quarta-feira, 27 de março de 2024

Vera Magalhães - Um longo caminho para sanear a política

O Globo

A cada eleição, o financiamento de organizações criminosas a candidatos ao Executivo e Legislativo aumenta

A resolução, que ainda pode se mostrar parcial, da trama para executar Marielle Franco revelou um grau maior de entranhamento do crime organizado no aparato político e policial do que aquele que se supunha. A participação do responsável pela Polícia Civil em todas as fases da arquitetura do assassinato foi aquele detalhe que, se não chega a surpreender, ainda choca até quem pesquisa o tema ou quem acompanhou por seis anos o vaivém das investigações, como a família da vereadora.

O comportamento da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados ontem diante da gravidade dessa infiltração é mais uma demonstração crua, rascante, de que as prisões de Domingos e Chiquinho Brazão e Rivaldo Barbosa não chegam nem a arranhar o edifício de conluio entre o estamento institucional e diferentes organizações criminosas, do tráfico à milícia, passando pelo jogo do bicho.

Demonstrando completa indiferença ao repúdio nacional aos detalhes da trama macabra para matar Marielle, que ceifou também a vida de Anderson Gomes, deputados do Novo e do Republicanos urdiram nos bastidores um cínico pedido de vista, sob a alegação de que houve afogadilho na prisão de seu colega Chiquinho. O próprio deputado preso apareceu em videoconferência com semblante condoído, queixando-se do “ódio” que campeia. Quem foi vítima de ódio? Ele ou a vereadora?

Ao deixar para depois de um feriado uma decisão que lhe cabe por lei, a Câmara dos Deputados prefere ser omissa para não deixar de ser corporativista. Age, assim, como o sindicato que Arthur Lira se esmera em comandar.

Vinham avançando no silêncio das reuniões em gabinetes tratativas para aumentar a blindagem — os deputados não gostam do termo, mas como se chama a camada de proteção que se coloca nos veículos para não serem alvejados por tiros que atingem os demais desguarnecidos? — em investigações a que sejam submetidos.

A sucessão de casos em que filiados ao sindicato da Câmara aparecem como citados ou envolvidos levou o espírito de corpo a falar mais alto, e não devem demorar a sair do forno propostas, inclusive de emendas constitucionais, tentando salvaguardar parlamentares de ser submetidos a busca e apreensão e aumentar a inviolabilidade das dependências do Congresso.

Isso, no entanto, ainda estava um degrau abaixo na escala da imoralidade que é proteger alguém acusado de ordenar um homicídio. E de uma igual aos senhores deputados, pois, como eles, Marielle era uma representante do Estado brasileiro no exercício do mandato para o qual havia sido eleita.

Que um dos seus seja acusado de tamanha atrocidade deveria ser o motivo de espanto dos deputados, e não a “pressa”(!) em resolver um crime que ocorreu há seis anos e para o qual se desejava impunidade total.

O espetáculo dantesco promovido pela CCJ, já sob nova direção, se soma à reprodução em série dos clãs políticos. Enquanto dois expoentes da família Brazão estão presos, já há herdeiros sendo forjados para substituir os patriarcas nos negócios da política.

Tornou-se um chavão, entoado até por líderes políticos em postos de comando, criticar a “criminalização” da política. O caso Marielle e outros tantos que evidenciam a tomada da política pelo crime atestam a necessidade de aposentar esse chorume.

A cada eleição, o financiamento de organizações criminosas a candidatos ao Executivo e ao Legislativo aumenta. É notória a presença desses grupos nas cúpulas de diferentes partidos, e não são poucas as evidências de infiltração no Judiciário, além da polícia.

É necessário um trabalho conjunto dos três Poderes, de todos os entes federativos e das demais instituições do Estado para sanear a política, que está gravemente criminalizada.

 

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