sábado, 9 de março de 2024

Pablo Ortellado - Avanço na proteção ao trabalho

O Globo

Motoristas passarão a ter acesso aos benefícios do INSS

Depois de mais de um ano de debate, o governo Lula finalmente enviou ao Congresso o Projeto de Lei que regulamenta o trabalho por aplicativos de transporte, como Uber e 99. O texto mantém o caráter autônomo desse tipo de trabalho, estabelece um piso de remuneração equivalente ao salário mínimo e garante ao trabalhador os direitos que advêm da contribuição ao INSS.

Apesar das limitações, o projeto é um avanço na proteção ao trabalho e dá segurança jurídica para a atuação das empresas. Para ter a dimensão desse tipo de trabalho, apenas a Uber tem 1 milhão de motoristas cadastrados. Isso é mais que o total dos que trabalham para os dez maiores empregadores do país, como Itaú, Correios e BRF.

O projeto estabelece uma remuneração por hora mínima equivalente ao salário mínimo vigente, descontados os custos de manutenção do veículo. Isso significa que o valor por hora mínimo pago aos motoristas será a soma da remuneração (R$ 8,02 por hora) e da cobertura dos custos (R$ 24,07 por hora). Esses valores serão reajustados com o salário mínimo nacional. Se um motorista trabalhar 22 dias por mês durante oito horas, receberá pelo menos R$ 5.647,84.

Infelizmente, o acordo entre trabalhadores e empresas mediado pelo governo não abrange os entregadores — categoria quase tão numerosa quanto os motoristas, mas mais mal remunerada. Segundo o governo, o iFood sabotou as negociações se negando a pagar valores compatíveis com o salário mínimo vigente (a empresa nega). O iFood tem histórico ruim de relação com trabalhadores. Em 2022, reportagem da Agência Pública descobriu que uma empresa contratada do iFood criou perfis falsos nas mídias sociais e contratou atores para se infiltrar e sabotar o movimento de entregadores por melhores condições de trabalho.

Motoristas passarão a ter acesso aos benefícios do INSS, como auxílio-doença, auxílio-acidente, salário-maternidade e aposentadoria. Antes, já podiam contribuir, mas a adesão era baixa (cerca de 23%). Agora, todos os motoristas terão cobertura do INSS, e o recolhimento será distribuído. Farão uma contribuição de 7,5% sobre a remuneração efetiva (descontados custos de manutenção), e as empresas contribuirão com outros 20% sobre esse valor. Se o Congresso não mexer nessa distribuição quando o projeto tramitar por lá, será um grande avanço para os trabalhadores.

O projeto cria uma nova categoria de trabalhador, o “trabalhador autônomo por plataforma”, que terá representação sindical. As empresas também terão representação patronal e poderão negociar com o sindicato dos trabalhadores, firmando acordo ou convenção coletiva que pode ampliar o patamar de proteção.

O principal ponto de disputa entre os representantes dos trabalhadores e das empresas era se o trabalho por plataforma constituía vínculo empregatício tal como estabelecido pela CLT. O projeto estabelece, finalmente, que não há vínculo, o que deve sustar a montanha de processos que tramitam na Justiça do Trabalho.

O debate não opôs apenas sindicalistas e empresas, mas também sindicalistas e trabalhadores. As empresas alegavam que o trabalho por plataforma não estabelecia vínculo, e os sindicalistas se contrapunham, exigindo para os trabalhadores por plataforma todas as proteções da CLT.

No entanto os sindicalistas encontraram forte resistência da base de trabalhadores, que demonstravam apreço pela autonomia na prestação de serviço por plataforma. Se a vinculação pela CLT viesse, eles teriam de dirigir em áreas determinadas pelas empresas, fazer jornadas estabelecidas por elas e não poderiam escolher as corridas.

Em sucessivas oportunidades, os motoristas disseram a seus representantes que preferiam não ter todas as proteções da CLT, mas poder trabalhar no local e horário que quisessem, com a intensidade que quisessem, aceitando ou não as corridas. Os sindicalistas viam nessa postura uma visão de curto prazo de quem não enxerga os próprios direitos. Os trabalhadores lamentavam que as lideranças não enxergassem que o controle mais estrito do trabalho, no modelo convencional, era massacrante.

A opção do Projeto de Lei por um modelo intermediário — com autonomia do trabalho, combinado a direitos previdenciários, salário mínimo e representação sindical — deve ser celebrada não como vitória dos interesses do capital sobre o trabalho, mas como vitória do ponto de vista ancorado na experiência dos trabalhadores sobre a visão mais ideológica de seus representantes.

 

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