O Globo
Não é aceitável contemporizar quando o
assunto é democracia
Amanhã, 31 de março, lembramos o aniversário
de 60 anos do golpe militar de 1964. O presidente Lula,
temendo reação negativa dos militares, determinou que a data não fosse
mencionada pelo Executivo. Em contrapartida, os militares se comprometeram a
também não citá-la na “ordem do dia” nos quartéis, numa espécie de acordo
tácito entre Forças Armadas e governo civil.
Em entrevista para a RedeTV!, Lula enfatizou
que o episódio “faz parte do passado” e que é preciso “tocar o país pra
frente”. Repetiu o argumento de que a maioria dos oficiais militares era
criança ou não tinha nascido em 1964. Além disso, lembrou que, atualmente,
devido aos inquéritos do 8 de Janeiro, “em nenhum momento da História os
militares foram punidos como estão sendo punidos agora”.
Seja pelo conhecido caráter pragmático e conciliador do presidente, seja porque calcula que não é sensato esticar a corda com os militares, passaremos o aniversário de 60 anos do golpe militar sob um vergonhoso pacto de esquecimento.
O pragmatismo e o caráter conciliador de Lula
são excelentes virtudes que, em geral, o têm auxiliado a forjar os acordos
necessários para avançar seu programa político. Mas, embora a capacidade de
acomodação e mediação seja geralmente virtude, em alguns poucos pontos
essenciais torna-se um problema. Este é um desses casos. Não é aceitável
contemporizar quando o assunto é democracia. E não é apenas nas celebrações do
golpe de Estado de 1964 que Lula contemporiza.
A ambivalência com que ele trata ditaduras e
regimes autoritários é um traço preocupante de sua política externa. Seus
posicionamentos ambíguos — quando não explicitamente transigentes — com os
traços autoritários dos regimes na Rússia, na Nicarágua e
na Venezuela são
conhecidos. Fazem com que a direita brasileira tenha sérias dúvidas sobre seu
compromisso democrático — e a direita, nesse caso, tem um ponto.
Tivemos, porém, novidades alvissareiras na
última semana. Lula, pela primeira vez, criticou as limitações à democracia na
Venezuela depois que o regime de Maduro impediu a inscrição da candidata
opositora Corina Yoris nas eleições presidenciais de julho. Com a mediação do
Brasil e outros países, a Venezuela tinha se comprometido em outubro passado,
em Barbados,
a garantir eleições presidenciais livres e justas em troca da suspensão do
embargo econômico pelos Estados
Unidos.
Embora o embargo tenha sido suspenso, a
Venezuela não cumpriu sua parte, criando sucessivos obstáculos para a oposição.
O governo venezuelano considerou ilegais as prévias que a oposição organizou e
que levaram à indicação da parlamentar María Corina Machado como candidata a
presidente. Em seguida, a Suprema Corte, controlada pelo governo, decretou a
inelegibilidade de María Corina alegando delitos financeiros durante sua
atividade parlamentar. Pelo menos seis auxiliares seus foram presos (outros
oito se refugiaram na Embaixada da Argentina).
Em seguida, a oposição indicou uma candidata
substituta, também chamada Corina (Yoris), uma respeitada professora
universitária de filosofia, de 80 anos. Mas, ao tentar fazer o registro da
candidatura no sistema eleitoral, a senha dada pelas autoridades venezuelanas
simplesmente não funcionou.
O indeferimento da candidatura de Corina
Yoris demonstrou finalmente que o governo venezuelano não tem a menor
disposição de aceitar que um candidato sério da oposição concorra. Foi esse
último passo que levou o governo Lula a rever a sua posição histórica de não
criticar publicamente a Venezuela.
O Itamaraty soltou uma nota considerando
“preocupante” a situação no país, e Lula, em entrevista ao lado do presidente
francês Emmanuel
Macron, considerou a situação “grave”. A nota do Itamaraty poderia
ter sido mais dura, mas é claramente uma mudança de orientação que precisa ser
celebrada.
Quem sabe essa importante mudança em relação
à Venezuela seja a antessala de um movimento mais amplo de Lula reafirmando
clara e inequivocamente valores democráticos. Se Lula mudou sua postura
histórica com relação à Venezuela, tem tempo, até amanhã, de mudar sua
equivocada determinação de esquecer o aniversário do golpe de 1964. Não
conseguiremos educar nossos jovens para a democracia sem uma avaliação crítica
do regime autoritário que o Brasil viveu por 21 anos. Ditadura nunca mais!
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