sábado, 2 de março de 2024

Pablo Ortellado - Compromisso republicano

O Globo

Universidade precisa resgatar a confiança da parcela da população que é de direita

No último domingo, coordenei com meu colega Marcio Moretto uma pesquisa sobre os bolsonaristas mobilizados na Avenida Paulista. Medimos o tamanho da manifestação com fotos aéreas de drone, depois contamos os manifestantes com um software de inteligência artificial (IA). Com nossa equipe, realizamos 575 entrevistas investigando a demografia, a identidade política e a opinião dos manifestantes sobre uma série de questões políticas. Publicamos todos os resultados aqui no GLOBO. O trabalho deveria ser uma pesquisa acadêmica, distanciada, na medida do possível. Mas, como tratamos de temas políticos contemporâneos, fomos rapidamente tragados para o centro do debate político. Queria repartir aqui algumas reflexões sobre as dificuldades de fazer ciência social e divulgá-la num ambiente político carregado e polarizado.

O primeiro resultado que divulgamos foi a estimativa do tamanho da multidão na Paulista. Fazemos essas estimativas com software de IA treinado para contar manifestantes com fotos aéreas nas condições brasileiras. É um método que tem suas limitações. A gente não conta quem está embaixo de árvores e marquises e não consegue capturar o fluxo de quem entra e sai da manifestação. Além disso, o software não reconhece todas as pessoas, contando um pouco a mais e um pouco a menos — o que se chama, tecnicamente, de precisão e acurácia. Ele pode não reconhecer uma cabeça porque a pessoa está de boné e achar que um cone na rua é uma cabeça. No final, somando essas imprecisões, chegamos a uma margem de erro de 12%, para mais ou para menos.

Nossa estimativa de 185 mil pessoas, às 15h, era um número excepcionalmente alto. Fizemos questão de ressaltar isso, listando todas as outras medições que já fizemos e mostrando ser o maior número que havíamos encontrado numa manifestação no Brasil em dois anos. Era mais de o triplo da celebração da eleição de Lula na Paulista em 2022. Isso deveria ser boa notícia para a direita, mas setores desse campo político reagiram ao número atacando a USP, a universidade a que nos filiamos.

Os ataques se devem, fundamentalmente, à falta de confiança da direita na universidade. Embora tenhamos enfatizado que 185 mil pessoas era, comparativamente, um número muito elevado, a Polícia Militar deu uma estimativa muito maior: 750 mil pessoas. A PM aparentemente usou uma medição da área do protesto e a multiplicou por uma densidade estimada (quantas pessoas, aproximadamente, achava que havia por metro quadrado). É um jeito mais grosseiro de estimar que o nosso — e, a meu juízo, um número inverossímil. Mas não é a divergência metodológica o importante aqui. Importa que esses números muito divergentes — um produzido pela PM, que a direita adora, e outro, pela universidade, que detesta — levaram a uma campanha de ataque à universidade.

Márcio e eu, os coordenadores da pesquisa, temos posição política — como todos os cidadãos brasileiros. Márcio é diretor do sindicato e eu, além de professor e pesquisador, sou colunista de opinião aqui no GLOBO, onde tento articular uma visão independente de esquerda.

Não deveria haver problema em sermos de esquerda e fazermos ciência social — assim como não deveria ser um problema eu ser de esquerda e escrever no jornal. O GLOBO, como todos os jornais sérios, separa a reportagem, onde se determinam os fatos, das opiniões políticas, expressas nas colunas. O jornal tem colunistas de esquerda, como eu, e outros mais de direita, como meu colega de sábado, Eduardo Affonso. Essa pluralidade existe para ajudar leitores, das duas orientações, a interpretar os fatos trazidos pela reportagem.

Na ciência social, a orientação política tem impacto na pesquisa, mas não deveria jamais distorcer os resultados. A visão de mundo de quem conduz a pesquisa certamente condiciona a agenda de pesquisa e a abordagem das questões sociais — por isso defendo que tenhamos mais pesquisadores conservadores. Porém, como cientistas sociais sérios, nos esforçamos muito para nossas opiniões não distorcerem os resultados. Nosso objetivo não é desqualificar as mobilizações sociais que estudamos, mas compreendê-las. Se baixamos uma estimativa de público ou distorcemos a caracterização do público, é nossa compreensão que sai prejudicada.

A falta de confiança na universidade é um tema que me preocupa. Muitos colegas professores acham que eu não deveria perder meu tempo dando satisfações à direita. Penso o contrário. Acredito que a universidade precisa resgatar a confiança da parcela da população que é de direita e que faz parte da cidadania que nos financia. É um compromisso republicano.

A democracia brasileira passa por um momento delicado. Se o antagonismo a que assistimos continuar escalando, terminaremos em autoritarismo e violência. Não temos saída nesta democracia se não aprendermos a conviver, com respeito.

 

4 comentários:

  1. Anônimo2/3/24 12:11

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  2. Anônimo2/3/24 12:17

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    1. Anônimo2/3/24 12:20

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