O Globo
Em tempos de reforma tributária, relatórios do escritor ensinam a eliminar privilégios e proteger os mais pobres
Em janeiro de 1929, Graciliano Ramos escreveu
um relatório para o governador de Alagoas. Queria prestar contas dos primeiros
atos como prefeito de Palmeira dos Índios. “Não foram muitos, que os nossos
recursos são exíguos”, avisou, logo na abertura do documento.
O desafio inicial foi estabelecer “alguma ordem” no município. “Havia em Palmeira inúmeros prefeitos”, anotou, numa crítica à bagunça deixada pelos antecessores. De coronéis a “inspetores de quarteirão”, todos mandavam e ninguém se entendia na cidade. “Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro”, anotou, com a concisão e a ironia que se tornariam marcas de seus romances.
O prefeito-escritor escapou da bala, mas não
teve vida fácil. Enfrentou resistências, intrigas e sabotagens. “Dos
funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os
que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma”, ironizou, antes de
elogiar os que ficaram. “Não se metem onde não são necessários, cumprem as suas
obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles”,
reconheceu.
Em três relatórios redigidos entre 1928 e
1930, Graciliano documentou a angústia de um gestor honesto diante de um
sistema feito para não funcionar. “Acho absurdo despender um município que até
agora nada gastou com instrução 2:000$000 para manter uma banda de música”,
escreveu. Em outro texto, ele contou ter adiado a construção de um cemitério
para investir o dinheiro nos vivos. “Os mortos esperarão mais algum tempo. São
os munícipes que não reclamam”, gracejou.
Apesar das tiradas de bom humor, o jovem
prefeito registrou sua indignação com o patrimonialismo e a falta de ética. “Há
quem não compreenda que um ato administrativo seja isento da ideia de lucro
pessoal”, desabafou, no primeiro balanço anual. “Não favoreci ninguém”,
garantiu. “Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome.
Não me fizeram falta”, arrematou.
Rigoroso com as contas públicas, Graciliano
sanou dívidas e fez o possível para eliminar o desperdício. “Apesar de ser o
negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras”, anotou,
ao rever o contrato firmado pelo antecessor com a companhia de luz. “Dispêndio
inútil”, sentenciou, sobre gastos excessivos com telegramas.
A tecnologia mudou, mas os dilemas que
assolavam o prefeito permanecem atuais. Em janeiro de 1930, ele criticou a
ganância dos ricos que tentavam escapar do fisco: “Cada um dos membros dessa
respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros”. A
pregação de falsos reformistas também o tirava do sério. “Em conformidade com
eles, deveríamos proceder sempre com a máxima condescendência, não onerar os
camaradas, ser rigorosos apenas com os pobres-diabos sem proteção”.
Os relatórios de Graciliano estão reunidos em
“O prefeito escritor: dois retratos de uma administração”, recém-chegado às
livrarias. Em tempos de reforma tributária, o autor de “Vidas Secas” oferece
uma receita simples para corrigir distorções e injustiças.
“Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo às extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores”. Os matutos eram o “pobre povo sofredor”, que pagava muito e recebia pouco do poder público.
Perfeito.
ResponderExcluirBem interessante!
ResponderExcluirEscritor brasileiro favorito de Reinaldo Azevedo,eu só gostei de ''Memórias do Cárcere'',talvez por não ser romance.
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