O Globo
A falsa noção de que Israel é um
instrumento geopolítico das estratégias de Washington no Oriente Médio faz
parte do manual de dogmas da esquerda. Joe Biden cometeu
o maior erro de sua longa carreira ao acreditar nela, imaginando que exerceria
influência decisiva sobre a condução da guerra em Gaza.
“Quem, porra, ele pensa que é? Quem, aqui, é
a porra da superpotência?”, rosnou Bill Clinton para seus assessores em 1996,
depois de suportar uma preleção de Netanyahu. Nas relações dos Estados
Unidos com Israel, é o rabo que abana o cachorro.
Israel opera segundo seus próprios interesses — ou, dito de outro modo, segundo o que seus governos definem como o interesse nacional. Da expedição militar a Suez, em 1956, à expansão dos assentamentos, a partir de 1977, o Estado judeu adquiriu o hábito de contrariar seu maior aliado. Uma das raras exceções relevantes foi a concessão de Golda Meir a Henry Kissinger, poupando o sitiado 3º Exército egípcio na guerra de 1973. A primeira-ministra pagou o preço da providencial ajuda militar americana na fase crítica do conflito — e abriu caminho para os acordos de paz com o Egito.
Biden abraçou Netanyahu, física e
politicamente, no dia seguinte às atrocidades do Hamas do 7 de Outubro. Daí,
dirigiu Blinken, seu secretário de Estado, o Pentágono e a CIA a operarem com o
governo e as forças armadas israelenses. A ideia do presidente era moldar a
guerra em Gaza de forma a minimizar o sofrimento da população civil e, ao mesmo
tempo, esculpir uma saída política para a crise. A “porra da superpotência”
fracassou nas duas metas, chocando-se contra o rochedo da sabotagem de
Netanyahu.
A ambição de Biden era fazer um rato parir
uma montanha. Blinken percorreu várias vezes as capitais árabes do Oriente
Médio para articular o “day after”: um acordo de administração de Gaza pela
Autoridade Palestina (AP) com amparo militar e financeiro egípcio, jordaniano,
saudita e dos Emirados Árabes. No fim do arco-íris, surgiria um acordo de paz
entre Israel e Arábia Saudita, em troca de um roteiro rumo ao Estado palestino.
O edifício projetado por Biden selaria uma
vasta aliança patrocinada pelos Estados Unidos, isolando o Irã e suas milícias
regionais. Netanyahu vetou cada parte do plano, enquanto promovia uma brutal
punição coletiva dos palestinos em Gaza, mas também na Cisjordânia. Na prática,
em nome da preservação de sua coalizão de governo com fanáticos supremacistas
judaicos, rejeitou a oferta de um acordo com a AP, explodindo preventivamente
as fundações de uma ordem estável pós-Hamas.
Os Estados Unidos resmungaram, depois
rosnaram — e, finalmente, ajoelharam. Na ONU, desistiram dos vetos a resoluções
de cessar-fogo. Ao telefone, num diálogo dramático, Biden exigiu de Netanyahu,
como mínimo, a desobstrução da ajuda humanitária aos civis de Gaza. Circula a
versão verossímil de que, nesse telefonema, brandiu a ameaça de interrupção do
envio de material bélico ofensivo. O canhão, porém, não tinha obuses. O
Congresso acaba de aprovar um bilionário pacote de transferências militares
extraordinárias a Israel.
O equívoco sai caro. No plano internacional,
o vencedor da guerra de Netanyahu chama-se Vladimir Putin. No plano interno,
chama-se Donald Trump. Washington assiste, impotente, à estagnação dos Acordos
de Abraão, que se concluiriam com a normalização de relações entre Israel e
Arábia Saudita. Mas, sobretudo, experimenta a reação do “Sul Global” à tragédia
humana em curso, que projeta um cone de sombra sobre os atentados do Hamas em 7
de outubro. A guerra de Netanyahu tornou-se a guerra de Biden. O presidente
perdeu a aura de protetor de uma ordem internacional baseada em regras
conferida pela invasão russa da Ucrânia.
Nos Estados Unidos, a onda de protestos nas
universidades sinaliza algo mais profundo: a indignação generalizada dos jovens
diante da interminável mortandade em Gaza. Há indícios de que uma base
eleitoral segura dos democratas pode desistir de votar, assestando um golpe
fatal nas chances de Biden. O rabo que abana o cachorro tornou-se um grande
eleitor de Trump.
" Quem, aqui, é a porra da superpotência ? "
ResponderExcluirHahahahah
Muito bom !
ResponderExcluir😅
Magnoli é incompetente em energia, biologia e alguns outros assuntos. Neles, suas pretensão e presunção muitas vezes iludem leitores descuidados. Mas, na questão do Oriente Médio, ele é um dos poucos colunistas que melhor captou a situação e consegue analisar e explicar didaticamente as BARBARIDADES que ocorrem lá. A coluna de hoje é realmente BRILHANTE! Do que já li, ouvi e vi na TV, ninguém no Brasil colocou tão bem esta relação entre EUA e Israel. Parabéns ao colunista por este texto, e ao blog por divulgar seu trabalho, tão oscilante e polêmico.
ResponderExcluirLendo e aprendendo.
ResponderExcluirDaniel é um tremendo petralha -a soldo?-. Então, precisa atacar até quando elogia.
ResponderExcluirO texto é muito bom, como sempre, em qualquer assunto.
MAM