inflação. Apesar de os preços estarem caindo, o mercado de trabalho continua apertado, os gastos do consumo seguem em bom ritmo, alimentados em parte pelo avanço dos salários.

A definição dos próximos passos da política monetária depende então do que ocorrerá com os preços dos serviços. O BIS, o banco central dos bancos centrais, alertou que se eles aumentarem “a diminuição do ritmo de desinflação poderá levar a política monetária a permanecer apertada por mais tempo”. Esses preços se mantêm resistentes, mesmo após a queda da inflação dos alimentos e da energia, na Europa e EUA, onde avançaram em doze meses encerrados em janeiro entre 4% e 6%.

O BCE está preocupado com a evolução dos salários, que estão apenas recuperando as perdas passadas com a redução da inflação recente. Ainda que o mercado de trabalho nos dois lados do Atlântico esteja surpreendentemente favorável à mão de obra diante da alta dos juros, esse movimento terá vida curta diante do menor crescimento projetado para as duas economias. Tanto o Fed quando o BCE, no entanto, estão convictos de que os juros atingiram o pico necessário para levar a inflação para as metas. Não há riscos visíveis de que os juros precisem de mais um empurrão para cima, embora não há certeza de quando eles poderão se mover para baixo.

No Brasil, o Banco Central está preocupado há alguns meses com a dinâmica do mercado de trabalho e seus reflexos nos salários. A taxa de desemprego, de 7,6% em janeiro, a menor desde 2015, tem sido acompanhada por um modesto crescimento acima da inflação dos salários. A última ata do Comitê de Política Monetária registra que ele “seguirá atento à dinâmica dos rendimentos nas diversas pesquisas para melhor avaliar o grau de ociosidade no mercado de trabalho e seus potenciais impactos sobre a inflação de serviços”. Não há conclusão definitiva sobre isso.

Ontem, o diretor de Política Monetária, Diogo Guillen, disse que, por enquanto, “não há pressão nenhuma sobre os salários”. No entanto, a inflação desancorada por períodos longos, segundo ele, perpetua a reindexação dos vencimentos e “vai criando um farol apontando para o lado errado”.

A definição da política monetária dos países desenvolvidos será importante para balizar até certo ponto a taxa de juros doméstica. Guillen, ao dizer ontem o óbvio, que a orientação futura do BC é condicional, sinaliza que a indicação de queda da Selic de 0,5 ponto percentual para pelos menos duas reuniões consecutivas está com os dias contados, como os investidores esperam. A mudança determinará a taxa terminal de juros - em torno de 9% segundo a maioria do Focus, chegando a 8,5% no ano que vem.

O cenário externo instável, no entanto, pode mudar a equação dos juros. Bancos americanos pequenos voltaram a dar sinal de instabilidade. Ontem a agência federal de seguros divulgou que o número de bancos “fracos” subiu para 52 no último trimestre de 2023, o maior salto recente. A volta de turbulências no setor bancário dos EUA pode levar o Fed a reduzir logo os juros, mas acentuar a aversão ao risco e empurrar o dólar para cima, o que será ruim para o Brasil.

Nunes precisa explicar obras sem licitação

Folha de S. Paulo

Reportagens da Folha e do UOL mostram alto gasto em ações emergenciais contra cheias, em detrimento de obras estruturais

Algo estranho acontece na cidade de São Paulo. Obras emergenciais, realizadas pela gestão de Ricardo Nunes (MDB) com o objetivo de enfrentar enchentes, têm sido responsáveis por alagamentos que antes não existiam, segundo moradores da capital paulista ouvidos pela reportagem da Folha.

Isso não é tudo. De setembro de 2021 a dezembro de 2023, a mesma prefeitura contratou 140 obras emergenciais desse tipo, destinadas à contenção de margens de córregos. Custaram aos cofres públicos nada menos que R$ 2,2 bilhões, o equivalente a dois terços de toda a verba empenhada no período em iniciativas de combate às cheias.

Como se sabe, ações que tenham o carimbo da urgência estão dispensadas de passar por licitação. Faz sentido que seja assim: há momentos em que o poder público precisa dar uma resposta tão célere a algum infortúnio que não há tempo de garantir a devida concorrência no processo de contratação.

Nenhum paulistano, por sua vez, desconhece as situações de calamidade que as chuvas provocam na metrópole de uma hora para a outra —de modo que pode parecer natural o recurso às obras emergenciais para lidar com essas intempéries, mais frequentes nos primeiros meses do ano.

Há, contudo, sinais estranhos abaixo da superfície. Por exemplo, os R$ 2,2 bilhões gastos pela gestão Nunes seriam suficientes para concluir ao menos 15 obras do Plano Diretor de Drenagem, mas só 3 foram entregues até o fim de 2023.

Ainda que a prefeitura argumente que um tipo de intervenção não compete com o outro, o fato é que as ações sem licitação consumiram muito mais dinheiro público do que as iniciativas estruturais —as quais mereceram R$ 65 milhões.

E isso em uma gestão que, sem marca própria, destaca-se pelo recapeamento e, sobretudo, pela explosão de despesas livres de processo licitatório. Auditoria do Tribunal de Contas do Município mostrou que, de 2017 para 2022, o salto foi de 10.400%, uma enormidade carente de explicação.

Segundo reportagem do UOL, pelo menos 223 de 307 contratos emergenciais sem licitação tocados pela gestão Nunes têm indícios de combinação de preços entre empresas concorrentes.

Além disso, especialistas afirmam que as intervenções pontuais, ainda que não se prestem a desvios de recursos, são pouco recomendadas para o combate de enchentes, porque costumam ter prazo de validade curto e tendem a agravar o problema rio abaixo.

É urgente que se proceda a uma investigação séria desse caso —e Nunes deveria ser o primeiro a desejá-la, para ter a oportunidade de se defender de possíveis suspeitas de corrupção ou de incompetência.

Conquista histórica

Folha de S. Paulo

Liberação do aborto na Carta francesa protege direito, defendido por esta Folha

Nesta semana, a França se tornou a primeira nação a permitir em sua Constituição a interrupção da gravidez por decisão da mulher.

A inclusão do aborto na Carta, mesmo que o procedimento já fosse legalizado no país até a 14ª semana de gestação desde 1975, tem especial relevância porque o tema está sujeito, em todo o mundo, a oscilações ideológicas tanto no Legislativo como no Judiciário.

A medida francesa protege esse direito das mulheres contra retrocessos, que têm se tornado menos improváveis com a polarização política e a ascensão global de uma direita populista reacionária.

Exemplo recente foi a revogação da legalização do aborto pela Suprema Corte dos Estados Unidos, que em 1973 havia aprovado entendimento contrário.

É mais difícil mudar uma lei do que uma decisão judicial —e ainda mais complicado derrubar um direito estabelecido na Constituição. Mesmo assim, há investidas contra normas que garantem o aborto.

Na Hungria, onde a prática foi legalizado em 1953, o governo de Viktor Orbán baixou um decreto em 2022 que obriga mulheres que buscam o procedimento a ouvirem os batimentos cardíacos do feto.

Também em 2022, deputados brasileiros tentaram proibir a interrupção da gravidez em qualquer caso, com o chamado "Estatuto do Nascituro", mas foram contidos por manobra regimental da oposição.

Por aqui, o Supremo Tribunal Federal tomou a dianteira e examina ação sobre a descriminalização do procedimento —o que não é o mais recomendável.

A Constituição brasileira não se refere ao aborto em suas cláusulas. Assim, qualquer decisão do STF será baseada em interpretações sobre direitos individuais passíveis de questionamentos, que podem alimentar os discursos que apontam ativismo judicial da corte, em detrimento do Legislativo.

A sociedade e o Congresso deveriam debater o tema, sem dogmas, para atualizar a lei sobre o aborto conforme recomendações da OMS e as experiências dos países que legalizaram a prática, A questão deve ser observada à luz da saúde pública e dos direitos das mulheres, como defende esta Folha.

A imoralidade de Lula

O Estado de S. Paulo

Ao agredir a oposição venezuelana e defender o companheiro Maduro, Lula reafirma o padrão de sua diplomacia imoral, em que ditadores são festejados e dissidentes políticos, ridicularizados

O presidente Lula da Silva está mesmo empenhado em se credenciar como o guia genial do tal “Sul Global” contra os “imperialistas” americanos. Para antagonizar os Estados Unidos, fustigar o Ocidente e proclamar sua vocação de salvador dos pobres e oprimidos na geopolítica internacional, Lula manda às favas o histórico da diplomacia brasileira de prudência, neutralidade e respeito à democracia, e arrasta consigo o Brasil e sua política externa. Combina a habitual fala sem filtros em temas espinhosos dos quais nada entende com a defesa obscena de ditaduras e ditadores. A Lula pouco importa o que autocratas fazem contra a democracia e os direitos humanos – basta que se insurjam contra os Estados Unidos.

A recente declaração de Lula sobre a Venezuela é só mais um exemplo desse pensamento deletério. Lula se disse “feliz” com a definição da data para a eleição presidencial venezuelana – a eleição que Nicolás Maduro controla com mão de ferro, pelo domínio que tem sobre a Justiça e sobre as regras do sistema eleitoral do país, o que tem lhe garantido sufocar a oposição, atentar contra a imprensa independente e perpetuar a ditadura chavista.

Questionado se acreditava que a eleição seria justa, Lula alegou ter recebido informações do próprio companheiro Maduro, ora vejam, de que observadores internacionais serão convidados a monitorar o pleito. E, num misto de grosseria e misoginia, sugeriu à oposição da Venezuela “não ficar chorando”, referência clara ao fato de que a mais forte candidata oposicionista, María Corina Machado, foi impedida pela Suprema Corte chavista de disputar as eleições. Para Lula, bastaria à oposição escolher outro candidato – como se María Corina não tivesse sido vítima de flagrante perseguição e como se qualquer outro candidato pudesse concorrer livremente num ambiente totalmente controlado por Maduro.

Não foi uma gafe ou um escorregão retórico movido pelo improviso. Trata-se de um padrão e, como tal, um atestado de suas convicções. É longa a sua coleção de declarações em favor de ditaduras, a começar pela própria Venezuela, um país “democrático” até demais, segundo Lula, por realizar “mais eleições que o Brasil”. Relativizando as barbaridades promovidas por Maduro, o presidente brasileiro afirmou que o “conceito de democracia é relativo”. Para Lula, democracia não é a soberania popular, a garantia das liberdades de expressão e de imprensa, a intransigência com qualquer forma de arbítrio de tiranos. Em seu relativismo, os ditadores companheiros são “democratas” porque se julgam intérpretes das aspirações do “povo”.

Lula é cruel com aqueles que ousam enfrentar os ditadores companheiros. Em 2010, por exemplo, ele defendeu a “Justiça” cubana e criticou presos políticos que ali faziam greve de fome contra o regime dos irmãos Castro. Na sua diplomacia da imoralidade, equiparou os valentes dissidentes cubanos aos presos comuns no Brasil.

Há muitos outros casos em que a indecência lulopetista se manifestou dessa maneira. Recorde-se que Lula defendeu o ditador Daniel Ortega inúmeras vezes, a despeito das escancaradas violações de direitos humanos cometidas pelo nicaraguense – e, numa reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU em março do ano passado, o Brasil se recusou a acompanhar os mais de 50 países que denunciaram a prática de crimes contra a humanidade pela tirania de Ortega.

Lula saltou do abismo moral para se alinhar ao que há de mais retrógrado e autoritário. Ao fazê-lo, descredenciase como líder global digno de respeito internacional e debilita a política externa brasileira, obliterando suas oportunidades de integração econômica e de cooperação para a paz, a democracia e as liberdades fundamentais. Sua política externa está ancorada num princípio absoluto e maniqueísta: a hostilidade ao Ocidente e o alinhamento automático a tudo o que é antagônico aos valores ocidentais. Quando esse sectarismo ideológico substitui a visão de Estado, o voluntarismo ignora a decência e a diplomacia é feita com cacoetes de esquerdismo infantil, não há jeito. Não há mais o que esperar de Lula senão essa imoralidade sem limites.

Retrocesso político e social

O Estado de S. Paulo

Eleição de expoentes do bolsonarismo para presidir a CCJ e a Comissão de Educação da Câmara retrata a força de uma oposição em tudo contrária à boa política e aos interesses do País

Dois expoentes do bolsonarismo na Câmara dos Deputados foram eleitos para a presidência de duas das mais importantes comissões permanentes da Casa, no dia 6 passado. Caroline de Toni (PL-SC) dirigirá os trabalhos da poderosa Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ). Já Nikolas Ferreira (PL-MG) ficará a cargo da Comissão de Educação. Nem este nem aquela têm os atributos necessários para conduzir bem ambos os colegiados. Mas isso não tinha qualquer importância para os que viabilizaram seus nomes. Caroline de Toni e Nikolas Ferreira não foram parar no comando da CCJ e da Comissão de Educação para trabalhar pelo País. Lá eles estarão, apenas e tão somente, para espezinhar o governo Lula da Silva.

O histórico parlamentar de Caroline de Toni e Nikolas Ferreira não autoriza uma nesga de esperança de que ambos venham a trabalhar em prol do melhor interesse público no exercício de suas novas atribuições no Poder Legislativo. A inadequação do par é notória. Ademais, não seria exagero afirmar que a catarinense e o mineiro personificam como poucos o traço mais distintivo do bolsonarismo: a negação da política, entendida como a capacidade de fazer concessões para alcançar um mínimo denominador comum em termos de políticas públicas.

Devotados discípulos de Jair Bolsonaro, tanto Caroline como Nikolas emulam as táticas empregadas pelo “mito” para aniquilar qualquer debate civilizado no nascedouro – e, de quebra, ainda destruir a reputação de adversários, tratados como inimigos a serem eliminados do jogo político. Decerto há um anseio em setores da sociedade por esse tipo de atitude indecorosa, para dizer o mínimo. Afinal, ambos aportaram em Brasília trazendo a tiracolo votações muito expressivas, em particular o mineiro, o deputado federal mais bem votado do País nas eleições de 2022 (1,47 milhão de votos). Triunfos eleitorais, porém, por mais acachapantes que sejam, nem de longe podem ser vistos como sinal de preparo para as lides próprias da política.

Moderação é palavra-chave em qualquer democracia digna da designação. O sistema de freios e contrapesos, em última análise, não se presta a outra coisa senão a garantir que nenhum Poder ou mandatário sobrepuje os demais. Em outras palavras: ao se controlarem mutuamente, os Poderes, harmônicos, mas independentes entre si, repelem extremistas. Nesse sentido, não só é salutar, como é altamente desejável que a oposição ao governo no Congresso, qualquer governo, seja a um só tempo forte e atuante. E isso se materializa, entre outras formas, pela ocupação de papéis de destaque em comissões permanentes e temáticas. Mas, afinal, de que oposição se está falando? Eis o busílis.

A oposição bolsonarista já deu mostras à exaustão, literalmente, de que não está a serviço do País, da democracia, tampouco da liberdade. Essa oposição só serve aos interesses de Bolsonaro e dos próprios parlamentares – que vivem de usar seus mandatos de representação como insumos para angariar engajamento nas redes sociais e assim granjear influência. No caso particular da ascensão de Caroline de Toni e Nikolas Ferreira às duas prestigiosas comissões, serve também aos interesses do presidente da Câmara, Arthur Lira. A eleição de deputados radicalizados do PL – partido com a maior bancada na Casa – para cargos de altíssima relevância é decorrência direta dos acordos políticos que foram costurados por Lira com vistas à sua sucessão no comando da Câmara. Isso indica que Lira está mais preocupado no momento em manter seu poder de fazer o sucessor do que com os desatinos que decerto serão cometidos na condução da CCJ e da Comissão de Educação.

O governo Lula da Silva precisa ser escrutinado por uma oposição altiva, firme e, sobretudo, democrática. Uma oposição leal, no sentido de apontar para direções alternativas que conduzam o País a bom lugar. As novas lideranças da CCJ e da Comissão de Educação, contudo, retratam a força de uma oposição em tudo contrária a isso.

O provisório que vira permanente

O Estado de S. Paulo

Manutenção do Perse expõe embate entre Legislativo e Executivo em processo cheio de erros

A facilidade com que medidas de caráter provisório se transformam em permanentes está no centro do embate entre Executivo e Legislativo sobre o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), criado durante a pandemia para atenuar os estragos do isolamento a restaurantes, bares, hotéis e tantos outros ligados ao entretenimento. Onze mil empresas recorreram ao programa que as libera de todos os tributos federais – Imposto de Renda, PIS/Cofins e CSLL.

A disputa para transformar em permanente algo que deveria ser temporário envolve também o poder dos lobbies, medição de forças entre Planalto e Congresso e a aflitiva busca da Fazenda por manter em pauta seu programa de meta zero para o resultado fiscal, em muito desacreditado. Nessa babel de interesses, o ministro Fernando Haddad se viu obrigado a recuar do propósito de reonerar de imediato o setor que, como bem mostrou, mais do que recuperou a receita perdida durante a pandemia.

Todo o processo dá uma amostra de como os meandros políticos muitas vezes dificultam o andamento da economia. Não está em questão a necessidade de ajudar setores que se viram, de uma hora para outra, incapazes de gerar caixa por causa do sumiço dos clientes, refugiados em suas casas para evitar o contágio por covid. Livrá-los ao menos do ônus dos impostos foi uma forma justa de socorro que, é claro, reduziu a arrecadação federal, mas não elevou despesas.

Se o cálculo da perda de arrecadação federal estava incorreto, como defende o ministro, é outra história. O fato é que a situação excepcional da covid passou, a vida voltou ao normal e, realmente, não fazia sentido prorrogar um programa emergencial que já havia cumprido o seu objetivo. Mas isso não impediu o Congresso de prolongar o Perse, em mais uma demonstração de fragilidade do Executivo.

As sucessivas indicações do Ministério da Fazenda de que o programa tem sido fraudado e usado, inclusive, em operações de lavagem de dinheiro, incorrem em duplo erro: a falta de transparência, pela não comprovação dos supostos ilícitos, leva a denúncias vazias; e mesmo que tenha havido fraude, isso não é motivo para extinção de programa algum. Irregularidades são combatidas com fiscalização, repressão e punição. Se fraude fosse razão para acabar com programas, o Bolsa Família já teria terminado há muito tempo.

Fernando Haddad desistiu de confrontar a decisão dos parlamentares por meio de medida provisória (MP) extinguindo o Perse, mas pediu ao presidente da Câmara, Arthur Lira, que mantenha a MP para contabilizar o aumento de receita em seu relatório bimestral. Em contrapartida, ofereceu manter o programa em outro patamar, com “visão focada” a ser detalhada em projeto de lei.

Não é exagero dizer que toda a negociação em torno do Perse é um emaranhado de erros que expõe a relação esgarçada entre Legislativo e Executivo. Um dissenso que em nada contribui para o avanço do País e que resume de forma clara que interesses setoriais têm conseguido sistematicamente se sobrepor a avaliações técnicas sobre os efeitos de políticas de incentivo econômico.

Dia de reflexão, luta e reconhecimento

Correio Braziliense

Homens e mulheres sabem que a sociedade já superou obstáculos na igualdade de gêneros, mas há muito para ser feito

O Dia Internacional da Mulher não é feito de comemorações, festas, celebrações. Embora muitos ainda acreditem que seja assim – apenas um momento de presentear com flores e abraçar esposa, colegas de trabalho e amigas – se torna importante destacar o caráter político do 8 de Março e reverenciar a trajetória de lutas que culminaram numa data tão especial. Mais uma vez, o dia de hoje deve abrir portas tanto para a reflexão como para as conquistas, prestar atenção nos desrespeitos e registrar os avanços na legislação, e ficar de olho nos preconceitos e nas batalhas em nome dos direitos civis.

Homens e mulheres sabem que a sociedade já superou obstáculos na igualdade de gêneros, mas há muito para ser feito, especialmente quanto à violência contra elas em todo o mundo. Na semana passada, todos viram e ouviram, estarrecidos, a notícia do estupro coletivo de uma brasileira, na Índia. “Que mundo é esse?”, é de se perguntar. A resposta, trágica, é simples: Um mundo que, em muitas de suas regiões, vê a mulher como presa fácil para o abate animalesco.

No Brasil, os dados ainda são assustadores. No ano passado, pelo menos oito mulheres foram vítimas de violência doméstica a cada 24 horas. No total, houve registro de mais de 3 mil mulheres vítimas de agressões, torturas, ofensas, assédio e feminicídio, num aumento de 22,4% em relação a 2022. Os números foram divulgados pela Agência Brasil, com base na Rede de Observatórios da Segurança e no boletim “Elas vivem: Liberdade de ser e viver”.

Os relatos chocam pela crueldade dos agressores, que se valem de um tapa no rosto, um corte no pescoço ou um tiro no coração para abater a mulher, a companheira, a namorada. Os dados monitorados apontaram 586 vítimas de feminicídio, mostrando que, a cada 15 horas, uma mulher morreu em razão do gênero, nas mãos de parceiros ou ex-parceiros portando armas brancas ou armas de fogo.

Se as estatísticas de violência contra a mulher assustam a população e preocupam autoridades, há passos decisivos para coibir os abusos, com orgulho para o Brasil. Um deles é a lei federal Maria da Penha, que entrou em vigor em 22 de setembro de 2006 e tem reconhecimento internacional como ferramenta importante para o enfrentamento da violência contra as mulheres.

Mas se o Dia Internacional da Mulher é de reflexão e luta, é também de fortalecimento, valorização, reconhecimento. Sem esperar nada em troca, e fazendo valer a solidariedade, muitas mulheres agem de boa vontade para socorrer os semelhantes. Com gestos de carinho, com os ouvidos prontos para escutar sofrimentos alheios ou oferecendo um prato de comida a quem tem fome, elas, sozinhas ou coletivamente, fazem sua parte para um mundo melhor. E mais digno.

Humanidade é palavra feminina, e engloba homens e mulheres. Presente e futuro, palavras masculinas, devem oferecer espaço para todos e todas. “Ser humano”, comum de dois gêneros, é o fundamental para a harmonia, a busca de igualdade e justiça. Afinal, num planeta tão conturbado, a paz não depende apenas de um dia, mas de bilhões e bilhões de minutos de união. E encontros fraternos.

Com fé em dias melhores e a crença de que, de mãos dadas, fica mais fácil encarar os duros revezes do inesperado, pode haver também esperança. As hostilidades devem ficar no passado, como “uma roupa que não nos serve mais”, para lembrar as palavras do compositor Belchior. Que um dia, não muito longe deste 2024, datas como o Dia Internacional da Mulher sejam de entendimento, e não apenas de votos de parabéns. Ou frágil aperto de mãos.

 

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