O Globo
Cartunista amargou três prisões e perdeu
cinco empregos por pressão militar
Em maio de 1974, o presidente da Caixa
Econômica enviou uma carta ao ministro da Justiça. Queria ouvi-lo sobre as
“implicações político-ideológicas” de renovar um contrato de publicidade da
Loteria Federal. A campanha era estrelada por um famoso personagem de
quadrinhos: Jeremias, o Bom. O que preocupava era o criador do desenho: o
cartunista Ziraldo, persona non grata para a ditadura militar.
A correspondência de Karlos Rischbieter deu origem a um processo sigiloso, que passou a perambular pela burocracia do regime. Consultada, a Divisão de Segurança e Informações sustentou que o artista gráfico seria ligado a “atividades subversivas”. Apoiou o movimento estudantil, foi fichado como comunista e publicou um desenho que intrigou o tenente-coronel aviador Juarez de Deus Gomes da Silva.
O cartum mostrava o encontro de duas letras
sigma, símbolo do integralismo. Elas se enroscavam até formar uma suástica,
emblema do nazismo. “O nominado fez publicar vários signos (sic), fazendo crer
que tentava estabelecer uma comparação entre regimes de duas épocas”, anotou o
chefe da GSI. “Suas charges e manifestações públicas seguem normalmente uma
linha contestatória ao regime, segundo os interesses da propaganda adversa”,
concluiu o oficial da Aeronáutica.
O dossiê seguiu para a Polícia Federal, que
acrescentou mais notas ao prontuário de Ziraldo. Em tom de reprovação, o
delegado Sérgio Maciel Valim informou que ele assinou um manifesto contra a
prisão de intelectuais, os famosos Oito do Glória, e ajudou a organizar a Passeata dos
Cem Mil. “Muitos de seus desenhos satirizam atuações governamentais”,
acrescentou.
O doutor ainda pôs em xeque o insuspeito
Jeremias — uma figura dócil e resignada, incapaz de fazer mal a uma mosca.
“Segundo análise de um OI (oficial de inteligência), o personagem Jeremias,
quando apresenta um anúncio da CEF, aparece com o rosto cheio de traços,
simbolizando sentimento de vergonha”, assinalou o diretor da PF.
O papelório passou por seis repartições até
pousar na mesa do ministro da Justiça. Depois de 24 dias, Armando Falcão deu o
veredicto ao presidente da Caixa: “Confirmo a Vossa Senhoria a inconveniência
da renovação do contrato com o humorista Ziraldo Alves Pinto”. Era o fim da
carreira de Jeremias como garoto-propaganda de loteria.
O processo é uma pequena amostra da
perseguição a Ziraldo na ditadura. O cartunista foi preso três vezes sem
direito a julgamento. Conheceu as celas do Forte de Copacabana, do Dops, da
Vila Militar e do Regimento Caetano de Faria, atual sede do Batalhão de Choque
da PM. Perdeu ao menos cinco empregos por pressão política, sem contar a
censura e a asfixia econômica ao Pasquim.
Em 2008, a Comissão de Anistia considerou que
ele merecia um pedido oficial de desculpas e uma reparação financeira. O
julgamento rendeu a Ziraldo uma pensão mensal de R$ 4,3 mil, uma indenização de
R$ 1 milhão e uma saraivada de críticas por aceitar receber dinheiro público.
Curiosamente, o imbróglio com a Caixa não é citado nos autos. O dossiê foi
microfilmado e pode ser lido no Arquivo Nacional.
Muito bom o artigo.
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